A Montanha Mágica
Capítulo V
.
O Dr. Behrens, com as mãos nos bolsos, balouçava-se alternadamente nos calcanhares e
nas pontas dos pés, enquanto contemplava a sua obra em companhia dos visitantes.
– Folgo em ver, meu caro colega – disse –, folgo até muito em ver que o senhor
compreende as minhas intenções. É com efeito útil e nunca prejudica saber também o que se
passa debaixo da epiderme, a ponto de ser capaz de pintar um pouco daquilo que propriamente
não se vê. Em outras palavras: é bom manter com a natureza ainda uma outra relação que não a
puramente lírica. Vamos dizer que não faz mal que a gente exerça acessoriamente a profissão de
médico, fisiólogo ou anatomista, e tenha alguns conhecimentos discretos dos dessous. Diga o
senhor o que quiser, mas isso tem as suas vantagens e dá, indiscutivelmente, uma certa
superioridade. Nessa pele aí há ciência. O senhor pode examiná-la com o microscópio para
controlar a verdade orgânica. Nela, o senhor não vê apenas as camadas mucosas e córneas da
epiderme, mas também, representado na ideia, o que está embaixo, o tecido do derma, com suas
glândulas sudoríparas e sebáceas, com os vasos de sangue e com as papilas; e ainda mais abaixo
deve-se imaginar a túnica adiposa, a almofada, sabe? a base que, com as suas numerosas células
de gordura, produz as lindas formas femininas. O que se sabe e se pensa, durante o ato criador,
também se faz sentir. Guia a nossa mão e causa os seus efeitos; não existe, e todavia existe de
alguma forma. E é isso o que dá vida.
Hans Castorp estava todo entusiasmado por essa palestra. Sua testa tingira-se de rubor.
Seus olhos brilhavam. Ele não sabia o que responder em primeiro lugar, tanta coisa tinha a dizer.
Antes de mais nada, se propunha tirar o quadro da parede da janela e colocá-lo num lugar mais
favorável; além disso desejava comentar as observações do conselheiro a respeito da pele, que lhe
interessavam vivamente; e finalmente tencionava expressar um pensamento geral e filosófico que
lhe ocorrera, e ao qual conferia particular importância. Enquanto levava as mãos ao quadro para
dependurá-lo, começou a falar apressadamente:
– Sim, senhor! Sim, senhor! Tem razão, isto é importante. Eu queria dizer... Ou melhor, o
senhor disse: “Ainda uma outra relação...” Seria bom manter além da relação lírica – acho que foi
assim que se expressou –, além da relação artística, digo eu, ainda uma outra; numa palavra:
convém olhar os objetos ainda sob outro aspecto, por exemplo, o aspecto médico. Isso é cem
por cento certo – desculpe, doutor –, mas acho mesmo essa opinião sumamente acertada, porque
não se trata, no fundo, de relações e aspectos fundamentalmente diferentes, mas, em realidade, de
um só ponto de vista. São apenas modificações dele, quero dizer: matizes, ou talvez variantes do
mesmo interesse geral, do qual a atividade artística também é apenas uma parte e uma expressão,
se assim posso dizer... Ora, com sua permissão, vou tirar o quadro deste lugar, onde não recebe
luz nenhuma. Espere, vou colocá-lo aqui no divã, para ver se não... Bem, eu queria dizer: de que
se ocupa a ciência médica? Claro que não entendo nada do assunto, mas sei, afinal, que se ocupa
do homem. E o direito, a legislação e a jurisprudência? Também do homem! E a lingüística, que
ordinariamente anda ligada ao exercício da profissão pedagógica? E a teologia, a cura das almas, o
sacerdócio? Todos eles se ocupam do homem; todos são apenas variações de um e mesmo
interesse importante e capital, a saber, o interesse pelo homem; são, numa palavra, as profissões
humanísticas, e quem quer estudá-las aprende como fundamento antes de tudo as línguas
clássicas, não é isso? para obter uma cultura formal, como dizem. O senhor talvez se admire de
que eu fale assim, eu que não sou mais que um técnico, de formação científica. Mas, enquanto
estava acamado, meditava freqüentemente sobre isso, e me parece coisa excelente, parece-me
maravilhoso basear-se cada profissão humanística no elemento formal, na idéia da forma, da bela
forma, não é mesmo?... Isso empresta a tudo um caráter tão nobre, tão desinteressado, e dá à
coisa um quê de sentimento e de... cortesia... O interesse transforma-se quase que numa proposta
galante... quer dizer – provavelmente não emprego os termos próprios –, mas a gente vê como o
espírito e a beleza se misturam e no fundo nunca deixaram de ser idênticos... Em outras palavras:
a ciência e a arte... de maneira que o exercício das artes constitui também uma parte integrante do
conjunto, como quinta faculdade por assim dizer, e que não é diferente de uma profissão
humanística, uma variante do interesse humanístico, uma vez que seu tema mais importante e sua
preocupação principal são outra vez o homem, como o senhor deve admitir. É verdade que eu só
pintava navios e marinhas, quando na minha juventude fiz tentativas nesse sentido; mas o que há
de mais atraente na pintura é a meu ver o retrato, porque tem por objeto imediato o homem. Foi
por isso, doutor, que lhe perguntei logo se o senhor já linha feito ensaios nesse campo... Não
acha que este lugar seria muito mais favorável ao quadro?
Tanto Behrens como Joachim olhavam-no como para verificar se não se envergonhava
do seu discurso improvisado. Mas Hans Castorp estava por demais absorto pelo seu assunto para
se acanhar. Mantendo o quadro junto da parede do sofá, esperava que lhe respondessem se estava
ou não mais bem iluminado ali. Nesse instante, a criada trouxe, numa bandeja, água quente, um
fogareiro a álcool e xícaras paia café. O conselheiro mandou-a levar tudo ao gabinete de fumar e
disse, dirigindo-se a Hans Castorp:
– Neste caso deveria interessar-se menos pela pintura do que pela escultura... Tem razão,
neste lugar recebe muito mais luz. Se o senhor acha que o quadro suporta tanta... Quero dizer,
pela plástica, porque ela lida mais pura e mais exclusivamente com o homem em geral... Mas
devemos prestar atenção para que a água não se evapore completamente.
– Pois é, a plástica – disse Hans Castorp, enquanto passavam de uma peça a outra.
Esquecendo-se de pendurar o quadro novamente ou de colocá-lo no chão, levou-o consigo ao
gabinete contíguo. – Não há dúvida, numa Vênus grega ou num tipo de atleta, o elemento
humanístico mostra-se com a maior nitidez. No fundo é esse o gênero autêntico, a arte
genuinamente humanística, para quem reflete bem...
– Ora, quanto à pequena Chauchat – observou o conselheiro –, acho que ela é antes um
motivo pictórico. Parece-me que Fídias ou aquele outro sujeito cujo nome tem uma desinência
judaica teriam torcido o nariz a esse tipo de fisionomia... Diga, que é que o senhor está fazendo
aí? Por que anda passeando com esse troço?
– Perdão, vou encostá-lo no pé da minha cadeira; ali fica bem, por enquanto... Mas os
escultores gregos pouco se preocupavam com a cabeça; o que lhes importava era o corpo. Talvez
seja este o elemento verdadeiramente humanístico... E o senhor acha que a plasticidade das
formas femininas é só gordura?
– Gordura e nada mais – disse em tom categórico o conselheiro, que acabava de abrir um
armário embutido e tirara dele os apetrechos necessários para o preparo de café: um moinho
turco em forma de tubo, uma canequinha de cabo comprido, o recipiente duplo para açúcar e
café moído – tudo de latão. – Palmitina, oleína, estearina – acrescentou, enquanto derramava de
uma lata os grãos de café dentro do moinho e começava a dar voltas à manivela. – Estão vendo,
eu mesmo faço tudo, desde o início. Assim o café fica duas vezes melhor... Pois é gordura! Que
pensava o senhor? Que fosse ambrosia?
– Não, eu já sabia disso, e contudo é curioso ouvi-lo assim explicado – respondeu Hans
Castorp.
Estavam sentados num canto, entre a porta e a janela, em torno de um tamborete de
bambu, que suportava uma bandeja de latão, ornada de motivos orientais, onde o aparelho de
café encontrara um lugar no meio de utensílios para fumantes. Joachim instalara-se ao lado de
Behrens, numa otomana abundantemente guarnecida de almofadas de seda; Hans Castorp numa
poltrona provida de rodinhas, na qual apoiara o retrato de Mme. Chauchat. Tinham sob os pés
um tapete multicor. O conselheiro áulico deitou colheradas de café e de açúcar na canequinha de
cabo comprido, acrescentou água e fez o líquido ferver em cima do fogareiro a álcool. A bebida
derramada nas xícaras enfeitadas com um padrão de cebolas tinha uma espuma escura, e seu
sabor era tão forte quanto doce.
– Com as formas do senhor é a mesma coisa – continuou Behrens.– A sua plasticidade, se
é que se pode falar dela, é também gordura, embora não haja tanta como nas mulheres. Entre
nós, a gordura normalmente não vai além da vigésima parte do peso do corpo, ao passo que nas
mulheres costuma ser a décima sexta parte. Sem a camada adiposa embaixo da nossa pele,
ficaríamos como uns fungões. Com os anos, ela se vai, e então se produz o famoso drapejamento
de rugas pouco estéticas. Onde aquela camada tem a maior espessura é no peito, no ventre e nas
coxas da mulher, numa palavra, em toda parte onde encontramos alguma coisa para divertir o
coração e a mão. As plantas dos pés também são gordurosas e cosquentas.
Hans Castorp fazia girar entre as mãos o moinho de café em forma de tubo. Como o
resto do conjunto, era antes de origem indiana ou persa do que turca; assim o indicava o estilo
dos ornamentos gravados no latão, cujas superfícies brilhantes se destacavam do fundo baço.
Hans Castorp contemplou-os, sem entender, a princípio, do que se tratava. Quando
compreendeu, corou violentamente:
– Pois é, são utensílios só para homens – disse Behrens. – Por isso, mantenho-os
guardados a chave. A boa da minha cozinheira poderia ter maus pensamentos. Mas parece-me
que aos senhores isto não pode fazer mal. Ganhei essas coisas de uma paciente, uma princesa
egípcia que nos deu a honra de permanecer entre nós durante um ano. Veja, o desenho se repete
em todas as peças. Gozado, hein?
– Sim, é mesmo curioso – respondeu Hans Castorp. – Ah, não, a mim não me
impressiona. Seria até possível dar a esses ornamentos uma interpretação séria e solene, ainda que
eles fiquem um pouco impróprios para um serviço de café. Ouvi dizer que os antigos
representavam isso nos ataúdes. Para eles, o obsceno e o sagrado eram, de certo modo, uma e a
mesma coisa.
– Ora, quanto àquela minha princesa – disse Behrens, creio que ela se interessava mais
pelo obsceno. Também ganhei dela uns excelentes cigarros, coisa extrafina, que só ofereço em
ocasiões excepcionais. – E tirou do armário uma caixa de cores berrantes, que apresentou aos
hóspedes, Joachim fez que não, juntando os tacões. Hans Castorp serviu-se e fumou o cigarro
extraordinariamente grosso e comprido, adornado de uma esfinge impressa em ouro, e que de
fato era maravilhoso.
– Tenha a bondade, senhor conselheiro – pediu Castorp –, de nos contar mais alguma
coisa sobre a pele. – Voltara a pôr nos joelhos o retrato de Mme. Chauchat e contemplava-o,
reclinado na poltrona, com o cigarro entre os lábios. – Não precisamente da túnica adiposa –
continuou. – Dela já sabemos bastante. Mas da pele humana em geral, que o senhor pinta com
tanta perfeição.
– Da pele? Interessa-se pela fisiologia?
– Sim, senhor, muito. Sempre tive grande interesse por essa matéria. O corpo humano é
um assunto que sempre me preocupou extremamente. Muitas vezes já me perguntei se não
deveria ter estudado medicina. Sob certos aspectos, creio que me teria dado muito bem com essa
profissão. Pois quem se interessa pelo corpo também se interessa pela doença, e principalmente
por ela. Não tenho razão? Por outro lado, isso não quer dizer grande coisa, uma vez que eu teria
podido dedicar-me a diversas profissões. Por exemplo, seria possível que eu escolhesse o
sacerdócio.
– Não diga!
– Sim, senhor! Às vezes tenho a impressão passageira de que, talvez, a minha vocação seja
esta.
– Por que, então, se fez engenheiro?
– Por acaso. Acho que o que me decidiu foram as circunstâncias exteriores.
– Hum, quanto à pele! Que quer o senhor que lhe conte do seu ectoderma? É o seu
cérebro externo, sabe? Ontogeneticamente falando, tem a mesmíssima origem que o aparelho dos
chamados órgãos sensitivos superiores, aí em cima, no seu crânio. O senhor deve saber que o
sistema nervoso central é apenas uma leve modificação da camada exterior da pele; nas espécies
inferiores do reino animal ainda não existe a diferença entre central e periférico. Esses bichos
servem-se da pele para cheirar e para saborear, compreende? Toda a sua sensualidade reside na
pele, o que deve ser bastante agradável, para quem for capaz de se imaginar no lugar deles. Nas
criaturas altamente desenvolvidas, porém, criaturas como o senhor e eu, a ambição da pele limita
se à faculdade de sentir cócegas. A pele não passa então de um órgão protetor e transmissor, mas
que presta uma atenção infernal a tudo quanto nos possa ofender o corpo. Estende mesmo para
fora uma antenas de tato, o velo do nosso corpo, os pelos fininhos que se compõem somente de
células endurecidas e permitem sentir a menor aproximação, muito antes de a própria pele ser
tocada. Cá entre nós: é até possível que a função defensiva e protetora da pele não se restrinja
exclusivamente à esfera física... O senhor sabe de que maneira fica ruborizado e pálido?
– Só vagamente.
– Devo confessar que nem nós mesmos o sabemos com absoluta precisão, pelo menos
no que se refere ao rubor. O assunto não foi ainda completamente esclarecido, pois por enquanto
não conseguimos demonstrar nos vasos de sangue a existência de músculos dilatadores que sejam
postos em ação pelos nervos vasomotores. Por que intumesce a crista do galo – ou que outros
exemplos de jactância se possam citar – é, por assim dizer, um mistério, tanto mais quando se
trata de uma influência psíquica. Supomos que haja ligações entre a camada cortical do cérebro e
o centro vascular da medula oblongada. E, devido a certos estímulos – por exemplo, quando o
senhor se sente muito envergonhado –, entra em jogo essa ligação e começam a agir os nervos
vasculares que vão em direção ao rosto; então se dilatam e se enchem os vasos capilares que ali se
acham, de maneira que o senhor anda com a cabeça feito um peru e está todo túmido de sangue e
mal pode abrir os olhos. Em outros casos, porém, quando nos espera Deus sabe o quê, uma coisa
de tremenda beleza talvez, contraem-se os vasos capilares da pele, que então se torna pálida, fria e
murcha, e o senhor fica que nem um cadáver, de tanta emoção, com as órbitas lívidas como
chumbo e com um nariz branco, afilado, enquanto o nervo simpático faz o coração martelar
loucamente.
– Ah! Então é assim que isso acontece?
– Mais ou menos. São reações, sabe? Mas, uma vez que todas as reações e todos os
reflexos têm uma finalidade inerente, chegamos nós, os fisiólogos, a supor que também esses
fenômenos secundários de emoções psíquicas são, no fundo, meios adequados de defesa, reflexos
protetores, como, por exemplo, o arrepio. Sabe o senhor donde nos vêm os arrepios?
– Com franqueza, também não sei claramente.
– Aí se trata de um trabalho das glândulas sebáceas da pele que segregam o sebo cutâneo,
uma substância albuminosa gordurenta, que não é lá muito apetitosa, sabe?, mas conserva a pele
macia, evita que ela se grete ou rasgue, e a torna agradável ao tato. Nem se pode imaginar que
sensação nos daria o contato com a pele humana não fosse a colesterina. Essas glândulas
sebáceas dispõem de pequenos músculos orgânicos capazes de pô-las num estado de ereção, e
quando fazem isso, sucede ao senhor o mesmo que aconteceu àquele rapaz sobre o qual a
princesa derramou um balde cheio de lambaris: sua pele fica feito um ralador, e quando a
excitação é muito forte, até se levantam os folículos pilosos; seus cabelos eriçam-se na cabeça e os
pelos, no corpo, exatamente como se dá com um porco-espinho que se defende. Então poderá o
senhor afirmar que chegou a conhecer o horror.
– Ora – disse Hans Castorp –, a esse ponto já cheguei várias vezes. Até mesmo me ocorre
facilmente horrorizar-me nas mais diversas ocasiões. O que me admira é apenas que essas
glândulas se ericem em circunstâncias tão diferentes. Quando alguém risca um vidro com um
lápis de pedra, fica-se com arrepios, e uma música especialmente linda me produz o mesmo
efeito. Quando, por ocasião da minha confirmação, fui comungar, tive estremecimentos e
arrepios que não acabavam mais. E estranho quanta coisa põe em ação aqueles pequenos
músculos.
– Pois é – disse Behrens. – Um estímulo vale o outro. O corpo pouco se importa com o
porquê dos estímulos. Sejam lambaris, seja a Santa Ceia, as glândulas sebáceas reagem eriçando
se.
- Senhor conselheiro – disse Hans Castorp, contemplando o retrato que tinha sobre os
joelhos –, há mais uma coisa que eu gostaria de saber. O senhor acaba de falar de processos
interiores, da circulação linfática, etc. Como é isso? Eu desejaria ouvir mais a esse respeito, sobre
a circulação linfática, por exemplo, se o senhor tivesse a bondade... O assunto me interessa
vivamente...
– Acredito – tornou Behrens. – A linfa é o que há de mais fino, mais íntimo e mais
delicado em toda a oficina do corpo. Parece que o senhor tem uma vaga ideia disso, desde que
me faz essa pergunta. Sempre falam do sangue e dos seus mistérios, e dizem que é um suco todo
especial. Mas a linfa é o sumo do suco, a essência, sabe?, o leite do sangue, um líquido delicioso...
Após uma alimentação gordurosa tem até a aparência de leite. – E jovialmente, servindo-se da sua
linguagem colorida, pôs-se a descrever o sangue, esse caldo de gordura, albumina, ferro, açúcar e
sal, vermelho como uma capa de teatro, preparado pela respiração e pela digestão, saturado de
gases e carregado de escória produzida pelo processo de renovação, esse caldo de uma
temperatura de 38 graus centígrados, que era impelido pela bomba do coração através dos vasos e
promovia, em todas as partes do corpo, o metabolismo, o calor animal, numa palavra, a nossa
preciosa vida. Explicou que o sangue não chega diretamente até as células, mas que a pressão
exercida sobre ele o fazia transpirar um extrato ou sumo leitoso através das paredes dos vasos, de
modo a penetrar em todo lugar, enchendo quaisquer interstícios e dilatando ou distendendo o
elástico tecido celular. Era isso o tônus dos tecidos, o turgor, e graças ao turgor, por sua vez,
acontecia que a linfa, depois de ter untado amenamente as células e de ter realizado com elas uma
permuta de substâncias, era enviada aos vasos linfáticos e voltava ao sangue, à razão de um litro e
meio por dia. E o conselheiro discorreu sobre o sistema de condução e de sucção dos vasos
linfáticos, tratou do canal lactífero que recolhia a linfa das pernas, do ventre, do peito, de um dos
braços e de um lado da cabeça. Passou a falar de uns delicados órgãos – filtros que se
encontravam em muitos lugares dos vasos linfáticos –, os chamados gânglios, situados no
pescoço, nas axilas, nas articulações do cotovelo, nos jarretes e em outros lugares igualmente
íntimos e suaves do corpo. – Aí se podem formar inchações -– explicou Behrens – e é
precisamente disso que partimos. Intumescem, por exemplo, os gânglios linfáticos nos jarretes ou
nas articulações dos braços, formam-se aqui ou ali tumores semelhantes aos hidrópicos, e quando
isso se dá, há sempre um motivo, ainda que pouco simpático. Em certas circunstâncias torna-se
então mais que óbvio o diagnóstico de uma obstrução tuberculosa dos vasos linfáticos.
Hans Castorp permaneceu calado. – Pois é – disse baixinho, depois de uma longa pausa –
isso mesmo. Eu facilmente poderia ter me tornado médico. O canal lactífero... A linfa das
pernas... Essas coisas me interessam muito... Que é o corpo? – exclamou de repente, com
impetuosidade. – Que é a carne? Que é o organismo humano? De que se compõe? Explique-nos
ainda isso, senhor conselheiro! Explique-o de uma vez, para que a gente fique sabendo!
– É de água – respondeu Behrens. – Parece que o senhor se interessa também pela
química orgânica. Na sua maior parte, o corpo humano consta de água, nada mais nada menos, e
não vejo razão de se exaltar por causa disso. A substância seca não vai além de vinte e cinco por
cento do total, sendo que vinte por cento disso são simples clara de ovo, proteínas -se é que o
senhor prefere esse termo mais distinto –, às quais se acrescenta apenas um pouquinho de
gordura e de sal. É quase só isso.
– E essa clara de ovo, que é?
– Uma porção de elementos: carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, enxofre, às vezes
também um pouco de fósforo. Mas o senhor desenvolve uma curiosidade exuberante. Há
também proteínas que se apresentam ligadas a hidratos de carbono, isto é, glicose e amido. Na
velhice, a carne torna-se dura, o que vem do fato de aumentar o colágeno no tecido conjuntivo; a
cola, sabe?, que é a parte essencial dos ossos e das cartilagens. Que mais quer que eu lhe conte?
Temos no plasma muscular uma proteína, o miosinogênio, que no corpo morto coagula,
formando a fibrina muscular e produzindo a rigidez cadavérica.
– Ah, sim, a rigidez cadavérica! – disse Hans Castorp alegremente. – Muito bem, muito
bem. E depois vem a análise geral, a anatomia do túmulo.
– Sim, naturalmente. O senhor formulou isso de modo muito bonito. Então a coisa
torna-se um tanto extensa. A gente se esparrama por assim dizer. Não se esqueça de toda aquela
água! E os outros ingredientes são pouco duráveis sem a ação da vida. Em virtude da putrefação,
decompõem-se em combinações mais simples, de natureza anorgânica.
– Putrefação, decomposição – disse Hans Castorp. – Não é isso um processo de
combustão, uma combinação com o oxigênio, se não me engano?
– Exatamente, há uma oxidação.
– E a vida?
– Também. Também, meu rapaz. Aí também há uma oxidação. A vida é essencialmente
uma combustão das proteínas das células, donde provém esse agradável calor animal que às vezes
é excessivo. Pois é, viver é morrer, nesse ponto não adianta dissimular. Trata-se de uma destruction
organique, como algum francesinho, na sua leviandade inata, qualificou a vida. Ela também cheira
assim, e quando temos uma impressão contrária é porque o nosso juízo não é imparcial.
– E quem se interessa pela vida – prosseguiu Hans Castorp – interessa-se sobretudo pela
morte. Não é verdade?
– Bem, há sempre uma certa diferença. Viver significa que, na transformação da matéria,
se conserva a forma.
– Para que conservar a forma? – perguntou Hans Castorp.
– Para quê? Escute, o que acaba de dizer não tem nada de humanismo.
– A forma é bobagem.
– Decididamente, o senhor está muito enérgico hoje. Tem qualquer coisa de
insubordinado. Mas eu me sinto exausto – disse o conselheiro. – Começo a ficar melancólico –
acrescentou, cobrindo os olhos com a manopla enorme. – Estão vendo, isto cai sobre mim, de
surpresa. Tomei café com os senhores e gostei, e de repente me acontece ficar melancólico. Os
senhores me desculpem. Foi para mim uma satisfação rara e me causou um prazer
extraordinário...
Os primos levantaram-se de um pulo. Acusaram-se de ter tomado tanto tempo ao senhor
conselheiro... Ele fez afirmações tranquilizadoras em sentido contrário. Hans Castorp apressou-se
a levar o retrato de Mme. Chauchat à saleta vizinha e a recolocá-lo no lugar antigo. Não voltaram
ao jardim. Behrens mostrou-lhes o caminho através do edifício, acompanhando-os até a porta de
comunicação. No estado de alma que o invadira subitamente, a sua nuca parecia mais saliente do
que em geral. Piscava os olhos lacrimosos, e o bigodinho oblíquo, devido aos lábios torcidos
unilateralmente, assumira uma expressão lamentável.
– Você não pode negar que foi uma boa ideia.
– Foi pelo menos uma variação – replicou Joachim. – E vocês aproveitaram a ocasião
para resolver uma porção de problemas; sim, senhor! Às vezes achei a conversa meio complicada.
Mas agora é tempo de fazer um pouco de repouso. Temos ainda uns vinte minutos antes do chá
da tarde. Talvez lhe pareça “bobagem” da minha parte insistir tanto nessas coisas, desde que, nos
últimos tempos, você se mostra insubordinado. Mas, afinal de contas, você não necessita disso
tanto como eu.
continua pág 174...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Humaniora (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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