sexta-feira, 9 de maio de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - O Petit Picpus / III - Severidades

 Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sexto — O Petit Picpus

III - Severidades
     
     A que é admitida, é pelo menos dois anos postulante e às vezes quatro, ao que se devem acrescentar outros quatro anos de noviciado. É raro, por consequência, que alguma faça os votos definitivos antes dos vinte e três ou vinte e quatro. As bernardas beneditinas de Martin Verga não admitem viúvas na sua ordem. 
     Nas suas celas entregam-se a muitas macerações em segredo, de que nunca devem falar. 
     No dia em que uma noviça faz a sua profissão, adornam-na com os seus mais belos enfeites, põem-lhe uma grinalda de rosas brancas, alisam-lhe e dispõem-lhe o cabelo em caracóis e em seguida a noviça prostra-se e as outras estendem-lhe por cima um véu preto e cantam-lhe o ofício de defuntos. Dividem-se então as religiosas em duas fileiras; uma passa próximo da noviça, dizendo com acento lastimoso: Morreu a nossa irmã! E a outra responde em voz retumbante: Mas vive em Jesus Cristo!
     Na época em que se passa esta história havia um recolhimento de meninas adjunto ao convento. Recolhimento de donzelas nobres, pela maior parte ricas, entre as quais se distinguiam as meninas de Sainte-Aulaire e de Bélissen e uma inglesa que tinha o ilustre nome católico de Talbot. Cresciam estas donzelas, educadas por aquelas religiosas entre quatro paredes, no horror do mundo e do século. Um dia, dizia-nos uma delas: Só o ver as pedras da rua fazia-me estremecer dos pés à cabeça! Andavam vestidas de azul com uma touca branca na cabeça e uma pomba figurando o Espírito Santo ao peito, de cobre ou prata dourada. Em certos dias santos de guarda, com especialidade no dia de Santa Marta, concedia-se-lhes, como subido favor e suprema ventura, vestirem-se de religiosas e fazerem os ofícios e as práticas de S. Bento em todo o dia.
      Nos primeiros tempos, as religiosas emprestavam-lhes os seus vestidos pretos; porém, como isto parecesse profano, a prioresa proibiu-o e só foi permitido tal empréstimo às noviças. É para notar que estas representações, decerto toleradas e favorecidas no convento por um secreto espírito de proselitismo e para fazer antegostar àquelas crianças o santo hábito, fossem uma ventura real e uma verdadeira recreação para as recolhidas. Era para elas um passatempo com que a sua simplicidade engraçava por ser uma coisa nova, uma coisa que as mudava. Cândidas razões infantis, que não chegam, todavia, a fazer-nos compreender, a nós mundanos, a felicidade de pegar num hissope e estar de pé horas seguidas a cantar em quarteto diante de uma estante de coro.
      Nas austeridades, as educandas quase se conformavam com todas as práticas do convento. Donzela houve que ainda depois de voltar ao mundo, e após muitos anos de casada, não chegara a perder o costume de dizer apressadamente: Para sempre!, todas as vezes que alguém batia à porta. Do mesmo modo que as religiosas, as educandas, só viam os parentes no locutório e nem mesmo as mães obtinham permissão de as abraçar. Aí vai um exemplo que prova até onde chegava a severidade a este respeito. Um dia, foi uma educanda visitada por sua mãe, que trazia na sua companhia uma outra filhinha de três anos. Debulhava-se esta em lágrimas, porque queria abraçar a irmã. 
     Impossível. Suplicou a mãe que fosse ao menos permitido à criança passar a mãozinha pelos varões da grade para a irmã lhe poder beijar. Foi-lhe também recusado, quase escandalosamente.

continua na página 374...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - III - Severidades
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - IV - Alegrias
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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