segunda-feira, 26 de maio de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (1b) - A natureza gosta de gente assim

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
1.

continuando...

      A natureza gosta de gente assim e se compraz com ela. E recompensaria logo Ptítsin não com três, mas com quatro casas! E justamente porque ele resolvera desde a infância não ser nunca um Rothschild. Sem embargo, para além de quatro casas não avançará a natureza e o triunfo de Ptítsin terá fim aí. Já a irmã de Gavríl Ardaliónovitch era pessoa bem diferente. Também ela afagava fortes aspirações; mas tais desejos apenas indicavam persistência e jamais impulso. Todas as emergências a encontravam alicerçada em bom senso e a todo o momento se servia disso na vida quotidiana. Não que não pertencesse, também ela, a essa gente “comum” que sonha ser original; cedo, porém, descobriu que não possuía nenhuma originalidade muito particular, mas se importou muito pouco com essa decepção que soube transformar em uma espécie de orgulho. O seu primeiro passo prático, dado com eficiente decisão, foi o de se casar com Ptítsin. Mas, ao se casar, não dissera: “Já que tenho de ser ruim, que o seja então até conseguir o meu fim”, como com certeza a aconselhara seu irmão Gánia, e possivelmente falando alto, ao dar o seu consentimento de irmão mais velho a esse casamento.
     A natureza gosta de gente assim e se compraz com ela. E recompensaria logo Ptítsin não com três, mas com quatro casas! E justamente porque ele resolvera desde a infância não ser nunca um Rothschild. Sem embargo, para além de quatro casas não avançará a natureza e o triunfo de Ptítsin terá fim aí. Já a irmã de Gavríl Ardaliónovitch era pessoa bem diferente. Também ela afagava fortes aspirações; mas tais desejos apenas indicavam persistência e jamais impulso. Todas as emergências a encontravam alicerçada em bom senso e a todo o momento se servia disso na vida quotidiana. Não que não pertencesse, também ela, a essa gente “comum” que sonha ser original; cedo, porém, descobriu que não possuía nenhuma originalidade muito particular, mas se importou muito pouco com essa decepção que soube transformar em uma espécie de orgulho. O seu primeiro passo prático, dado com eficiente decisão, foi o de se casar com Ptítsin. Mas, ao se casar, não dissera: “Já que tenho de ser ruim, que o seja então até conseguir o meu fim”, como com certeza a aconselhara seu irmão Gánia, e possivelmente falando alto, ao dar o seu consentimento de irmão mais velho a esse casamento.

“Mas quem lhe meteu na cabeça que desprezo generais, sendo eu próprio um deles?” - pensava Gánia, ironicamente, lá consigo.

     Por causa só do irmão, resolveu Varvára Ardaliónovna alargar o seu círculo de relações. Habilmente se houve até conseguir ir àcasa dos Epantchín, onde as recordações de infância a deixaram estar à vontade, visto ela e Gánia terem brincado, em crianças, com as meninas Epantchín. Temos de acentuar aqui que, se Varvára Ardaliónovna visitasse os Epantchín à cata de qualquer sonho fantástico, só por isso automaticamente se excluiria da classe de gente em que mentalmente se enfileirara. Mais não ia lá em perseguição de nenhum sonho. Achava-se mais era trabalhando em uma base muito firme; estava apenas calculando bem as peculiaridades da família Epantchín; não se cansando, nunca, de estudar o caráter de Agláia.
     A tarefa que se propusera era a de juntar esses dois, Agláia e o irmão, outra vez. Possivelmente atingiu eficazmente, mas só em dada extensão, esse objetivo; talvez tivesse feito alguns disparates, edificando demais sobre o irmão, esperando dele o que ele nunca, em circunstância alguma, poderia dar. Em todo o caso se comportou em casa dos Epantchín com uma arte considerável; durante semanas e semanas não fizera a menor alusão ao irmão; sempre fora muito sincera e natural, comportando-se com suficiente dignidade. Quanto às profundidades da sua consciência não tinha medo de perscrutá-las, não tendo sequer de que se censurar. Estava nisso a sua força. Só havia uma coisa que percebera em si mesma: também ser vingativa e ter uma boa dose de amor-próprio e até mesmo de vaidade mortificada. Dava-se conta disso principalmente em certos momentos, quase sempre quando voltava para casa vindo de uma dessas visitas aos Epantchín. 
     Agora mesmo, por exemplo, estava de volta de uma dessas suas visitas e, conforme já dissemos, se sentia preocupada e desanimada. Uma sombra de amarga mordacidade era visível em seu mal-estar. Ptítsin ocupava em Pávlovsk uma espaçosa mas não muito atraente casa um tanto feia, em uma rua poeirenta, casa essa que dentro de pouco tempo viria a ser de propriedade sua. (Ele já estava pensando em vendê-la.) Ia Varvára Ardaliónovna a subir os degraus, quando ouviu um barulho fora do comum, lá dentro, chegando até ela as vozes do pai e do irmão, gritando um com o outro. Entrando na sala de visitas deparou com Gánia a andar de um lado para outro, lívido de fúria, todo descabelado. Ela só fez uma coisa: atirou-se para um sofá, sem tirar o chapéu e fechou a cara com ar contrafeito. Mas como sabia que, se deixasse passar um minuto que fosse sem perguntar ao irmão por que razão estava em tal estado, ele certamente se enfureceria com ela também, logo se apressou em comentar, em forma de pergunta:  

- A história de sempre, não é? 
- Que história de sempre! - exclamou Gánia. - A habitual história! Não! Só o diabo sabe o que se passa aqui dentro e que não é, desta vez, a mesma coisa de sempre. O velho está ficando perfeitamente caduco... Mamãe virou uma catadupa de lágrimas. Dou-te a minha palavra de honra, Vária, desta vez ou o ponho na rua, digam o que disserem, ou então me vou eu! - acrescentou imediatamente ao lhe vir à mente não lhe ser possível expulsar ninguém de uma casa que não era a sua.
- Mas não deves ser irredutível. Tens de fazer certas concessões... - murmurou Vária. 
- Concessões? Quais? - exclamou Gánia, inflamando-se. - Concessões aos seus asquerosos hábitos? Não. Vai dizendo o que te vier à cabeça, mas isso é impossível! De que jeito, então, hei de tratá-lo? Ele sabe que errou tremendamente e isso é que o põe ainda mais fora de si! A porta não chega, quer arrombar a parede também para entrar. Por que estás sentada aí assim? Vira-te para mim! 
- Estou como fico sempre! - respondeu Vária, meio desajeitada. Gánía olhou-a com maior atenção.
- Estiveste lá? 
- Estive. 
- Está vendo? Lá está ele a berrar outra vez! Mas isso é insuportável, e ainda por cima, a esta hora! 
- A esta hora, por quê? Que tem agora de especial? 

     Gánia encarou a irmã de maneira ainda mais esquisita e depois perguntou: 

- Descobriste mais alguma coisa? 
- Nada que eu já não esperasse; descobri que tudo é verdade mesmo. Meu marido estava mais perto da realidade do que nós. Está acontecendo justamente o que ele predisse desde o começo. Por falar nisso, onde está ele? 
- Não sei se está em casa, ou se não. Que foi que aconteceu?
- O príncipe está formalmente noivo dela. É coisa resolvida. As mais velhas contaram-me. Agláia consente. Decidiram não encobrir mais. (Houve tanto mistério até aqui!) O casamento de Adelaída será transferido de maneira que os dois casamentos se realizem no mesmo dia. Uma concepção de todo em todo romântica! Inteiramente poética! Farias melhor escrevendo um poema para tal ocasião em vez de estar zanzando pela sala sem propósito. A Princesa Bielokónskaia deve chegar esta noite. Vem mesmo a calhar; haverá recepção. Ele vai ser apresentado à Princesa Bielokónskaia que todavia já o conhece. Creio que a participação será dada a público. Só estão com receio que quebre qualquer coisa ao entrar na sala de visitas ou, pior ainda, que escorregue e caia, o que não é de todo improvável.

     Gánia ouviu com a maior atenção; mas estas notícias, que o deviam ter arrasado, para grande surpresa de sua irmã não pareceram, de modo algum, ter tido qualquer efeito depressivo sobre ele.

- Ora, isso estava mais do que claro - disse, depois de pensar um momento. - E, pois, o fim - acrescentou, com um sorriso estranho, olhando de soslaio para o rosto da irmã e continuando a dar passos pela sala mas não tão apressados.
- Ora, graças, tomas conhecimento disso como filósofo. Fico realmente satisfeita.
- Lógico. É um peso que me sai do espírito. E para ti, também. 
- Penso que te ajudei quanto pude, sinceramente, sem comentários nem aborrecimentos. Nem sequer te perguntei que espécie de felicidade esperavas de Agláia. 
- Ora essa, estava eu esperando... alguma felicidade de parte de Agláia?! 
- Por favor, não metamos filosofia nisso! Naturalmente que estavas. Mas tudo se foi e não há mais nada a fazer. Fomos uns bobos. Devo confessar que nunca tomei o caso a sério. Encarei-o simplesmente como uma probabilidade. Toda a minha presunção se baseava no caráter ridículo dela e o meu único objetivo era te ser agradável. Havia dez probabilidades contra uma de que isso desse em nada. E até hoje não sei o que era que esperavas. 
- Agora, já sei; tu e teu marido tentareis fazer-me arranjar um emprego; dar-me-eis a ler coisas sobre perseverança, força de vontade e de como não se devem desprezar pequenas vantagens e uma porção de coisas mais. Já sei de cor.

     E Gánia riu. Vária calculou: “Ele está me ocultando qualquer plano”.
     Nisto Gánia a interrogou:

- Como foi que eles receberam isso? Ficaram contentes, o pai e a mãe? 
- N... ão. Penso que não. Podes julgar por ti. Iván Fiódorovitch está alegre. A mãe está preocupada. Como pretendente ela nunca o aceitou, sabemos disso muito bem. 
- Não é a isso que me refiro. Que ele é um pretendente inexeqüível, impossível, é evidente. Estou me referindo à atitude deles agora, depois do fato. Qual é a atitude deles agora? Ela já disse que sim, categoricamente?
- Ela até agora ainda não disse que não, eis tudo. E que mais se poderia esperar dela? Sabes muito bem quanto é espinoteadamente esquiva e reservada. Quando criança entrava de gatinhas para dentro do armário e ficava sentada lá dentro para se livrar das vistas. Apesar de ter crescido e ser hoje um florido mastro de quermesse, nessas coisas ainda é a mesma. Não sei, mas creio que, pelo menos do lado dela, ainda pode haver coisa. Dizem que caçoa do príncipe de manhã até de noite só para ocultar os seus sentimentos; mas deve arranjar cada dia, fingidamente, qualquer gracinha para lhe dizer, pois o tolo parece estar no céu, todo radiante. Dizem que está que é uma maravilha vê-lo. Foram elas que me disseram. Mas também me pareceu que as mais velhas estavam mais era rindo de mim. E na minha cara!

     Gánia acabou por franzir o cenho; decerto Vária prosseguia em suas impressões com o fim de lhe comunicar o seu verdadeiro ponto de vista. Mas ouviram, outra vez, lá em cima, nova balbúrdia.

- Tenho de pô-lo para fora! rugiu Gánia, violentamente. como que satisfeito de achar com que vingar a sua tribulação.
- Sim.., para ele ir então nos desgraçar por aí, como já fez ontem!...
- Ontem? A que te referes? Como? Ele então... - e Gánia pareceu ficar terrivelmente alarmado e curioso. 
- Ora, meu caro, pois não soubeste? - e Vária se adiantou para ele.
- O quê! Mas teria ele tido a coragem de ter estado lá? Não pode ser! - exclamou todo vermelho de vergonha e de raiva. - Deus do Céu! Mas vieste de lá, ouviste alguma coisa? O velho esteve lá? Dize logo de uma vez, esteve, ou não?

     E Gánia embarafustou na direção da porta. Vária precipitou-se atrás dele contendo-o com as duas mãos.

- Que é que vais fazer? Onde vais? - perguntou. - Se o expulsas, ele fará pior do que já andou fazendo. Procurará todo o mundo.
- Que foi ele fazer lá? Que foi que elas disseram?
- Ora, nem elas próprias puderam contar-me, pois não entenderam nada; apenas as deixou assustadas. Foi à procura de Iván Fíódorovitch, que não estava. Então pediu para ver Lizavéta Prokófievna. Primeiro lhes pediu um lugar; queria um emprego; depois começou a se queixar de nós. De mim, de meu marido, de ti, especialmente... Falou uma porção de asneiras. 
- Não chegaste a saber o quê? - Gánia contraía-se histericamente. 
- Como poderia eu? Se nem ele sabia o que estava a dizer. Ou quem sabe se acharam melhor não me contar tudo? 

     Gánia deu um soco na cabeça e foi para a janela. Vária sentou-se rente à outra janela. 

- Aquela Agláia é uma criatura absurda - observou inopinadamente. - Imagina tu que me deteve só para me dizer: “Tenha a bondade de apresentar os meus especiais respeitos a seu pai. Certamente ainda terei, um dia destes, a oportunidade de revê-lo”. E disse isso com ar tão sério. Que coisa terrivelmente extravagante! 
- Mas não foi zombando? Não foi zombando? 
- Foi como acabei de dizer. Não foi zombando, mas foi esquisito... entendes? 
- Saberá ela alguma coisa a respeito do velho, ou não? Que achas? 
- Não paira no meu espírito a menor dúvida de que eles, na família, nada saibam. Mas a tua pergunta me despertou um pressentimento: talvez Agláia saiba. Talvez seja a única a saber, mesmo porque notei quando ela mandou seus cumprimentos a papai, de maneira tão cerimoniosa, que as irmãs ficaram surpreendidas. Por que só para ele, em particular? Se ela sabe, só poderia ter sido o príncipe quem lhe contou. 
- Não é difícil adivinhar quem lhe contou. Um ladrão! Era só o que nos faltava! Um ladrão na nossa família, “o chefe da casa”! 
- Não digas asneiras. - Vária acabou perdendo a paciência. - Coisa de bêbado, eis tudo. E quem arranjou a história? Liêbediev, o príncipe... só servem para a mesma canga! São uns sabidões. Não ligues! 
- O velho é um gatuno e um bêbado - prosseguiu Gánia, amargamente. - Eu não passo de um pedinte, o marido de minha irmã é um agiota, que atraente perspectiva para Agláia! Um inefável estado de coisas, lá isso não há dúvida! 
- Mas esse marido de tua irmã, mesmo sendo um agiota... está... 
- ... me aguentando aqui? Não é o que quiseste dizer? Não adoces o caso, é favor. 
- Não emburres - disse Vária, modificando-se. - Não passas de um colegial; não compreendes coisa alguma. Pensas que tudo isso te deprime aos olhos de Agláia! Não a conheces. Queres saber qual é o sonho dela? Dar o contra no pretendente mais precioso e fugir, de bom grado, com não importa qual estudanteco para ir morrer de fome em uma água-furtada! Nunca chegaste a entender quanto ela se interessaria por ti, e o que virias a ser aos seus olhos, se tivesses tido a habilidade de suportar o nosso ambiente com orgulho e fortaleza. O príncipe fisgou-a, em primeiro lugar porque não a andou pescando; e em segundo lugar porque é considerado por todo o mundo como um idiota. Só o fato de estar se servindo dele para assombrar a própria família é uma alegria para ela. Ah! Não compreendes absolutamente nada!
- Bem, veremos se compreendo, ou não - murmurou Gánia de modo enigmático - Seja como for, incomoda-me saber ela alguma coisa a respeito do velho... Acho que o príncipe seria capaz de dar com a língua nos dentes. E também me parece que obrigou Liébediev a ficar calado, pois não lhe consegui arrancar nada quando insisti em saber.
- Conforme estás vendo, o fato se propalou. Alguém foi. Claro que não incluímos o príncipe em uma coisa dessas. Aliás, que importância tem isso? E que é que estás esperando? Mesmo que te restasse alguma esperança, qual podia ser senão uma: ela considerar-te como um mártir...?
- Apesar de toda a sua propensão romântica, ela se acobardaria com um escândalo. Está tudo resolvido, mas apenas até certo ponto e debaixo de cautela. As mulheres são todas iguais.
- Dizes que Agláia se acobardaria? - inflamou-se Vária olhando para o irmão desdenhosamente. – Tens mesmo uma alminha insignificante. Tu e o teu bando sois gente à-toa. Ela pode ser excêntrica e ridícula, mas é mil vezes mais generosa do que qualquer de nós. 
- Está certo, está certo. Não é preciso emburrares - retorquiu Gánia, de modo complacente. 
- Tenho pena de mamãe; o resto não me importa - continuou Vária. - Temo que esse escândalo referente a papai chegue aos seus ouvidos. Ah! Receio muito. 

     Ao que o irmão ponderou:

- Não tenhas dúvida de que já chegou.

     Vária, que se levantara para ir até lá em cima com Nina Aleksándrovna, estacou, encarando o irmão com muita curiosidade.

- Quem lhe poderia ter dito? 
- Ippolít, muito provavelmente. A maior satisfação da sua vida seria poder comunicar o caso a mamãe logo que se mudasse para aqui. Garanto! 
- Mas como teria ele sabido? Dize, anda, fala! O príncipe e Liébediev devem ter guardado segredo. Kólía, por sua vez, ignora tudo. 
- Foi Ippolít! Descobriu sozinho. Não imaginas que besta manhosa ele é. Que alcoviteiro! Que língua! Que faro que tem para descobrir qualquer coisa ruim, seja a espécie que for de escândalo. E por mais incrível que te pareça, tenho a certeza de que tem a pretensão de querer se insinuar junto de Agláia. Se ainda não arranjou meios, arranjará. Rogójin também já o conhece, e demais. Nem sei como o príncipe ainda não notou isso. Esse Ippolít tem uma sede de me liquidar! Considera-me seu inimigo pessoal. Percebi isso há bastante tempo... Por que e com que fim, agora que está para morrer, não posso atinar. Mas eu ficarei com a melhor. Verás como quem se liquida é ele, e eu fico invulnerável...
- Por que o atraíste para cá, se o detestas? Liquidá-lo, valerá a pena? 
- Tu mesma não me aconselhaste a atraí-lo para a nossa casa? 
- Pensei que te conviesse. Já soubeste que se apaixonou por Agláia e que lhe tem escrito?... Consta até que escreveu a Lizavéta Prokófievna. 
- Por esse lado ele não oferece perigo - respondeu Gánía, com um sorriso de pouco caso - e é muito provável até que isso não passe de uma invenção. Quanto a estar apaixonado pode muito bem ser, pois é rapaz. Mas.., escrever cartas anônimas à velha, não chegaria a tanto. Ele não passa de uma mediocridade insignificante e desprezível, mas enfatuada. Estou convencido que, se falou com ela a meu respeito, me pintou como um aventureiro sórdido; deve, no mínimo, ter começado por aí. Confesso que fui leviano, no começo, abrindo me demais com ele. É que cuidei que, para se vingar do príncipe, trabalhasse pelos meus interesses. Mas é muito manhoso, o bruto! Só agora é que o compreendo inteirinho por dentro. Só podia ter ouvido da própria mãe, a viúva do capitão, essa história de furto. E todavia o que levou o velho a isso foi ela própria. Sim, foi por causa dessa mulher. Uma vez, sem mais aquela, me disse que o general prometera quatrocentos rublos à mãe. E disse isso sem quê nem para quê, absolutamente sem a menor cerimônia. Então compreendi tudo. Lembro me da cara com que me disse isso, fitando-me com uma espécie de júbilo. E com certeza foi contar à mamãe também pelo simples prazer de lhe machucar o coração. E como é que neste mundo, onde tanta coisa acontece, não acontece ele morrer, explica-me! Garantiu morrer em três semanas. E não é que o estupor está até engordando? Já tosse menos; ainda na noite passada me disse que já havia dois dias que não escarrava sangue.
- Bota-o pra fora. 
- Não penses que o odeio, não! Eu o desprezo! - Gánia pronunciou isso com orgulho. - Ora! Odeio-o sim! Se odeio! - exclamou repentinamente, com extraordinário arrebatamento. - E lhe direi na cara, mesmo que esteja na cama a morrer! Ah! Se lesses a tal confissão dele!... Senhor Deus, a ingenuidade da sua insolência! É direitinho um Tenente Pirogóv, um Nozdrióv bancando o trágico, e acima de tudo é um cachorro! Oh! Como me faria bem malhá-lo até achatá-lo, apenas para ver com que cara ficava! Agora, como está liquidado, quer a todo custo se vingar nos outros... Mas que é isto? Que barulheira é essa, outra vez? Não tolero mais isso, Ptítsin! - gritou ele para o cunhado que entrava na sala. - Que significa isso? Onde vamos parar? Mas isto é... mas isto é... 

     E a algazarra se aproximava precipitadamente. A porta se escancarou de repente, surgindo o velho Ívolguin, colérico, fora de si a descompor Ptítsin, em uma extrema agitação. O velhote era seguido por Nina Aleksándrovna. Kólia e Ippolít. que apareceu por último.

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (1b) - A natureza gosta de gente assim
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