terça-feira, 27 de maio de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Humaniora (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 

Capítulo V

Humaniora
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     O Dr. Behrens, com as mãos nos bolsos, balouçava-se alternadamente nos calcanhares e nas pontas dos pés, enquanto contemplava a sua obra em companhia dos visitantes. 

– Folgo em ver, meu caro colega – disse –, folgo até muito em ver que o senhor compreende as minhas intenções. É com efeito útil e nunca prejudica saber também o que se passa debaixo da epiderme, a ponto de ser capaz de pintar um pouco daquilo que propriamente não se vê. Em outras palavras: é bom manter com a natureza ainda uma outra relação que não a puramente lírica. Vamos dizer que não faz mal que a gente exerça acessoriamente a profissão de médico, fisiólogo ou anatomista, e tenha alguns conhecimentos discretos dos dessous. Diga o senhor o que quiser, mas isso tem as suas vantagens e dá, indiscutivelmente, uma certa superioridade. Nessa pele aí há ciência. O senhor pode examiná-la com o microscópio para controlar a verdade orgânica. Nela, o senhor não vê apenas as camadas mucosas e córneas da epiderme, mas também, representado na ideia, o que está embaixo, o tecido do derma, com suas glândulas sudoríparas e sebáceas, com os vasos de sangue e com as papilas; e ainda mais abaixo deve-se imaginar a túnica adiposa, a almofada, sabe? a base que, com as suas numerosas células de gordura, produz as lindas formas femininas. O que se sabe e se pensa, durante o ato criador, também se faz sentir. Guia a nossa mão e causa os seus efeitos; não existe, e todavia existe de alguma forma. E é isso o que dá vida.

     Hans Castorp estava todo entusiasmado por essa palestra. Sua testa tingira-se de rubor. Seus olhos brilhavam. Ele não sabia o que responder em primeiro lugar, tanta coisa tinha a dizer. Antes de mais nada, se propunha tirar o quadro da parede da janela e colocá-lo num lugar mais favorável; além disso desejava comentar as observações do conselheiro a respeito da pele, que lhe interessavam vivamente; e finalmente tencionava expressar um pensamento geral e filosófico que lhe ocorrera, e ao qual conferia particular importância. Enquanto levava as mãos ao quadro para dependurá-lo, começou a falar apressadamente: 

– Sim, senhor! Sim, senhor! Tem razão, isto é importante. Eu queria dizer... Ou melhor, o senhor disse: “Ainda uma outra relação...” Seria bom manter além da relação lírica – acho que foi assim que se expressou –, além da relação artística, digo eu, ainda uma outra; numa palavra: convém olhar os objetos ainda sob outro aspecto, por exemplo, o aspecto médico. Isso é cem por cento certo – desculpe, doutor –, mas acho mesmo essa opinião sumamente acertada, porque não se trata, no fundo, de relações e aspectos fundamentalmente diferentes, mas, em realidade, de um só ponto de vista. São apenas modificações dele, quero dizer: matizes, ou talvez variantes do mesmo interesse geral, do qual a atividade artística também é apenas uma parte e uma expressão, se assim posso dizer... Ora, com sua permissão, vou tirar o quadro deste lugar, onde não recebe luz nenhuma. Espere, vou colocá-lo aqui no divã, para ver se não... Bem, eu queria dizer: de que se ocupa a ciência médica? Claro que não entendo nada do assunto, mas sei, afinal, que se ocupa do homem. E o direito, a legislação e a jurisprudência? Também do homem! E a lingüística, que ordinariamente anda ligada ao exercício da profissão pedagógica? E a teologia, a cura das almas, o sacerdócio? Todos eles se ocupam do homem; todos são apenas variações de um e mesmo interesse importante e capital, a saber, o interesse pelo homem; são, numa palavra, as profissões humanísticas, e quem quer estudá-las aprende como fundamento antes de tudo as línguas clássicas, não é isso? para obter uma cultura formal, como dizem. O senhor talvez se admire de que eu fale assim, eu que não sou mais que um técnico, de formação científica. Mas, enquanto estava acamado, meditava freqüentemente sobre isso, e me parece coisa excelente, parece-me maravilhoso basear-se cada profissão humanística no elemento formal, na idéia da forma, da bela forma, não é mesmo?... Isso empresta a tudo um caráter tão nobre, tão desinteressado, e dá à coisa um quê de sentimento e de... cortesia... O interesse transforma-se quase que numa proposta galante... quer dizer – provavelmente não emprego os termos próprios –, mas a gente vê como o espírito e a beleza se misturam e no fundo nunca deixaram de ser idênticos... Em outras palavras: a ciência e a arte... de maneira que o exercício das artes constitui também uma parte integrante do conjunto, como quinta faculdade por assim dizer, e que não é diferente de uma profissão humanística, uma variante do interesse humanístico, uma vez que seu tema mais importante e sua preocupação principal são outra vez o homem, como o senhor deve admitir. É verdade que eu só pintava navios e marinhas, quando na minha juventude fiz tentativas nesse sentido; mas o que há de mais atraente na pintura é a meu ver o retrato, porque tem por objeto imediato o homem. Foi por isso, doutor, que lhe perguntei logo se o senhor já linha feito ensaios nesse campo... Não acha que este lugar seria muito mais favorável ao quadro?

     Tanto Behrens como Joachim olhavam-no como para verificar se não se envergonhava do seu discurso improvisado. Mas Hans Castorp estava por demais absorto pelo seu assunto para se acanhar. Mantendo o quadro junto da parede do sofá, esperava que lhe respondessem se estava ou não mais bem iluminado ali. Nesse instante, a criada trouxe, numa bandeja, água quente, um fogareiro a álcool e xícaras paia café. O conselheiro mandou-a levar tudo ao gabinete de fumar e disse, dirigindo-se a Hans Castorp: 

– Neste caso deveria interessar-se menos pela pintura do que pela escultura... Tem razão, neste lugar recebe muito mais luz. Se o senhor acha que o quadro suporta tanta... Quero dizer, pela plástica, porque ela lida mais pura e mais exclusivamente com o homem em geral... Mas devemos prestar atenção para que a água não se evapore completamente. 
– Pois é, a plástica – disse Hans Castorp, enquanto passavam de uma peça a outra. Esquecendo-se de pendurar o quadro novamente ou de colocá-lo no chão, levou-o consigo ao gabinete contíguo. – Não há dúvida, numa Vênus grega ou num tipo de atleta, o elemento humanístico mostra-se com a maior nitidez. No fundo é esse o gênero autêntico, a arte genuinamente humanística, para quem reflete bem... 
– Ora, quanto à pequena Chauchat – observou o conselheiro –, acho que ela é antes um motivo pictórico. Parece-me que Fídias ou aquele outro sujeito cujo nome tem uma desinência judaica teriam torcido o nariz a esse tipo de fisionomia... Diga, que é que o senhor está fazendo aí? Por que anda passeando com esse troço? 
– Perdão, vou encostá-lo no pé da minha cadeira; ali fica bem, por enquanto... Mas os escultores gregos pouco se preocupavam com a cabeça; o que lhes importava era o corpo. Talvez seja este o elemento verdadeiramente humanístico... E o senhor acha que a plasticidade das formas femininas é só gordura? 
– Gordura e nada mais – disse em tom categórico o conselheiro, que acabava de abrir um armário embutido e tirara dele os apetrechos necessários para o preparo de café: um moinho turco em forma de tubo, uma canequinha de cabo comprido, o recipiente duplo para açúcar e café moído – tudo de latão. – Palmitina, oleína, estearina – acrescentou, enquanto derramava de uma lata os grãos de café dentro do moinho e começava a dar voltas à manivela. – Estão vendo, eu mesmo faço tudo, desde o início. Assim o café fica duas vezes melhor... Pois é gordura! Que pensava o senhor? Que fosse ambrosia? 
– Não, eu já sabia disso, e contudo é curioso ouvi-lo assim explicado – respondeu Hans Castorp.

     Estavam sentados num canto, entre a porta e a janela, em torno de um tamborete de bambu, que suportava uma bandeja de latão, ornada de motivos orientais, onde o aparelho de café encontrara um lugar no meio de utensílios para fumantes. Joachim instalara-se ao lado de Behrens, numa otomana abundantemente guarnecida de almofadas de seda; Hans Castorp numa poltrona provida de rodinhas, na qual apoiara o retrato de Mme. Chauchat. Tinham sob os pés um tapete multicor. O conselheiro áulico deitou colheradas de café e de açúcar na canequinha de cabo comprido, acrescentou água e fez o líquido ferver em cima do fogareiro a álcool. A bebida derramada nas xícaras enfeitadas com um padrão de cebolas tinha uma espuma escura, e seu sabor era tão forte quanto doce. 

– Com as formas do senhor é a mesma coisa – continuou Behrens.– A sua plasticidade, se é que se pode falar dela, é também gordura, embora não haja tanta como nas mulheres. Entre nós, a gordura normalmente não vai além da vigésima parte do peso do corpo, ao passo que nas mulheres costuma ser a décima sexta parte. Sem a camada adiposa embaixo da nossa pele, ficaríamos como uns fungões. Com os anos, ela se vai, e então se produz o famoso drapejamento de rugas pouco estéticas. Onde aquela camada tem a maior espessura é no peito, no ventre e nas coxas da mulher, numa palavra, em toda parte onde encontramos alguma coisa para divertir o coração e a mão. As plantas dos pés também são gordurosas e cosquentas.

     Hans Castorp fazia girar entre as mãos o moinho de café em forma de tubo. Como o resto do conjunto, era antes de origem indiana ou persa do que turca; assim o indicava o estilo dos ornamentos gravados no latão, cujas superfícies brilhantes se destacavam do fundo baço. Hans Castorp contemplou-os, sem entender, a princípio, do que se tratava. Quando compreendeu, corou violentamente: 

– Pois é, são utensílios só para homens – disse Behrens. – Por isso, mantenho-os guardados a chave. A boa da minha cozinheira poderia ter maus pensamentos. Mas parece-me que aos senhores isto não pode fazer mal. Ganhei essas coisas de uma paciente, uma princesa egípcia que nos deu a honra de permanecer entre nós durante um ano. Veja, o desenho se repete em todas as peças. Gozado, hein? 
– Sim, é mesmo curioso – respondeu Hans Castorp. – Ah, não, a mim não me impressiona. Seria até possível dar a esses ornamentos uma interpretação séria e solene, ainda que eles fiquem um pouco impróprios para um serviço de café. Ouvi dizer que os antigos representavam isso nos ataúdes. Para eles, o obsceno e o sagrado eram, de certo modo, uma e a mesma coisa. 
– Ora, quanto àquela minha princesa – disse Behrens, creio que ela se interessava mais pelo obsceno. Também ganhei dela uns excelentes cigarros, coisa extrafina, que só ofereço em ocasiões excepcionais. – E tirou do armário uma caixa de cores berrantes, que apresentou aos hóspedes, Joachim fez que não, juntando os tacões. Hans Castorp serviu-se e fumou o cigarro extraordinariamente grosso e comprido, adornado de uma esfinge impressa em ouro, e que de fato era maravilhoso. 
– Tenha a bondade, senhor conselheiro – pediu Castorp –, de nos contar mais alguma coisa sobre a pele. – Voltara a pôr nos joelhos o retrato de Mme. Chauchat e contemplava-o, reclinado na poltrona, com o cigarro entre os lábios. – Não precisamente da túnica adiposa – continuou. – Dela já sabemos bastante. Mas da pele humana em geral, que o senhor pinta com tanta perfeição. 
– Da pele? Interessa-se pela fisiologia? 
– Sim, senhor, muito. Sempre tive grande interesse por essa matéria. O corpo humano é um assunto que sempre me preocupou extremamente. Muitas vezes já me perguntei se não deveria ter estudado medicina. Sob certos aspectos, creio que me teria dado muito bem com essa profissão. Pois quem se interessa pelo corpo também se interessa pela doença, e principalmente por ela. Não tenho razão? Por outro lado, isso não quer dizer grande coisa, uma vez que eu teria podido dedicar-me a diversas profissões. Por exemplo, seria possível que eu escolhesse o sacerdócio. 
– Não diga! 
– Sim, senhor! Às vezes tenho a impressão passageira de que, talvez, a minha vocação seja esta. 
– Por que, então, se fez engenheiro? 
– Por acaso. Acho que o que me decidiu foram as circunstâncias exteriores. 
– Hum, quanto à pele! Que quer o senhor que lhe conte do seu ectoderma? É o seu cérebro externo, sabe? Ontogeneticamente falando, tem a mesmíssima origem que o aparelho dos chamados órgãos sensitivos superiores, aí em cima, no seu crânio. O senhor deve saber que o sistema nervoso central é apenas uma leve modificação da camada exterior da pele; nas espécies inferiores do reino animal ainda não existe a diferença entre central e periférico. Esses bichos servem-se da pele para cheirar e para saborear, compreende? Toda a sua sensualidade reside na pele, o que deve ser bastante agradável, para quem for capaz de se imaginar no lugar deles. Nas criaturas altamente desenvolvidas, porém, criaturas como o senhor e eu, a ambição da pele limita se à faculdade de sentir cócegas. A pele não passa então de um órgão protetor e transmissor, mas que presta uma atenção infernal a tudo quanto nos possa ofender o corpo. Estende mesmo para fora uma antenas de tato, o velo do nosso corpo, os pelos fininhos que se compõem somente de células endurecidas e permitem sentir a menor aproximação, muito antes de a própria pele ser tocada. Cá entre nós: é até possível que a função defensiva e protetora da pele não se restrinja exclusivamente à esfera física... O senhor sabe de que maneira fica ruborizado e pálido? 
– Só vagamente. 
 – Devo confessar que nem nós mesmos o sabemos com absoluta precisão, pelo menos no que se refere ao rubor. O assunto não foi ainda completamente esclarecido, pois por enquanto não conseguimos demonstrar nos vasos de sangue a existência de músculos dilatadores que sejam postos em ação pelos nervos vasomotores. Por que intumesce a crista do galo – ou que outros exemplos de jactância se possam citar – é, por assim dizer, um mistério, tanto mais quando se trata de uma influência psíquica. Supomos que haja ligações entre a camada cortical do cérebro e o centro vascular da medula oblongada. E, devido a certos estímulos – por exemplo, quando o senhor se sente muito envergonhado –, entra em jogo essa ligação e começam a agir os nervos vasculares que vão em direção ao rosto; então se dilatam e se enchem os vasos capilares que ali se acham, de maneira que o senhor anda com a cabeça feito um peru e está todo túmido de sangue e mal pode abrir os olhos. Em outros casos, porém, quando nos espera Deus sabe o quê, uma coisa de tremenda beleza talvez, contraem-se os vasos capilares da pele, que então se torna pálida, fria e murcha, e o senhor fica que nem um cadáver, de tanta emoção, com as órbitas lívidas como chumbo e com um nariz branco, afilado, enquanto o nervo simpático faz o coração martelar loucamente. 
– Ah! Então é assim que isso acontece? 
– Mais ou menos. São reações, sabe? Mas, uma vez que todas as reações e todos os reflexos têm uma finalidade inerente, chegamos nós, os fisiólogos, a supor que também esses fenômenos secundários de emoções psíquicas são, no fundo, meios adequados de defesa, reflexos protetores, como, por exemplo, o arrepio. Sabe o senhor donde nos vêm os arrepios? 
– Com franqueza, também não sei claramente. 
– Aí se trata de um trabalho das glândulas sebáceas da pele que segregam o sebo cutâneo, uma substância albuminosa gordurenta, que não é lá muito apetitosa, sabe?, mas conserva a pele macia, evita que ela se grete ou rasgue, e a torna agradável ao tato. Nem se pode imaginar que sensação nos daria o contato com a pele humana não fosse a colesterina. Essas glândulas sebáceas dispõem de pequenos músculos orgânicos capazes de pô-las num estado de ereção, e quando fazem isso, sucede ao senhor o mesmo que aconteceu àquele rapaz sobre o qual a princesa derramou um balde cheio de lambaris: sua pele fica feito um ralador, e quando a excitação é muito forte, até se levantam os folículos pilosos; seus cabelos eriçam-se na cabeça e os pelos, no corpo, exatamente como se dá com um porco-espinho que se defende. Então poderá o senhor afirmar que chegou a conhecer o horror. 
– Ora – disse Hans Castorp –, a esse ponto já cheguei várias vezes. Até mesmo me ocorre facilmente horrorizar-me nas mais diversas ocasiões. O que me admira é apenas que essas glândulas se ericem em circunstâncias tão diferentes. Quando alguém risca um vidro com um lápis de pedra, fica-se com arrepios, e uma música especialmente linda me produz o mesmo efeito. Quando, por ocasião da minha confirmação, fui comungar, tive estremecimentos e arrepios que não acabavam mais. E estranho quanta coisa põe em ação aqueles pequenos músculos. 
– Pois é – disse Behrens. – Um estímulo vale o outro. O corpo pouco se importa com o porquê dos estímulos. Sejam lambaris, seja a Santa Ceia, as glândulas sebáceas reagem eriçando se. 
- Senhor conselheiro – disse Hans Castorp, contemplando o retrato que tinha sobre os joelhos –, há mais uma coisa que eu gostaria de saber. O senhor acaba de falar de processos interiores, da circulação linfática, etc. Como é isso? Eu desejaria ouvir mais a esse respeito, sobre a circulação linfática, por exemplo, se o senhor tivesse a bondade... O assunto me interessa vivamente... 
– Acredito – tornou Behrens. – A linfa é o que há de mais fino, mais íntimo e mais delicado em toda a oficina do corpo. Parece que o senhor tem uma vaga ideia disso, desde que me faz essa pergunta. Sempre falam do sangue e dos seus mistérios, e dizem que é um suco todo especial. Mas a linfa é o sumo do suco, a essência, sabe?, o leite do sangue, um líquido delicioso... Após uma alimentação gordurosa tem até a aparência de leite. – E jovialmente, servindo-se da sua linguagem colorida, pôs-se a descrever o sangue, esse caldo de gordura, albumina, ferro, açúcar e sal, vermelho como uma capa de teatro, preparado pela respiração e pela digestão, saturado de gases e carregado de escória produzida pelo processo de renovação, esse caldo de uma temperatura de 38 graus centígrados, que era impelido pela bomba do coração através dos vasos e promovia, em todas as partes do corpo, o metabolismo, o calor animal, numa palavra, a nossa preciosa vida. Explicou que o sangue não chega diretamente até as células, mas que a pressão exercida sobre ele o fazia transpirar um extrato ou sumo leitoso através das paredes dos vasos, de modo a penetrar em todo lugar, enchendo quaisquer interstícios e dilatando ou distendendo o elástico tecido celular. Era isso o tônus dos tecidos, o turgor, e graças ao turgor, por sua vez, acontecia que a linfa, depois de ter untado amenamente as células e de ter realizado com elas uma permuta de substâncias, era enviada aos vasos linfáticos e voltava ao sangue, à razão de um litro e meio por dia. E o conselheiro discorreu sobre o sistema de condução e de sucção dos vasos linfáticos, tratou do canal lactífero que recolhia a linfa das pernas, do ventre, do peito, de um dos braços e de um lado da cabeça. Passou a falar de uns delicados órgãos – filtros que se encontravam em muitos lugares dos vasos linfáticos –, os chamados gânglios, situados no pescoço, nas axilas, nas articulações do cotovelo, nos jarretes e em outros lugares igualmente íntimos e suaves do corpo. – Aí se podem formar inchações -– explicou Behrens – e é precisamente disso que partimos. Intumescem, por exemplo, os gânglios linfáticos nos jarretes ou nas articulações dos braços, formam-se aqui ou ali tumores semelhantes aos hidrópicos, e quando isso se dá, há sempre um motivo, ainda que pouco simpático. Em certas circunstâncias torna-se então mais que óbvio o diagnóstico de uma obstrução tuberculosa dos vasos linfáticos.

     Hans Castorp permaneceu calado. – Pois é – disse baixinho, depois de uma longa pausa – isso mesmo. Eu facilmente poderia ter me tornado médico. O canal lactífero... A linfa das pernas... Essas coisas me interessam muito... Que é o corpo? – exclamou de repente, com impetuosidade. – Que é a carne? Que é o organismo humano? De que se compõe? Explique-nos ainda isso, senhor conselheiro! Explique-o de uma vez, para que a gente fique sabendo! 

– É de água – respondeu Behrens. – Parece que o senhor se interessa também pela química orgânica. Na sua maior parte, o corpo humano consta de água, nada mais nada menos, e não vejo razão de se exaltar por causa disso. A substância seca não vai além de vinte e cinco por cento do total, sendo que vinte por cento disso são simples clara de ovo, proteínas -se é que o senhor prefere esse termo mais distinto –, às quais se acrescenta apenas um pouquinho de gordura e de sal. É quase só isso. 
– E essa clara de ovo, que é? 
– Uma porção de elementos: carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, enxofre, às vezes também um pouco de fósforo. Mas o senhor desenvolve uma curiosidade exuberante. Há também proteínas que se apresentam ligadas a hidratos de carbono, isto é, glicose e amido. Na velhice, a carne torna-se dura, o que vem do fato de aumentar o colágeno no tecido conjuntivo; a cola, sabe?, que é a parte essencial dos ossos e das cartilagens. Que mais quer que eu lhe conte? Temos no plasma muscular uma proteína, o miosinogênio, que no corpo morto coagula, formando a fibrina muscular e produzindo a rigidez cadavérica. 
– Ah, sim, a rigidez cadavérica! – disse Hans Castorp alegremente. – Muito bem, muito bem. E depois vem a análise geral, a anatomia do túmulo. 
– Sim, naturalmente. O senhor formulou isso de modo muito bonito. Então a coisa torna-se um tanto extensa. A gente se esparrama por assim dizer. Não se esqueça de toda aquela água! E os outros ingredientes são pouco duráveis sem a ação da vida. Em virtude da putrefação, decompõem-se em combinações mais simples, de natureza anorgânica. 
– Putrefação, decomposição – disse Hans Castorp. – Não é isso um processo de combustão, uma combinação com o oxigênio, se não me engano? 
– Exatamente, há uma oxidação. 
– E a vida? 
– Também. Também, meu rapaz. Aí também há uma oxidação. A vida é essencialmente uma combustão das proteínas das células, donde provém esse agradável calor animal que às vezes é excessivo. Pois é, viver é morrer, nesse ponto não adianta dissimular. Trata-se de uma destruction organique, como algum francesinho, na sua leviandade inata, qualificou a vida. Ela também cheira assim, e quando temos uma impressão contrária é porque o nosso juízo não é imparcial. 
– E quem se interessa pela vida – prosseguiu Hans Castorp – interessa-se sobretudo pela morte. Não é verdade? 
– Bem, há sempre uma certa diferença. Viver significa que, na transformação da matéria, se conserva a forma. 
– Para que conservar a forma? – perguntou Hans Castorp. 
– Para quê? Escute, o que acaba de dizer não tem nada de humanismo. 
– A forma é bobagem. 
– Decididamente, o senhor está muito enérgico hoje. Tem qualquer coisa de insubordinado. Mas eu me sinto exausto – disse o conselheiro. – Começo a ficar melancólico – acrescentou, cobrindo os olhos com a manopla enorme. – Estão vendo, isto cai sobre mim, de surpresa. Tomei café com os senhores e gostei, e de repente me acontece ficar melancólico. Os senhores me desculpem. Foi para mim uma satisfação rara e me causou um prazer extraordinário...

     Os primos levantaram-se de um pulo. Acusaram-se de ter tomado tanto tempo ao senhor conselheiro... Ele fez afirmações tranquilizadoras em sentido contrário. Hans Castorp apressou-se a levar o retrato de Mme. Chauchat à saleta vizinha e a recolocá-lo no lugar antigo. Não voltaram ao jardim. Behrens mostrou-lhes o caminho através do edifício, acompanhando-os até a porta de comunicação. No estado de alma que o invadira subitamente, a sua nuca parecia mais saliente do que em geral. Piscava os olhos lacrimosos, e o bigodinho oblíquo, devido aos lábios torcidos unilateralmente, assumira uma expressão lamentável.

– Você não pode negar que foi uma boa ideia. 
– Foi pelo menos uma variação – replicou Joachim. – E vocês aproveitaram a ocasião para resolver uma porção de problemas; sim, senhor! Às vezes achei a conversa meio complicada. Mas agora é tempo de fazer um pouco de repouso. Temos ainda uns vinte minutos antes do chá da tarde. Talvez lhe pareça “bobagem” da minha parte insistir tanto nessas coisas, desde que, nos últimos tempos, você se mostra insubordinado. Mas, afinal de contas, você não necessita disso tanto como eu. 

continua pág 174...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Humaniora (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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