O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
10. Só à noite, quando teve coragem de as ler, foi que o príncipe compreendia por
que ficava gelado, sempre que tocava naquelas três cartas. Já de manhã, quando
se estirara na espreguiçadeira da varanda, sem resolver abri-las, tivera, outra
vez, mal caíra em um sono profundo, outro sonho desagradável. Novamente a
“mulher pecaminosa” lhe apareceu. E novamente o olhava através das lágrimas
que lhe perlavam os longos cílios, e lhe acenava que a seguisse. O príncipe
acordara, lembrando-se, como tinha acontecido antes, da angústia que o seu resto
lhe causava. Teve vontade de ir procurá-la imediatamente; mas não podia. Então,
quase desesperado, abriu as cartas e começou a lê-las.
Estas cartas também eram como um sonho! Às vezes temos sonhos estranhos.
Impossíveis e incríveis sonhos. Ao acordar, lembramo-nos deles e passamos
diante de um fato estranho, lembramo-nos, primeiro que tudo, de que a nossa
razão não nos abandonou completamente durante o sonho. Recordamos mesmo
que agimos sagazmente, e até com lógica, durante aquele tempo todo, aquele
longo, longo tempo em que nos cercavam assassinos que nos enganavam,
escondendo as suas intenções e se comportando amistosamente conosco, embora
tivessem uma arma preparada e só esperassem um sinal. Lembramo-nos como
os iludimos escondendo-nos astutamente, e como depois nos déramos conta de
que eles tinham percebido nosso esconderijo, mas fingiam não saber onde
estávamos escondidos; e, apesar disso, dissimulávamos de novo e os
enganávamos outra vez.
Como nos lembramos de tudo isso, claramente! Mas
como foi que pudemos reconciliar a nossa razão com os notórios absurdos e
impossibilidades através dos quais os nossos sonhos surgiam? Um dos nossos
assassinos transformava-se em mulher, diante de nossos olhos; e de mulher, em
um manhoso e repugnante anãozinho; e aceitávamos isso logo, como uma coisa
que, embora se tivesse dado, não nos devesse causar surpresa, naquela hora
mesma em que, por um outro lado, a nossa razão atingira a mais alta tensão e
mostrara toda a sua extraordinária força, argúcia, sagacidade e lógica!
E, outrossim, ao acordar e voltar plenamente à realidade, como é que
sentíamos a toda hora, umas vezes com mais extraordinária intensidade do que
outra, que ficava alguma coisa sem explicação, atrás desse sonho? Ríamo-nos,
ante o absurdo do nosso sonho mas, simultaneamente, sentíamos que, intercalado
entre esses absurdos, permanecia um pensamento oculto; e que esse pensamento
era real, pertencia, como coisa e como fato, à nossa vida de então e de agora;
alguma coisa que existe e existiu sempre em nosso coração. E além disso, uma
outra coisa nova, profética, mas que não esperávamos, nos era dita, em nosso
sonho. A impressão colhida pode ser alegre ou angustiosa; mas é viva, embora
não possamos saber nem reter o que nos foi dito.
E assim aconteceu, mais ou menos, depois que o príncipe abriu e leu aquelas
cartas. E antes mesmo de as desdobrar, sentiu que o só fato da existência e
significação delas era como um pesadelo. O que a levaria a escrever à outra?,
perguntava-se ele, enquanto vagabundeava, sozinho, a noite anterior (certos
momentos nem sabendo para onde ia). Como pudera ela ter escrito isso? Como
pudera tal fantasia se ter levantado em seu espírito? Mas essa fantasia, agora,
tomara forma. E a coisa mais espantosa, para ele, era que, ao ler aquelas cartas,
quase acreditava haver descoberto a justificativa dessa fantasia. Mesmo sendo,
como parecia, um sonho, um pesadelo, uma loucura; algo, porém, de
atormentadoramente real, algo de angustiosamente verdadeiro, justificava o
sonho, o pesadelo e a loucura! Horas seguidas, os fragmentos do que tinha lido o
perseguiam; examinava-os, refletia sobre eles. Chegou a ficar inclinado a dizer a
si mesmo que tinha previsto tudo isso, e tudo conhecido de antemão. Era como se
tivesse lido antes, há muito tempo já, e que tudo por que se estava afligindo agora
já lhe tivesse dado sofrimento antes, em sonho, como se o que se escondia
naquelas cartas já fosse uma coisa lida, “em tempos”.
Quando abrirdes esta
carta - assim começava a primeira epístola - ireis logo, antes de qualquer outra
coisa, olhar a assinatura. E a assinatura, então, vos dirá tudo; e tudo ficará
explicado. Portanto, não é preciso fazer nenhuma justificativa. Se, de um certo
modo, eu estivesse no mesmo nível em que estais, esta minha impertinência
poderia vos ofender. Mas, quem sou eu, e quem sois vós? Somos dois extremos
opostos, e eu estou tão infinitamente abaixo de vós que não vos posso insultar,
mesmo que o quisesse.
Em outro lugar, escrevera:
Não tomeis as minhas palavras como superabundância de um espírito
doentio, mas... vós sois, para mim, a perfeição! Eu vos vi! Eu vos vejo todos os
dias. Eu não vos julgo. Não foi através da razão que chequei a concluir que sois a
perfeição. Apenas cheguei a isso pela fé. Mas... um mal vos faço: amo-vos! E a
perfeição não deve ser amada. Só se pode olhar a perfeição como perfeição.
Não é assim? E, todavia, vos amo até à paixão. E se o amor iguala, não fiqueis
inquieta: não me pus em pé de igualdade perante vós, nem mesmo no mais
íntimo de mim mesma. Reparai bem que escrevi: “Não fiqueis inquieta!”
Ficareis, possivelmente, intranquila? Beijaria as vossas pegadas, se pudesse! Oh!
Não me ponho no mesmo alto nível em que estais, olhai a minha assinatura. Será
suficiente que olheis a minha assinatura.
Escrevia ela, em uma outra carta:
Noto, porém, que junto sempre o vosso nome com o dele! E, todavia, nunca,
uma vez sequer, me perguntei a mim mesma se vós o amais. E ele vos ama,
embora só vos tenha visto uma vez. Ele pensa em vós, como em uma “luz “.
Foram as próprias palavras dele, eu as ouvi, mas, mesmo sem palavras, eu sabia
que éreis uma luz” para ele. Vivi um mês inteiro ao seu lado, e compreendi, pude
compreender então que também o amais. Assim, pois, para mim, vós e ele sois
um.
Escrevia ela, depois:
Que significa isso, Deus meu?! Ontem passei por vós e me pareceu que
enrubescestes. Mas não pode ser.
Foi equívoco meu. Se fosseis conduzida a um antro asqueroso e vos mostrassem o
vício, em sua crueza, não deveríeis enrubescer. Sois muito sublime para vos
melindrardes com um insulto. Poderíeis odiar o que for baixo e vil, não por vós,
mas por causa dos outros, daqueles que estão errados. Para vós, porém, não há
quem seja mau. Quereis saber? E penso que deveis me amar. Sois para mim o
mesmo que para ele: “um raio de luz “. Um anjo não pode odiar, não pode
deixar de amar. Pode alguém, não me refiro a um anjo, mas a um ser humano,
amar a todos os homens, a todo seu próximo? Muita vez me tenho feito esta
interrogação. Naturalmente que não. Não é natural, com efeito. No amor
abstrato para com a humanidade, não se ama a ninguém, e sim a si próprio. Mas
isso não conta, para nós, e vós sois diferente. Como não amaríeis alguém, se não
sois comparável a ninguém, estando, como estais, acima de todo insulto e de todo
ressentimento pessoal? Vós, e ninguém mais, podeis amar sem
egoísmo. Só vós podeis amar, não só por vós, mas por ele, que tanto amais. Ah!
Como me seria amargo vir a saber que sentis vergonha, ou cólera, motivadas por
mim! Isso seria a vossa ruína, pois cairíeis ao meu nível, imediatamente! Ontem,
depois de vos ter encontrado, voltei para casa e inventei um quadro. Os artistas
geralmente pintam o Cristo tal como Ele aparece nas histórias do Evangelho. Eu
O pintaria diferentemente. imaginá-lo-ia sozinho. (Os discípulos algumas vezes O
devem ter deixado sozinho.) Apenas deixaria uma criancinha ao lado d’Ele. Uma
criança, a brincar ao lado Dele, dizendo-Lhe qualquer coisa, com a sua vozinha
de pássaro. Cristo teria estado a escutar, mas agora estaria pensativo, com a Sua
mão descansando inconscientemente sobre a linda cabeça da criança.
Ele estaria olhando para a distância, para o horizonte. Um pensamento, do
tamanho do mundo, habita nos Seus olhos. A Sua face está conturbada. A criança
se apoiaria calada, sobre o joelho de Cristo, o rostinho pousado sobre a mão; a
cabeça virada um pouco para cima, olharia com atenção para Ele, refletindo,
com aquele jeitinho pensativo que as crianças às vezes têm. E o sol estaria a
descambar. Este seria o meu quadro! Vós sois inocente, e, na vossa inocência, jaz
toda a vossa perfeição. Lembrai-vos disto, tão só. Que tendes vós que ver com a
minha paixão por vós? Agora sois toda minha; estarei toda a minha vida ao vosso
lado... Morrerei breve...
Finalmente, na derradeira carta, estava escrito:
Pelo amor de Deus, não penseis
nada de mim, e nem que me estou aviltando em escrever-vos, desta forma, ou
que pertença à classe de gente que tem prazer em se aviltar, mesmo que isso o
seja só por orgulho. Não. Eu tenho a minha consolação, embora me seja muito
difícil explicar-vos qual e como seja. A mim própria me seria difícil explicar isso
de modo claro. E como me atormenta não o poder fazer! Mas uma coisa sei: que
não me posso aviltar nem mesmo em um acesso de orgulho que porventura
viesse a ter! E também sou incapaz de um voluntário aviltamento, mesmo por
pureza. Assim, pois, não me estou aviltando, absolutamente.
Por que será que desejo unir-vos bem? Por vossa ou por minha causa? Por
minha, naturalmente! Por minha causa, logicamente, pois assim solverei todas as
minhas dificuldades. Já desde muito que venho dizendo isso a mim mesma. Ouvi
dizer que vossa irmã Adelaída dissera do meu retrato, certa vez, que, com uma
beleza assim, era possível virar o mundo de cima para baixo.
Oh! Mas eu renunciei ao mundo! Diverte-vos, talvez, ouvir isso de mim,
tendo-me encontrado, como já me encontrastes, coberta de rendas e de
diamantes em companhia de bêbados e de devassos?! Ah! Nem chegueis a
imaginar isso! Já cessei, decerto, de existir, e sei disso muito bem. Deus sabe o
que, em meu lugar, vive dentro de mim. Leio isso todos os dias, em dois terríveis
olhos que estão sempre me contemplando, mesmo quando não estão diante de
mim. Estes olhos estão “calados” agora (sempre foram silenciosos!) mas eu
conheço os segredos deles. Ou melhor dele. A sua casa é sinistra e há um
mistério dentro dela. E eu sei que ele tem escondida, em uma caixa, uma
navalha, enrolado em seda como a daquele assassino de Moscou. E que, como
aquele outro, ele vive assim, com sua mãe, e guarda uma navalha enrolada em
seda para, com ela, cortar uma garganta. Todo o tempo em que estive naquela
casa se me afigurava que, não sei onde, ali debaixo do assoalho, devia estar um
cadáver, escondido talvez por seu pai, amortalhado em um encerado, cercado de
jarras contendo desinfetante Jdánov. Poderia mostrar-vos o canto de que
desconfio. Ele não fala, mas estou farta de saber que me ama tanto que é
impossível que não me odeie! O vosso casamento e o meu realizar-se-ão na
mesma época. Já fixamos isso.
Como haveria ele de me esconder segredos?! Eu seria capaz de o matar, só lhe
inspirando terror, mais nada! Mas ele me matará antes! Ainda agora, há pouco,
ele riu e disse que eu estava delirando. E sabe que vos estou escrevendo...
E havia outros, muitos outros delírios mais, naquelas cartas. Uma delas, escrita
em uma letra pequena – a segunda - enchia duas grandes tiras de papel de bloco.
Por fim, o príncipe deixou a escuridão do parque por onde vagabundeara por
longo tempo, como já o fizera na noite anterior. A noite clara, límpida, pareceu
lhe mais clara do que nunca.
“Ainda será muito cedo?” - esquecera de trazer relógio - Representou-lhe
ouvir música, a pouca distância.
“Deve ser no Vauxhall”, pensou. “Certamente elas não foram até lá, hoje”. - Ao
fazer esta reflexão, se deu conta de que estava perto da vila dos Epantchín. Sabia
perfeitamente que lhe tinha de acontecer isso, encontrar-se, finalmente, ali; e foi
com o coração pulsando demais que subiu os degraus da varanda, sem encontrar
ninguém.
A casa parecia vazia. Esperou. Depois abriu a porta que dava para o salão. “Eles nunca a fecham”. Este pensamento vislumbrou-o através do espírito; mas a
sala também estava vazia, imersa quase na escuridão. Ficou parado, no meio,
perplexo. E nisto, uma porta se abriu e Aleksándra entrou, vinda de um cômodo,
com uma vela na mão.
Levou um susto, mas reconheceu Míchkin e parou, diante dele, em uma atitude
interrogativa. Pelo seu jeito, ela simplesmente ia atravessar a sala de uma porta
para outra, nem lhe passando pela ideia que iria encontrar alguém.
- Como foi
que veio até aqui?
- Entrei...
- Mamãe não está se sentindo bem; Agláia também. Adelaída já foi para a
cama. E é o que eu vou fazer.
Estivemos em casa sem mais ninguém, toda a noite. Papai e o príncipe estão
para Petersburgo.
- Eu vim.., até aqui... assim...
- Sabe que horas já são?
- N...ão.
- Já passa da meia-noite. Nós nos deitamos sempre à uma hora.
- Ora essa! Eu
pensava que fossem umas nove e meia...
- Não faz mal! - riu ela. - E por que não
veio antes? Nós o estivemos esperando.
- Pensei que... - gaguejou ele, já a sair.
- Então, adeus! Como se vão rir, amanhã,
quando eu contar...
Voltou para casa, pela estrada que rodeia o parque. O seu
coração batia tanto como se tivesse levado um susto. Os pensamentos o
alvoroçavam, e tudo, à sua volta, se transfigurava em um sonho. E, de repente,
como naquele sonho que o fizera acordar sobressaltado, duas vezes, na véspera, a
mesma aparição surgiu diante dele.
A mesma mulher, saindo do parque, se estampou diante dele, como se o estivesse
esperando ali. Estremeceu e parou. Ela lhe tomou a mão e a apertou.
“Não, não
foi uma aparição!” Era ela, e estava, enfim, pela primeira vez depois que se
tinham separado, diante dele, parada, dizendo-lhe qualquer coisa, enquanto ele a
olhava em silêncio. Como o seu coração crescia, e que dor angustiante que isso
tudo lhe causava, pobre coração! Ah! Como esquecer que o coração lhe doía
sempre, assim, quando a encontrava! Ela caiu de joelhos; diante dele, ali na
estrada, como uma demente. Deu um passo para trás,
estupefato. Ela tentava beijar-lhe as mãos, prendendo-as e, tal como no sonho
daquela noite, lágrimas fulgiam em seus longos cílios.
- Levantai-vos! Levantai
vos! - ciciou, muito zonzo, tentando erguê-la.
- Estás feliz? És feliz? perguntava
ela - Dize-me uma palavra só. Estás feliz, agora, hoje, neste momento?
Estiveste com ela? Que foi que ela te disse? - e não se levantava e nem o ouvia.
Fazia-lhe as perguntas atropeladamente, tinha pressa em falar, como se estivesse
sendo perseguida. - Vou-me embora amanhã, como mandaste dizer. Eu não
quero... É a última vez que te estou vendo. A última! Desta vez é absolutamente a
última!
- Acalmai-vos! Levantai-vos! - disse ele desesperado.
Ela olhava-o vorazmente,
apertando-lhe as mãos.
- Adeus! - disse, por fim.
Levantou-se e foi embora,
apressadamente, quase a correr. E então o príncipe divisou Parfión que
inesperadamente se destacou da sombra e a tomou por um dos braços, levando-a.
- Espere um pouco, príncipe - disse Rogójin, de lá - Volto em menos de cinco
minutos. - e em menos de cinco minutos voltava, de fato, encontrando o príncipe no
mesmíssimo lugar.
- Ajudei-a a subir para a carruagem - disse - Estivemos aqui esperando, na
esquina, desde as dez horas. Ela sabia que o senhor devia estar na casa daquela
jovem, esta noite. Eu lhe tinha contado que o senhor me escreveu hoje. Ela jurou
que não escreverá mais para aquela jovem. Prometeu-me, e irá embora daqui
amanhã, conforme o senhor deseja. Mas desejou vê-lo pela última vez, apesar
do senhor se ter recusado a vê-la. Estivemos esperando ali, naquele banco, para
lhe sairmos ao encontro, quando estivesse de volta.
- Foi você que a trouxe, ou ela
veio por sua própria vontade?
- Por que não? - Rogójin arreganhou os dentes. - Vi
o que já não ignorava. Já leu as cartas? Já?
- E é verdade que ela lhe mostrava? - perguntou o príncipe, impressionado por
essa ideia.
- Naturalmente. Ela me ia mostrando à medida que escrevia cada uma delas.
Aquela a respeito da navalha, também, ah, ah! Lembra-se?
- A coitada está
louca! - exclamou o príncipe, torcendo as mãos, confusamente.
- Quem sabe lá? Talvez não! - disse Rogójin com voz muito baixa, como se
falasse para si mesmo. E o príncipe a tal respeito não respondeu nada.
- Bem, então, adeus! - disse Parfión. - Eu também vou embora, amanhã.
Não guarde ressentimento de mim. E deixe que lhe pergunte, irmão, acrescentou virando-se: - por que não respondeu àquela pergunta: “És feliz, ou
não?”
- Não, não, não! - exclamou o príncipe, com inenarrável tristeza. - Penso que
não, também! Deveras!
Rogójin riu maliciosamente e foi embora, sem olhar
para trás.
continua página 414...
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