segunda-feira, 26 de maio de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - O Petit Picpus / VII - Vários contornos desta sombra

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Sexto — O Petit Picpus

VII - Vários contornos desta sombra
     
      Durante os seis anos que decorrem de 1819 até 1825, a prioresa do Petit-Picpus era Mademoiselle de Blemeur, que na religião se chamava madre Inocência. Descendia da família de Margarida de Blemeur, autora da Vida dos Santos da Ordem de S. Bento
      Havia sido reeleita. Era uma senhora de sessenta anos, baixa, gorda, «com voz de cana rachada», diz a carta que já citamos, excelente pessoa, porém, e a mais jovial de todo o convento, e por isso mesmo adorada.
     A madre Inocência parecia-se com a sua ascendente Margarida, que foi a Dacier da ordem. Era literata, erudita, sábia, competente, historiadora curiosa, recheada de latim, enfrascada de grego, cheia de hebraico e mais beneditino do que beneditina.
     A sub-prioresa era uma espanhola velha, quase cega, chamada a madre Cineres.
     As mais notáveis entre as vocais eram a madre Santa Honorina, escrivã, a madre Santa Gertrudes, primeira mestra de noviças, a madre Santa Ângela, segunda mestra, a madre Anunciação, sacristã, a madre Santo Agostinho, enfermeira, a única religiosa má em todo o convento; depois a madre Santa Matilde (Mademoiselle Gauvain), muito nova e dotada de uma admirável voz; a madre dos Anjos (Mademoiselle Drouet), que havia estado no convento das filhas de Deus e no do Tesouro entre Gisors e Magny; a madre S. José (Mademoiselle de Cogolludo); a madre Santa Adelaide (Mademoiselle de Cifuentes, que não pôde resistir às austeridades); a madre Compaixão (Mademoiselle de Ia Miltière, senhora riquíssima, recebida aos sessenta anos contra as prescrições da regra); a madre Apresentação (Mademoiselle de Siguenza), que foi prioresa em 1847; finalmente, a madre Santa Celínia (irmã do escultor Ceracchi), que depois endoideceu, e a madre Santa Chantal (Mademoiselle de Suzan), que também depois enlouqueceu.
      Havia também entre as mais bonitas, uma galante rapariga de vinte e três anos, natural da ilha Bourbon e descendente do cavalheiro Rosa, que no mundo se chamara Mademoiselle Rosa e se chamava então madre Assunção.
      A madre Santa Matilde, que era encarregada do canto e do coro, gostava de empregar nele as recolhidas. De ordinário tomava uma escala completa delas, isto é, sete, de dez até dezesseis anos inclusive, da mesma estatura e com a mesma voz, às quais fazia cantar de pé e todas enfileiradas pela ordem da idade, caminhando da mais nova para a mais velha. Oferecia isto aos olhos a vista de um como arrabil de pastor, feito de donzelas, uma espécie de flauta de Pan, feita de anjos.
      De entre as irmãs conversas, as que as recolhidas amavam mais, eram soror Santa Eufrásia, soror Santa Margarida, soror Santa Marta, que estava idiota, e soror S.
     Miguel, de quem muito se riam, por causa do seu comprido nariz.
     Todas aquelas mulheres eram agradáveis para com todas aquelas crianças. Eram severas as religiosas, mas só consigo. Não se acendia lume senão no Recolhimento, e o alimento, comparado com o do convento, era escolhido. Afora isto, tinham com as educandas mil cuidados. Só quando alguma delas passava por alguma religiosa e lhe dirigia a palavra, a religiosa nunca respondia.
      Esta regra do silêncio fizera com que em todo o convento fosse tirada a fala às criaturas humanas e dada aos objetos inanimados. Ora era o sino da igreja que falava, ora o chocalho do jardineiro. Além disto, tinha a rodeira ao lado uma sonora campainha, que se ouvia de todos os lugares do convento, a qual, por toques variados, que eram uma espécie de telégrafo acústico, indicava todas as necessidades materiais que havia a satisfazer e chamava ao locutório quando era necessário esta ou aquela habitante do convento. Cada pessoa ou coisa tinha o seu toque. Para chamar pela prioresa era um e um; pela sub-prioresa um e dois. Seis-cinco anunciavam a aula, de modo que as educandas nunca diziam entrar para a aula, mas ir às seis-cinco. Quatro-quatro era o toque de Madame Genlis. Este toque ouvia-se frequentes vezes. — É pelo diabo a quatro! — diziam as menos caridosas. Dezenove badaladas anunciavam um grande acontecimento. Era a abertura da porta da clausura, horrível chapa de ferro, eriçada de ferrolhos, que não girava nos gonzos senão perante o arcebispo.
     Exceto ele e o jardineiro, como já dissemos, nenhum outro homem entrava no convento. As recolhidas, essas viam mais dois: o abade Benés, esmoler, velho e feio, que lhe era concedido contemplar por entre uma grade, e o mestre de desenho, o senhor Ansiaux, que a carta de que o leitor já leu algumas linhas chama senhor Anciot e que qualifica de velhote corcovado.
     Daqui se vê que os homens eram todos escolhidos.
      Tal era, pois, aquela curiosa casa.

continua na página 382...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - VII - Vários contornos desta sombra
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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