terça-feira, 20 de maio de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - O Petit Picpus / IV - Alegrias

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Sexto — O Petit Picpus

IV - Alegrias
     
     Aquelas jovens, porém, nem por isso deixavam de encher aquela severa casa de recordações aprazíveis. 
     Em certas horas fulgurava a infância naquele claustro. Ao tocar ao recreio, uma porta girava nos gonzos, os passarinhos exclamavam: «Bom. Aí vêm as crianças!»
     Inundava aquele jardim, disposto em forma de cruz como uma mortalha, uma irrupção juvenil, e aí principiavam a divagar por aquelas trevas uns rostos radiosos, umas frontes brancas, toda a espécie de auroras. Após os salmos, os sinos, os repiques, as matracas e os o cios, rebentava súbito todo aquele sussurro de criança, sussurro mais agradável do que o das abelhas.
     Abria-se a colmeia da alegria e cada qual tirava o mel que lhe pertencia. Brincavam, chamavam umas pelas outras, reuniam-se em grupos, corriam, ou, sentadas a um canto, tagarelavam em suaves colóquios, mostrando a espaços os alvos dentinhos. De longe os véus vigiavam os risos, as sombras espiavam os raios, mas que importava? Os lábios expandiam-se em risos, as frontes irradiavam de prazer. Aquelas quatro paredes lúgubres tinham também a sua vez de arroubamento, assistindo àquele doce redemoinhar de enxames, vagamente branqueadas pelo reflexo de tamanha alegria.
     Era uma como chuva de rosas que passava pelo meio daquele luto. Folgavam as jovens debaixo da vigilância das religiosas; as vistas, porém, da impecabilidade não incomodam a inocência. Graças àquelas crianças no meio de tantas horas austeras, havia também a hora dos folguedos. As mais pequenas saltavam, as grandes dançavam. Naquele claustro os folguedos eram corados de um reflexo do céu. Não havia coisa mais arrebatadora e augusta do que o livre desabrochar daquelas almas infantis.
      Homero viria ali sorrir em companhia de Perrault. Naquele escuro jardim havia juventude, saúde, sussurro, gritos, vozearia, prazer e ventura suficientes para desenrugar a fronte de todas as avós, tanto as da epopeia como as do conto, tanto as do trono como as da choupana, desde Hecuba até à Mére-Grand.       Ouviram-se naquela casa, mais talvez do que em nenhuma outra, desses ditos de criança que tanta graça têm e que fazem rir com um riso pensa vo. Foi entre aquelas quatro fúnebres paredes que uma criança de cinco anos um dia exclamou: Ó minha mãe! 
     Disse-me uma «grande» que só me faltam nove anos e dez meses para sair daqui. Que felicidade!
     Foi também ali que teve lugar o seguinte memorável diálogo:

Uma madre vocal: — Porque chora, filhinha? 
A criança (de seis anos), soluçando: — Eu disse à Alice que sabia o meu compêndio da história de França e ela disse que eu não o sabia e eu sei-o. 
Alice, a grande (de nove anos): — E não sabe, não, senhora. 
A madre: — Então como foi isso, minha filha? 
Alice: — Disse-me ela que abrisse eu o livro ao acaso e que lhe fizesse a pergunta que lá es vesse, que ela era capaz de responder. 
 — E então? 
— Não foi capaz. 
— Ora vamos lá. Que lhe perguntou a menina? 
— Eu abri o livro ao acaso, como ela dizia, perguntei-lhe a primeira coisa que encontrei. 
— E que pergunta foi? 
— Foi esta: Que aconteceu depois? 

     Foi ali que a respeito de um periquito algum tanto glutão, pertencente a uma senhora recolhida, foi feita a seguinte observação:

 Periquito mais lindo! Come: uma torrada tal qual como a gente!

     Foi no pavimento daquele claustro que alguém achou a seguinte confissão de uma pecadora de sete anos, por ela de antemão escrita para a não esquecer:

— Acuso-me, padre, de ter sido avarenta. 
— Acuso-me, padre, de ter cometido adultério. 
— Acuso-me, padre, de ter erguido os olhos para os senhores.

     Foi num dos bancos de relva daquele jardim que por uma rosada boca de seis anos foi improvisado o seguinte conto, escutado por alguns olhos azuis de quatro e cinco anos:

Uma vez eram três galos numa terra onde havia muitas flores. Pegaram os galos e foram colher flores e meteram-nas nos bolsos. Depois colheram as folhas e puseram-nas às bonecas. Mas nesta terra havia muitos bosques e andava lá um lobo, e vai o lobo comeu os galos.

      E mais este outro poema:

Uma vez deram com um pau num gato. 
Sabidas as contas, tinha sido Polichinelo que lhe havia batido. 
Mas, como ele não fez bem ao gato, fez-lhe mal, pegou então uma senhora e mandou-o prender.

     Foi ali que a uma pequena abandonada, educada por caridade no convento, foi ouvido o seguinte doce e patético dito. Ouvindo, uma vez, estarem as outras a falar de suas mães, murmurou ela no seu canto:

— Cá eu, quando nasci, já não tinha mãe.

      Havia no convento uma rodeira gorda, que andava sempre a correr pelos corredores com o seu molho de chaves à cinta. 
     Era Ágatha o seu nome, porém as «grandes» — para cima de dez anos — chamavam lhe Agatocles.
     O refeitório, grande sala oblonga e quadrada, que só recebia claridade por um claustro de arquivoltas, ao nível do jardim, era um lugar escuro e húmido, como as crianças dizem, cheio de bichos. Todos os lugares circunvizinhos forneciam para ele o seu contingente de insetos. Cada um dos quatro cantos havia recebido, pois, na linguagem das recolhidas, um nome particular e expressivo. Havia o canto das Aranhas, o canto das Lagartas, o dos Bichos-de-conta e o dos Grilos. O dos Grilos ficava ao pé da cozinha e era muito esmado por ser mais quente. Do refeitório haviam os nomes passado para o recolhimento, servindo para distinguir nele, como no antigo colégio de Mazarino, quatro nações. Pertencia cada educanda a alguma das quatro nações, conforme o canto do refeitório em que se sentava às horas de comida. Um dia, andando o arcebispo a fazer a visita pastoral, viu entrar na aula onde se achava uma corada e galante pequenina de belos cabelos louros, e perguntou a outra recolhida, interessante trigueirinha de faces cheias de frescura, que estava ao pé dele:

— Quem é aquela? 
— É uma aranha, Monsenhor. 
— Oh! E a outra? 
— É um grilo. 
— E aquela outra além? 
— É uma lagarta. 
— Na verdade? E então a menina o que é? 
— Eu sou um bicho-de-conta, Monsenhor.

      Cada caso deste gênero tem as suas particularidades. No princípio deste século, Ecouen era um desses lugares graciosos e severos, onde, a uma sombra quase augusta, cresce a infância das donzelas. Em Ecouen, pois, para tomar lugar na procissão do Santíssimo Sacramento, havia disfunção entre virgens e floristas. Havia também «os pálios» e «os turíbulos», conforme pegavam aos cordões do pálio ou iam a incensar o Santíssimo Sacramento. Às floristas pertenciam de direito as flores. Na frente iam quatro «virgens». Na manhã desse dia não era raro ouvir-se perguntar pelos dormitórios:

— Quem é que é virgem?

     Madame Campan citava este dito de uma «pequena» de sete anos a uma «grande» de dezesseis que havia de ir na frente da procissão, enquanto que a outra tinha de ir atrás:

 — Tu és virgem, eu não.

continua na página 376...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - IV - Alegrias
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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