em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
Era uma aldeia antiga, com sua velha prefeitura tostada e dourada, diante da qual, à maneira de paus de sebo e auriflamas, três grandes pereiras estavam, como para uma festa cívica e local, galantemente ornamentadas de cetim branco. Nunca Robert me falou com tanta ternura de sua amiga como durante esse trajeto.
Somente ela possuía raízes em seu coração; o futuro que ele tinha no exército, sua
posição mundana, sua família, tudo isto com certeza não lhe era indiferente, mas nada valia junto
das menores coisas que diziam respeito à sua amante. Só ela tinha prestígio a seus olhos, um
prestígio infinitamente maior que o dos Guermantes e o de todos os reis da Terra. Não sei se
formulava a si mesmo que ela era de uma essência superior a tudo, mas sei que só tinha
consideração e preocupação pelo que lhe concernia. Por ela, era capaz de sofrer, ser feliz, talvez
de matar. Na verdade, para ele nada existia de interessante, apaixonante, senão o que queria e o
que faria a sua amada, o que se passava, perceptível no máximo por expressões fugidias, no
exíguo espaço do seu rosto e sob a sua fronte privilegiada. Tão cuidadoso para tudo o mais,
admitia a possibilidade de um casamento brilhante apenas para poder continuar a sustenta-la,
conserva-la. Se lhe perguntassem a que preço a estimava, julgo que nunca se poderia imaginar
um preço bastante elevado. Se não a desposava, é que um instinto prático lhe fazia sentir que,
quando não tivesse mais nada a esperar dele, ela o abandonaria ou, pelo menos, viveria como
bem entendesse, e que seria necessário mantê-la na expectativa do amanhã. Pois supunha que
ela talvez não o amasse. Sem dúvida, a afeição geral chamada amor devia força-lo como todos os
homens a crer, por instantes, que ela o amava. Mas praticamente sentia que esse amor que a
moça manifestava por ele não impedia que ficasse com ele apenas devido a seu dinheiro, e que,
no dia em que ela nada mais tivesse a esperar dele, se apressaria (vítima das teorias de seus
amigos literatos e amando-o sempre, pensava Robert) em abandona-lo.
- Hoje, se for boazinha. -disse-me ele -, vou lhe dar um presente que a deixará satisfeita. É
um colar que ela viu na casa Boucheron. É um tanto caro para mim neste momento: trinta mil
francos. Mas essa pobre menina não teve tantos prazeres assim na vida. Vai ficar contentíssima.
Falou-me dele e disse que conhecia alguém que lho daria talvez. Não creio que seja verdade, mas
entendi-me de qualquer jeito com Boucheron, que e o fornecedor de minha família, para que o
reserve para mim. Fico feliz em pensar que vais vê-la; de rosto não é nada extraordinária, sabes -
(percebi perfeitamente que ele pensava o contrário e não o confessava para que minha admiração
fosse maior) -; tem acima de tudo um tino esplêndido; talvez não ouse falar muito diante de ti, mas
já me alegro, por antecipação, com o que ela me dirá de ti depois; sabes, ela diz coisas que a
gente pode aprofundar indefinidamente, na verdade possui algo de pítico!''
Para chegar à casa em que ela morava, passamos por jardinzinhos e eu não pude deixar
de parar, pois estavam todos floridos de cerejeiras e pereiras; sem dúvida vazios e desabitados
ainda ontem, como uma propriedade que não foi alugada, eram subitamente embelezados e
povoados por aquelas recém-chegadas da véspera e cujos lindos vestidos brancos avistávamos
através das grades na esquina das aleias.
- Escuta, já que vejo que desejas observar tudo isto, criatura poética. - disse Robert -,
espera-me aqui; minha amiga mora bem pertinho e vou busca-la.
Enquanto esperava, dei alguns passos, à frente dos modestos jardins. Se erguia a cabeça,
por vezes via moças nas janelas, mas mesmo ao ar livre e à altura de um pequeno andar, aqui e
ali, leves e esbeltas em sua fresca toalete cor-de-malva, jovens moitas de lilases, suspensas às
folhagens, deixavam-se embalar pela brisa sem se ocupar do passante que levantava os olhos
para o entressolo de verdura. Nelas, eu reconhecia os pelotões violáceos dispostos à entrada do
parque do Sr. Swann, passada a pequena barreira branca, nas tardes quentes da primavera, para
uma deslumbrante tapeçaria provinciana. Tomei por um atalho que terminava numa campina.
Soprava ali uma aragem fria, viva como em Combray; mas, no meio da terra fértil, úmida e
campesina, que poderia ficar às margens do Vivonne, não deixara de aparecer, pontual ao
encontro como todo o grupo de seus companheiros, uma grande pereira branca que agitava,
risonha, e opunha ao sol, como uma cortina de luz materializada e palpável, suas flores
convulsivas pela brisa, porém lustrosas e envernizadas de prata pelos raios.
De repente, Saint-Loup surgiu acompanhado de sua amante; e então, nessa mulher que
era para ele todo o amor, todas as doçuras possíveis da vida, cuja personalidade,
misteriosamente encerrada em um corpo como num Tabernáculo, era ainda o objeto sobre o qual
trabalhava sem cessar a imaginação do meu amigo, que ele sentia que jamais haveria de
conhecer, e de quem se indagava perpetuamente o que seria em si mesma, por detrás do véu dos
olhares e da carne, nessa mulher eu reconheci de imediato "Rachel-quando-do-Senhor", aquela
que, alguns anos antes as mulheres mudam tão depressa de condição nesse mundo, quando
mudam -, dizia à alcoviteira:
"Então, amanhã à noite, se a senhora precisar de mim para alguém, mande-me chamar."
E quando, de fato, "mandavam chamá-la" e ela se achava a sós no quarto com alguém,
sabia tão perfeitamente o que desejavam dela que, depois de ter fechado à chave, por precaução
de mulher prudente, ou por um gesto ritual, começava a despir-se de todas as suas coisas, como
fazemos diante do médico que vai auscultar-nos, e só parava se o "alguém", não apreciando a
nudez completa, lhe dizia que ficasse de camisa, como certos facultativos que, tendo o ouvido
muito fino e receando que o paciente se resfrie, se limitam a ouvir a respiração e as batidas do
coração através de um tecido. A essa mulher, cuja vida inteira, cujos pensamentos, cujo passado,
cujos homens por quem pudesse ter sido possuída eram para mim coisa tão indiferente que, se
me tivesse contado tudo isto, tê-la-ia escutado por simples cortesia e sem mesmo ouvi-la senti
que a inquietação, o tormento, o amor de Saint-Loup se haviam aplicado até fazer, do que era
para mim somente um jogo mecânico, um objeto de sofrimentos infinitos, tendo como prêmio a
própria existência. Vendo esses dois elementos dissociados (porque havia conhecido "Rachel
quando-do-Senhor" num bordel), compreendia que muitas mulheres por quem os homens vivem,
sofrem, se matam, podem ser em si mesmas, ou para outros, o que Rachel era para mim. A ideia
de que é possível ter uma dolorosa curiosidade no que respeitava à sua vida, deixava-me
estupefato. Poderia contar muitas trepadas suas a Robert, as quais me pareciam a coisa mais
indiferente do mundo. E como elas o teriam magoado! E quanto não daria para conhecê-las, sem
consegui-lo.
Percebia tudo quanto uma imaginação pode pôr atrás de um palminho de cara como o
daquela mulher, se foi a imaginação que a conheceu primeiro; e, inversamente, em que
miseráveis elementos materiais e desprovidos de todo valor podia decompor-se o que era o
objetivo de tantas fantasias, se, ao contrário, aquilo fosse mesmo conhecido de maneira oposta,
através do conhecimento mais trivial. Compreendia que o que me parecera não valer vinte
francos, quando me fora oferecido por tal preço no bordel, onde, para mim, não passava de uma
mulher desejosa de ganhar vinte francos, pode valer mais que um milhão, mais que a família,
mais que todas as posições invejadas, se nela se começa por imaginar uma criatura
desconhecida, curiosa de se conhecer, difícil de obter, de conservar. Decerto era o mesmo rosto
franzino e miúdo que Robert e eu víamos. Porém, a ele chegáramos por vias opostas que jamais
se comunicariam, e dele nunca veríamos a mesma face. Esse rosto, com seus olhares, seus
sorrisos, os movimentos da boca, eu o conhecera de fora como sendo o de uma mulher qualquer,
que faria tudo o que eu quisesse por vinte francos. Assim os olhares, os sorrisos e os movimentos
da boca me haviam parecido apenas significativos de atos gerais, sem nada de individual, e sob
os quais não teria tido a curiosidade de procurar uma pessoa. Mas o que, de algum modo, me fora
oferecido à partida, esse rosto permissivo, fora para Robert um ponto de chegada, para o qual se
dirigia através de tantas esperanças, dúvidas, suspeitas e fantasias. Dava mais de um milhão para
possuir, a fim de que não fosse oferecido a outros, o que me fora ofertado, como a todos, por vinte
francos. Por que motivo ele não a obtivera por tal preço, isso talvez se devesse - ao acaso de um
instante, um instante durante o qual aquela que parece prestes a se entregar se furta, tendo
porventura um encontro, alguma razão que a faz mais difícil nesse dia. Se está tratando com um
sentimental, ela começa um jogo terrível, mesmo que não o perceba, e sobretudo se o percebe.
Incapaz de superar sua decepção, de passar sem essa mulher, ele a persegue, ela foge, de modo
que um sorriso que ele já não se atrevia a esperar é pago mil vezes mais do que o deveriam ser
os últimos favores. Nesse caso, acontece mesmo, às vezes, quando se teve, por uma mescla de
ingenuidade no julgamento e de covardia no desgosto, a loucura de fazer de uma mulher à-toa um
ídolo inacessível, cujos últimos favores, ou até o primeiro beijo, jamais poderemos obtê-los, nem
sequer teremos coragem de pedi-los para não desmentir as seguranças do amor platônico. E
então é um grande sofrimento abandonar a vida sem ter jamais sabido o que poderia ter sido o
beijo da mulher a quem mais amamos. Os favores de Rachel, no entanto, Saint-Loup os obtivera a
todos por acaso. Certamente, se soubesse agora que haviam sido ofertados a todo mundo por um
''luís," decerto teria sofrido terrivelmente, mas nem por isso deixaria de dar um milhão para
conservá-los, pois tudo o que ficasse sabendo não poderia fazê-lo sair pois o que está acima das
forças do homem só pode ocorrer contra sua vontade, pela ação de alguma grande lei natural do
caminho que ele trilhava e de onde esse rosto só lhe podia aparecer através dos sonhos que
concebera. A imobilidade desse rosto miúdo, como o de uma folha de papel submetida às
pressões colossais de duas atmosferas, me parecia equilibrada pelos dois infinitos que vinham
terminar nela sem se encontrarem, pois ela os separava. E com efeito, olhando-a Robert e eu, não
a víamos pelo mesmo lado do mistério.
Não era "Rachel-quando-do-Senhor" que me parecia insignificante. Era a potência da
imaginação humana, a ilusão sobre a qual pousavam as dores do amor que eu julgava grandes.
Robert viu que eu estava emocionado. Desviei os olhos para as pereiras e cerejeiras do jardim em
frente para que ele pensasse que era a sua beleza que me impressionava. E impressionava-me
um pouco da mesma forma, colocava também junto a mim essas coisas que só se veem com os
olhos, mas que sentimos no coração. Os arbustos que eu vira no jardim, tomando-os por deuses
estranhos, acaso não me enganara como Madalena quando, em outro jardim, num dia cujo
aniversário ainda ia ocorrer em breve, ela viu uma forma humana e "julgou que era o jardineiro"?
Guardiães das lembranças da idade de ouro, fiadores da promessa de que a realidade não é o
que se julga ser, que o esplendor da poesia e o clarão maravilhoso da inocência podem
resplandecer nela e poderão ser a recompensa que nos esforçaremos por merecer, as grandes
criaturas brancas admiravelmente inclinadas acima da sombra propícia à sesta, à pesca, à leitura,
não seriam por acaso anjos? Troquei algumas palavras com a amante de Saint-Loup.
Atravessamos a aldeia. As casas eram sórdidas. Mas, ao lado das mais miseráveis, das que
pareciam ter sido queimadas por uma chuva de salitre, um viajante misterioso, detido por um dia
na cidade maldita, um anjo resplandecente mantinha-se de pé, estendendo largamente sobre ela
a deslumbrante proteção de suas asas de inocência em flor: era uma pereira. Saint-Loup
adiantou-se alguns passos comigo:
- Gostaria que pudéssemos, nós dois, esperar juntos, e gostaria ainda mais de almoçar
sozinho contigo, e que ficássemos juntos a sós, até o momento de ir para a casa de minha tia.
Mas minha pobre garota, isso lhe dá tanto prazer e ela é tão gentil comigo, sabes, não pude me
negar. Além do mais, ela te agradará, é uma literata, uma vibrante, e depois é algo tão gentil
almoçar com ela no restaurante, ela é tão agradável, tão simples, está sempre satisfeita com tudo.
Entretanto, creio que justamente naquela manhã, e provavelmente pela única vez, Robert
se evadiu por um momento para fora da mulher que, carinho após carinho, lentamente
compusera, e percebeu de repente a alguma distância de si uma outra Rachel, um duplo dela,
mas absolutamente diverso, e que parecia uma simples putinha. Deixando o belo pomar, íamos
tomar o trem para voltar a Paris quando, na gare, Rachel, andando a alguns passos de nós, foi
reconhecida e interpelada por "galinhas" vulgares como ela, e que a princípio, julgando-a sozinha,
lhe gritaram:
- Alô, Rachel! Vem conosco! Luciene e Germaine já estão no vagão e ainda há exatamente
um lugar! Vem, vamos juntas ao skating. -
Elas se apressavam a apresentar dois caixeiros, seus amantes, que as acompanhavam,
quando, diante do jeito meio sem graça de Rachel, ergueram curiosamente os olhos para mais
longe, viram-nos e se desculparam despedindo-se e recebendo de Rachel também um adeus, um
pouco embaraçado mas amistoso. Eram duas pobres prostitutas, com golas de falsa lontra, tendo
mais ou menos o aspecto que apresentava Rachel quando Saint-Loup a vira pela primeira vez.
Ele não as conhecia, nem mesmo sabia seus nomes, e, vendo que pareciam muito ligadas à sua
amiga, teve a ideia de que esta talvez tivesse tido seu lugar, talvez o tivesse ainda, numa vida
insuspeitada dele, bem diversa da que eles levavam juntos, uma vida em que se conseguiam
mulheres por um luís, ao passo que ele dava mais de cem mil francos anuais a Rachel. Não fez
mais que entrever essa vida, mas também, no meio dela, uma Rachel completamente diferente da
que conhecia, uma Rachel semelhante àquelas duas pequenas prostitutas, uma Rachel por vinte
francos. Em suma, por um instante Rachel se desdobrara para ele, que percebera a uma certa
distância de sua Rachel a Rachel putinha, a Rachel verdadeira, supondo que a Rachel putinha
fosse mais real que a outra. Robert talvez tenha tido então a ideia daquele inferno em que vivia,
com a perspectiva e necessidade de um matrimônio rico, de uma venda de seu nome, para poder
continuar a dar cem mil francos anuais a Rachel; e talvez pudesse lhe escapar facilmente e ter os
favores de sua amante, como aqueles caixeiros os de suas rameiras, por preço vil. Mas como
fazê-lo? Ela não desmerecera em nada. Menos satisfeita, ela seria menos gentil, não lhe diria nem
escreveria mais aquelas coisas que o tocavam tanto e que ele citava com um pouco de
ostentação aos companheiros, tendo o cuidado de assinalar o quanto era gentil da parte dela,
omitindo porém o fato de que a sustentava com fausto, e até que lhe dava o que quer que fosse,
que aquelas dedicatórias numa fotografia ou aquela fórmula para terminar um despacho eram a
transmutação, sob sua forma mais preciosa e reduzida, de cem mil francos. Se evitava dizer que
essas raras gentilezas de Rachel eram pagas por ele, seria falso dizer e no entanto esse
raciocínio simplista é usado absurdamente para com todos os amantes que pagam, para tantos
maridos que era por amor-próprio ou por vaidade. Saint-Loup era bastante inteligente para
perceber que teria encontrado, fácil e gratuitamente na sociedade, todos os prazeres da vaidade
graças a seu grande nome, a seu belo rosto, e que sua ligação com Rachel, ao contrário, era o
que o havia posto um pouco fora desse mundo e fazia com que fosse menos cotado. Não, esse
amor-próprio de querer mostrar que temos gratuitamente as marcas visíveis da predileção
daquela a quem amamos é simplesmente um derivado do amor, a necessidade de figurar para si
mesmo e para os outros como sendo amado pela que se ama tanto. Rachel se aproximou de nós,
deixando as duas prostitutas subirem para seu compartimento; mas, não menos que a falsa lontra
delas e o ar afetado dos caixeiros, os nomes de Lucienne e de Germaine mantiveram por um
instante, diante de Robert, a nova Rachel. Por um momento, ele imaginou uma vida da praça
Pigalle, com amigos desconhecidos, aventuras sórdidas, tardes de divertimentos ingênuos,
passeios ou farras, naquela Paris onde as ensolaradas ruas, desde o bulevar de Clichy, não lhe
pareceu o mesmo da claridade solar em que ele passeava com a amante, e sim outro, pois o
amor e o sofrimento, que forma com ele um todo único, têm, como a embriaguez, o poder de nos
diferenciar as coisas. Ele suspeitou quase uma Paris desconhecida em meio à própria Paris; sua
ligação lhe surgiu como a exploração de uma vida estranha, pois se, com ele, Rachel era um
pouco parecida a seu amante, era entretanto uma boa parte de sua vida verdadeira que Rachel
vivia com ele, e mesmo a parte mais preciosa, devido às fabulosas somas que ele lhe dava, a
parte que a fazia de tal modo invejada das amigas e que lhe permitiria um dia retirar-se para o
campo ou de se lançar nos grandes teatros, depois de ter feito o seu pé-de-meia. Robert gostaria
de perguntar à amiga quem eram Lucienne e Germaine, as coisas que estas lhe teriam dito se ela
tivesse subido para o seu compartimento, e em que, ela e suas companheiras, teriam passado
juntas um dia que talvez tivesse acabado como divertimento máximo, após os prazeres do
skafing, na taverna da Olympia, se ele, Robert, e eu não estivéssemos presentes. Por um
instante, as vizinhanças da Olympia, que até então lhe tinham parecido aborrecidas, excitaram a
sua curiosidade, seu sofrimento, e o sol daquele dia primaveril na rua Caumartin, onde talvez, se
não tivesse conhecido Robert, Rachel teria ido há pouco e ganho um luís, lhe deu uma vaga
nostalgia. Mas para que fazer perguntas a Rachel, quando sabia previamente que a resposta
seria um simples silêncio ou uma mentira, ou algo ainda mais penoso para ele, sem todavia lhe
descrever coisa nenhuma? Os empregados fechavam as portas, subimos rapidamente para um
vagão de primeira, as pérolas admiráveis de Rachel fizeram-no ver de novo que ela era uma
mulher de alto preço, ele acariciou-a, fê-la entrar em seu próprio coração, onde a contemplou,
interiorizada, como tinha feito até então salvo durante esse breve instante em que a vira numa
praça Pigalle de pintor impressionista -, e o trem partiu. Aliás, era verdade que ela era uma
"literária". Não deixou de me falar em livros, art nouveau, tolstoísmo, a não ser para censurar
Saint-Loup por beber demais.
- Ah, se pudesses viver um ano comigo, haveriam de ver, eu te faria beber água e serias
muito melhor.
- Combinado! Vamos.
- Mas sabes muito bem que tenho mais o que fazer (pois ela levava a sério a arte
dramática). Além disso, o que diria a tua família?
E pôs-se a fazer, sobre a família de Robert, censuras que me pareceram aliás muito justas
e às quais Saint-Loup aderiu inteiramente, conquanto desobedecesse a Rachel no artigo sobre o
champanha. Eu, que temia tanto o excesso de vinho para Saint-Loup e sentia a boa influência de
sua amante, estava pronto a aconselhá-lo que mandasse a família passear. As lágrimas subiram
aos olhos da moça porque tive a imprudência de falar de Dreyfus.
- O pobre mártir. - disse ela, retendo um soluço -, vão fazê-lo morrer lá longe.
- Tranquiliza-te, Zézette. - retrucou Robert. - Ele voltará, será absolvido, o erro será
reconhecido.
- Mas antes disso ele estará morto! Enfim, pelo menos seus filhos usarão um nome
imaculado. Mas o que me mata é pensar no que deve estar sofrendo. E acredita que a mãe de
Robert, uma mulher piedosa, diz que ele deve permanecer na ilha do Diabo, mesmo se for
inocente; não é um horror?
- Sim, é absolutamente verdade, ela diz essas coisas. - afirmou Robert. - É minha mãe,
nada tenho a objetar, mas é bem claro que ela não possui a sensibilidade de Zézette.
Na realidade, esses almoços, "coisas tão amáveis", sempre transcorriam muito mal. Pois,
logo que Saint-Loup se achava com a amante em um local público, imaginava que ela olhava para
todos os homens presentes, tornava-se sombrio, ela se apercebia de seu mau humor, que se
divertia talvez em atiçar, mas que, mais provavelmente por um bobo amor-próprio, não queria,
ofendida com o seu tom, parecer que buscava desarmar; dava a impressão de não desviar os
olhos deste ou daquele homem, e, aliás, nem sempre o fazia por puro divertimento. De fato,
quando o senhor que, no teatro ou no café, fosse seu vizinho, ou simplesmente o cocheiro do
fiacre que eles tinham tomado, tivesse algo de agradável, Robert, logo advertido pelo ciúme, o
havia notado antes de sua amante; imediatamente via nele um desses seres imundos de que me
falara em Balbec, que pervertem e desonram as mulheres para se divertirem, e suplicava à
amante que desviasse dele os olhares, e por isso mesmo o apontava. Ora, às vezes ela achava
que Robert tinha tido tão bom gosto nas suas suspeitas que acabava mesmo por deixar de
importuná-lo a fim de que ele se tranquilizasse e consentisse em ir dar uma volta, para lhe dar
tempo de entrar em conversação com o desconhecido, muitas vezes de marcar um encontro, e às
vezes até de darem uma escapada. Desde que entramos no restaurante, percebi muito bem que
Robert mostrava preocupação. É que logo havia reparado, o que nos escapara em Balbec, que,
no meio de seus colegas vulgares, Aimé, com um brilho modesto, irradiava, bem
involuntariamente, o romanesco que emana, durante alguns anos, de cabelos finos e de um nariz
grego, graças aos quais ele se distinguia em meio à multidão dos outros criados. Estes, quase
todos de idade avançada, representavam tipos extraordinariamente feios e marcados de padres
hipócritas, de confessores santarrões, mais frequentemente de velhos atores cômicos, cujo crânio
de pão de açúcar não se encontra mais senão nas coleções de retratos expostas no saguão
humildemente histórico dos teatrinhos antiquados, onde são representados como lacaios ou
supremos pontífices, e cujo tipo solene parecia ser conservado por aquele restaurante, graças a
um recrutamento selecionado e talvez a um modo de nomeação hereditário, numa espécie de
colégio inaugural. Infelizmente, Aimé, tendo-nos reconhecido, veio ele próprio atender-nos,
enquanto se escoava para outras mesas o cortejo dos grandes sacerdotes de opereta. Aimé se
informou sobre a saúde de minha avó, pedi-lhe notícias da esposa e dos filhos. E ele as deu com
emoção, pois era um homem muito apegado à família. Tinha um ar inteligente, enérgico, mas
respeitoso. A amante de Robert pôs-se a encará-lo com estranha atenção. Mas os olhos fixos de
Aimé, aos quais uma leve miopia dava uma espécie de profundeza dissimulada, não traíram
qualquer impressão em meio do seu rosto imóvel. No hotel provinciano, onde servira muitos anos
antes de ir a Balbec, o belo desenho, agora um tanto amarelecido e fatigado, que era o seu rosto,
e que durante tantos anos, como certa gravura que representava o príncipe Eugênio, tinham visto
sempre no mesmo lugar, no fundo da sala de jantar ordinariamente vazia, não devia ter atraído
muitos olhares curiosos. Durante muito tempo havia permanecido na ignorância do valor artístico
de seu rosto, certamente por falta de conhecedores, e aliás pouco disposto a fazê-lo notado, pois
era de temperamento frio. Quando muito, uma parisiense de passagem, detendo-se alguma vez
na cidade, teria erguido os olhos para ele, teria pedido que ele fosse servi-la no quarto antes de
voltar para o trem, e, no vazio translúcido, monótono e profundo dessa existência de bom marido
e de doméstico provinciano, Aimé havia enterrado o segredo de um capricho sem amanhã que
ninguém jamais viria descobrir. No entanto, deve ter percebido a insistência com que os olhos da
jovem artista se fixavam nele. Em todo caso, isso não escapou a Robert, em cujo rosto eu via
espalhar-se um rubor não vivo como o que lhe daria uma coloração purpurina se ele tivesse uma
emoção brusca -, porém fraco, esmaecido.
- É muito interessante esse mordomo, Zézette? - perguntou à amante depois de ter
dispensado Aimé com muita brusquidão. - Dir-se-ia que desejas fazer um estudo tirado dele.
- Já começa de novo. Eu tinha certeza!
- Mas o que é que começa, minha pombinha? Se estava errado, já não está aqui quem
falou. Mas ainda assim tenho o direito de te pôr de sobreaviso contra esse lacaio que conheço de
Balbec (sem isso não me importa), e que é um dos maiores velhacos que a Terra já viu.
Ela pareceu querer obedecer a Robert e travou comigo uma conversa literária à qual ele se
misturou. Eu não me aborrecia ao conversar com ela, pois Rachel conhecia muito bem as obras
que eu admirava e mais ou menos estava de acordo comigo em suas apreciações; mas como eu
ouvira dizer, pela Sra. de Villeparisis, que ela não tinha talento, não dava muita importância a essa
cultura. Rachel gracejava com finura sobre mil assuntos, e teria sido verdadeiramente agradável
caso não afetasse, de maneira irritante, o jargão dos teatros e dos ateliês. Estendia-o, aliás, a
tudo e, por exemplo, tendo adquirido o hábito de dizer de um quadro, se era impressionista, ou de
uma ópera, se era wagneriana: "Ah, está certo", num dia em que um rapaz lhe beijara a orelha, e
que, lisonjeado por ter ela simulado um arrepio, bancava o modesto, ela disse: - Sim, como
sensação, acho que está certo. - Mas o que principalmente me espantava era que as expressões
próprias de Robert (e que, aliás, tinham talvez chegado até ele por meio de literatos que ela
conhecia), Rachel as empregava diante dele, e ele diante dela, como se se tratasse de uma
linguagem necessária e sem se darem conta do vazio de uma originalidade que é de todos.
Ao comer, ela se atrapalhava com as mãos a tal ponto que fazia supor que devia se
mostrar muito embaraçada no palco. Só recobrava a destreza no amor devido a essa premonição
tocante das mulheres que amam tanto o corpo do homem que adivinham logo o que dará mais
prazer a esse corpo, todavia tão diverso do seu.
continua na página 73...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Ao comer, ela se atrapalhava com as mãos)
Volume 7
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