A Montanha Mágica
Capítulo V
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E assim sucedeu o que forçosamente tinha de suceder, e o que Hans Castorp, havia
pouco ainda, não teria imaginado ver ali: irrompeu o inverno, o inverno alpino, que Joachim já
conhecia, pois que chegara quando o anterior estava no auge. Hans Castorp tinha algum receio
dele, se bem que se tivesse preparado otimamente. O primo esforçou-se por tranquilizá-lo.
– Você não deve pensar que o inverno aqui é excessivamente rigoroso – disse. – Não é
nada ártico. O frio não chega a ser sensível, por causa da secura do ar e da ausência de vento.
Agasalhando-se bem, pode-se permanecer na sacada até altas horas da noite, sem se sentir frio.
Isso se dá graças à inversão da temperatura acima do limite da cerração. Nas alturas mais
elevadas, faz mais calor. É uma coisa que antes não se sabia. O frio fica mais desagradável
quando chove. Mas agora você já tem o seu saco de repouso, e também acendem a calefação em
casos de absoluta emergência.
Na sala de refeições, em torno das sete mesas, a entrada do inverno, a temporada
principal nessas paragens, formava o tema predileto das conversas. Dizia-se que haviam chegado
numerosos turistas e desportistas, povoando os hotéis da “aldeia” e de “Platz”. A espessura da
camada de neve era avaliada em sessenta centímetros, e afirmava-se que a sua qualidade era ideal
para os esquiadores. Outros contavam que se trabalhava ativamente na pista de trenó, que de
Schatzalp, na vertente noroeste, conduzia ao vale; dentro de poucos dias, ela poderia ser
inaugurada, contanto que o Föhn não viesse estragar os projetos. Os enfermos regozijavam-se
com a ideia de poder assistir ao recreio dos sadios – dos hóspedes lá de baixo –, que ia recomeçar
agora, com festas desportivas e competições, que muitos tencionavam olhar apesar da proibição,
gazeando o repouso e escapulindo. Hans Castorp ficou sabendo que haveria uma inovação, o
Skikjoring, invenção nórdica, que constava de uma corrida em que os esquiadores participantes se
fariam puxar por cavalos. Para ver isso seria necessário dar uma fugida. Também se falava dos
festejos do Natal.
Do Natal! Ora essa! Hans Castorp nem pensara ainda nisso. Não lhe causara dificuldades
dizer ou escrever que, em virtude do resultado do exame médico, teria de passar o inverno ali em
cima, em companhia de Joachim. Mas, como agora notava, isso incluía o Natal, e esse fato tinha
sem dúvida algo de espantoso para o seu coração, devido à circunstância – embora não
exclusivamente a ela – de ele nunca ter passado essa festa fora do torrão natal e do seio da
família. Bem, sendo essa a vontade de Deus, era preciso conformar-se. Já deixara de ser criança, e
Joachim tampouco parecia escandalizar-se com essa perspectiva, e aceitava-a sem choramingar.
Afinal de contas – dizia Hans Castorp de si para si –, não convinha esquecer em quantos lugares
e sob quantas condições diferentes se festejara o Natal no decorrer dos tempos.
Parecia-lhe, entretanto, um pouco precipitado falar do Natal ainda antes do primeiro
domingo do Advento. Faltavam até lá ainda umas seis semanas e tanto. Mas o pessoal da sala de
refeições saltava-as ou devorava-as – processo interior que também Hans Castorp já sabia
executar, se bem que ainda não se houvesse acostumado a fazê-lo com tanta audácia como os
seus companheiros mais antigos. Estes consideravam o Natal, ou outras etapas semelhantes no
curso do ano, como ótimos pontos de referência ou como uma espécie de aparelhos de ginástica,
adequados para se pular agilmente por cima de intervalos vazios. Todos tinham febre; seu
metabolismo era aumentado; sua vida física passava-se num ritmo por demais intenso e veloz –
talvez explicasse isso o fato de matarem com tanta rapidez tamanhas quantidades de tempo. Hans
Castorp não se teria surpreendido se falassem do Natal como de uma data já vencida, e logo se
pusessem a discorrer sobre o Ano-Bom ou o Carnaval. Mas não eram tão levianos e tão
imoderados na sala de refeições do Berghof. Detinham-se no Natal, festa que dava motivos para
preocupações e oferecia problemas. Deliberavam acerca do presente comum que, segundo o
costume estabelecido na casa, seria entregue ao diretor, o Dr. Behrens, na véspera do Natal, e
para o qual tinham aberto uma subscrição. Como contavam aqueles que estavam no sanatório
fazia mais de doze meses, o conselheiro, no ano anterior, fora presenteado com uma maleta.
Falava-se desta vez de uma mesa de operações, de um cavalete de pintor, de um casaco forrado
de peles, de uma cadeira de balanço e de um estetoscópio de marfim, adornado de qualquer tipo
de incrustações. Settembrini, ao ser consultado, recomendou uma obra lexicográfica que,
conforme dizia, estava em preparo e se intitulava Sociologia dos males, mas ninguém apoiou a ideia a
não ser um livreiro que, havia poucos dias, se encontrava à mesa da Kleefeld. Por enquanto não
parecia possível chegar a um acordo. Era difícil entender-se com os pensionistas russos. Os
moscovitas declararam que tencionavam dar a Behrens um presente à parte. Durante dias a fio, a
Srª. Stöhr manifestou suma inquietação por causa de uma importância de dez francos que,
imprudentemente, adiantara à Srª. Iltis para a coleta, e que esta “se esquecera” de devolver.
“Esquecera-se” – as entonações que a Srª. Stöhr dava a essa palavra eram multiplamente
matizadas, mas todas elas calculadas para expressar a mais profunda incredulidade quanto a essa
falta de memória, que parecia à prova de quaisquer alusões e indiretas que a Srª. Stöhr afirmava
ter prodigalizado. Diversas vezes, esta se dispunha a renunciar e a perdoar a dívida da Iltis. “Pago,
então, por mim e por ela”, declarava. “Está muito bem. A vergonha não é minha.” Mas
finalmente descobriu uma solução que comunicou aos comensais, causando hilaridade geral: foi
cobrar os dez francos da “administração”, que os incluiu na conta da Srª. Iltis, de modo que a
devedora morosa saiu lograda e o assunto foi liquidado.
Terminara a nevada. O céu abria-se parcialmente. Nuvens de um cinzento azulado
rasgavam-se e deixavam passar alguns raios de sol que tingiam a paisagem de azul. A seguir, o
tempo serenou por completo. Reinava em pleno novembro um frio límpido, um esplendor
invernal, puro e constante. Era maravilhoso o panorama que se via através das arcadas da loggia,
os bosques empoados, as fendas repletas de neve fofa, o vale branco, ensolarado sob o azul
reluzente do céu. E principalmente de noite, quando subia a lua quase cheia, o mundo
apresentava-se enfeitiçado de um modo milagroso. Uma cintilação de cristal, um resplendor
como de diamantes ostentava-se em toda parte. Muito preta e muito branca elevava-se a floresta.
As regiões do céu que se achavam distantes da lua jaziam escuras, bordadas de estrelas. Sombras
de contornos nítidos, precisos e intensos, sombras que davam a impressão de ser mais reais e
mais importantes do que os próprios objetos, caíam das casas, das árvores, dos postes
telegráficos, sobre o solo refulgente. Poucas horas depois do pôr-do-sol, a temperatura descia a 7
ou 8 graus abaixo de zero. O mundo parecia encantado, imobilizado numa pureza glacial, e sua
imundície natural ficava submersa e envolta no sonho de um fantástico sortilégio letal.
Até altas horas da noite, Hans Castorp permanecia no seu compartimento da sacada
acima do mágico vale hibernal, muito mais tempo do que Joachim, que se retirava às dez horas
ou pouco depois. A sua excelente espreguiçadeira, com o colchão composto de três coxins e com
o rolo à altura da nuca, achava-se próxima da balaustrada de madeira, ao longo da qual se estendia
uma almofada de neve. Na mesinha branca, a seu lado, luzia a lâmpada elétrica, e junto a uma
pilha de livros havia um copo de leite gordo, o leite da noite, que era servido às nove horas em
todos os quartos dos habitantes do Berghof, e no qual Hans Castorp vertia um cálice de
conhaque para adaptá-lo ao seu paladar. Já haviam sido mobilizados todos os recursos de que ele
dispunha contra o frio. Enfiara-se Hans Castorp até acima do peito no saco de peles, que se
podia abotoar e fora adquirido em boa hora numa casa especializada de Davos. Em torno desse
saco lançara, segundo o rito, os dois cobertores de lã de camelo. Além disso usava, por cima da
roupa de inverno, um curto casaco forrado de peles. Na cabeça tinha um gorro de lã, nos pés
sapatos de feltro, e nas mãos umas espessas luvas que, no entanto, se mostravam incapazes de
impedir o enrijecimento dos dedos.
Para que ele permanecesse tanto tempo lá fora – até meia-noite e às vezes mais tarde
ainda, quando o casal de “russos ordinários” havia muito se retirara do compartimento vizinho –
contribuía, sem dúvida, o feitiço da noite invernal, tanto mais que até as onze horas se entretecia
nele a música, que, de longe e de perto, subia do vale. Mas antes de tudo era induzido a isso pela
inércia e pela excitação que agiam simultânea e conjuntamente; de um lado, a inércia do seu corpo
e o seu cansaço avesso a todo movimento, e do outro, a excitação ativa do seu espírito, ao qual
certos estudos novos e fascinantes, que o jovem acabava de empreender, não davam nenhum
instante de trégua. O clima incomodava-o; a geada exercia sobre seu organismo um efeito
esgotador. Hans Castorp comia muito e aproveitava as fartas refeições do Berghof, onde os
gansos assados sucediam a um rosbife acompanhado de legumes. Demonstrava aquele
desmedido apetite, que parecia normal entre os pensionistas do Berghof e no inverno se tornava
ainda mais intenso do que no verão. Ao mesmo tempo sentia-se tomado de sonolência, de
maneira que frequentemente lhe ocorria, de dia tanto como nas noites de luar, adormecer sobre
os livros que manuseava, e dos quais trataremos mais adiante; depois de alguns minutos de
inconsciência continuava então as suas pesquisas. Conversas animadas – e mais do que na
planície tendia ele ali a falar depressa, sem inibições e até com atrevimento –, essas conversas
animadas que mantinha com Joachim, durante os passeios obrigatórios através da neve,
esgotavam-no facilmente. Acometiam-no vertigens e tremores, bem como uma sensação de
aturdimento e de ebriedade, enquanto lhe ardia a cabeça. Sua curva de temperatura subira desde o
começo do inverno, e o Dr. Behrens murmurara qualquer coisa a respeito de injeções às quais
costumava recorrer em casos de elevação tenaz da temperatura. Duas terças partes dos pacientes,
inclusive Joachim, submetiam-se regularmente a essas injeções. Mas – pensava Hans Castorp –
decerto existiam relações entre essa intensa produção de calor que se efetuava dentro do seu
corpo e aquela agitação e atividade do espírito que o prendia à espreguiçadeira até muito tarde, na
cintilante e gélida noite. A leitura que o cativava sugeria-lhe tal explicação.
Lia-se avidamente nos alpendres de repouso e nas sacadas particulares do Sanatório
Internacional Berghof – sobretudo entre os novatos e os pensionistas de curto prazo, pois os
pacientes que ali permaneciam por muitos meses, ou mesmo por vários anos, havia muito que
tinham aprendido a matar o tempo sem distrações nem esforços intelectuais e a deixá-lo passar
graças a um virtuosismo interior. Declaravam até que era uma falta de habilidade, própria de
sarrafaçais, essa de se agarrar à leitura. Quando muito admitiam que um livro repousasse sobre os
joelhos ou na mesinha, o que já era suficiente para as pessoas sentirem-se abastecidas. A
biblioteca do estabelecimento, poliglota e rica em obras ilustradas, continha, de forma ampliada, a
literatura que comumente se encontra na sala de espera de um dentista, e achava-se à disposição
livre e gratuita dos pensionistas. Também se permutavam os romances alugados numa livraria de
Platz. De tempos em tempos aparecia um livro ou um folheto que era violentamente disputado, e
para o qual estendia as mãos, com mal dissimulada cobiça, até quem já tivesse abandonado o
hábito de ler. A essa altura dos acontecimentos circulava de mão em mão uma brochura mal
impressa, adquirida pelo Sr. Albin, e que se intitulava A arte da sedução. O texto estava traduzido,
muito ao pé da letra, do francês, conservando a tradução a própria sintaxe desse idioma, o que
emprestava ao estilo muita dignidade e uma elegância picante. Explanava o autor a filosofia do
amor carnal e da volúpia, no sentido de um paganismo epicurista e mundano. A Srª. Stöhr
terminou rapidamente a leitura e achou a obra “formidável”. A Srª. Magnus – a que perdia
proteínas – concordou com ela sem reservas, ao passo que seu marido, o cervejeiro, pretendeu ter
tirado particularmente algum proveito dessa leitura, mas lastimou que a Srª. Magnus se tivesse
inteirado da doutrina do opúsculo, já que essas coisas “amimalhavam” as mulheres e lhes
incutiam ideias extravagantes. Tal crítica contribuiu consideravelmente para aumentar o interesse
que reinava pela obra. Entre duas senhoras chegadas em outubro, e que frequentavam o alpendre
térreo, a Srª. Redisch, esposa de um industrial polonês, e uma certa viúva Hessenfeld, de Berlim,
deflagrou-se depois do almoço uma cena bastante desagradável, quase violenta, que Hans Castorp
se viu obrigado a presenciar da sua sacada. Culminou o espetáculo numa gritaria convulsiva e
histérica de uma das duas senhoras – podia ser a Redisch, mas também podia ser a Hessenfeld – e
no transporte da mulher raivosa para os seus aposentos. A mocidade apoderara-se do tratado
ainda antes das pessoas mais maduras. Alguns estudavam-no em comum, depois do jantar, nos
mais diversos quartos. Hans Castorp viu como o rapaz da unha comprida o entregava, na sala de
refeições, a uma jovem recém-chegada e levemente enferma, de nome Fränzchen Oberdank, que
fora trazida pela mãe e usava os cabelos louros repartidos por uma risca.
Talvez houvesse exceções; talvez houvesse pensionistas que enchessem as horas de
repouso obrigatório com alguma atividade intelectual de caráter sério, com alguns estudos
proveitosos, ainda que o fizessem apenas para conservar o contato com a vida na planície ou para
emprestar ao tempo um pouco de peso e de profundidade, evitando destarte que se tornasse
tempo e nada mais. Talvez existisse, além do Sr. Settembrini com seus esforços destinados a
exterminar os sofrimentos do mundo, e do honrado Joachim com seus manuais russos, ainda este
ou aquele com uma mentalidade análoga, senão entre o público da sala de refeições, o que era
mesmo pouco provável, ao menos entre os pacientes acamados e moribundos. Hans Castorp
inclinava-se a admitir essa hipótese. Quanto a ele próprio, o Ocean steamships já não lhe dizia nada.
Por isso mandara vir de casa, junto com as roupas de inverno, alguns livros relacionados com a
sua profissão, obras de engenharia, tratados sobre a construção de navios. No entanto, esses
volumes haviam sido abandonados a favor de outros, obras didáticas pertencentes a uma
faculdade e disciplina muito diferente, cuja matéria despertara o interesse do jovem Hans
Castorp. Tratava-se de livros de anatomia, fisiologia, biologia, redigidos em vários idiomas –
alemão, francês, inglês – e que lhe tinham sido remetidos um belo dia pelo livreiro do lugar,
evidentemente porque Hans Castorp os encomendara por sua própria iniciativa e
clandestinamente, durante um passeio que dera até Platz, sem a companhia de Joachim, que a
essa hora andara ocupado com a pesagem ou tomara uma injeção. Foi com surpresa que Joachim
viu esses livros nas mãos do primo. Eram muito caros, como obras científicas costumam ser. Os
preços ainda se achavam anotados no interior das capas ou sobrecapas. Joachim perguntou por
que Hans Castorp, se desejava ler esse tipo de literatura, não os pedira emprestados ao Dr.
Behrens, que certamente dispunha de um rico sortimento. Mas Hans Castorp replicou que
preferia possuir os livros, e que a leitura era bem diferente quando o livro lhe pertencia; além
disso, gostava de sublinhar e assinalar certos trechos a lápis. Durante horas a fio, Joachim ouvia
do compartimento de sacada do primo o ruído da espátula que ia abrindo as folhas.
Os volumes eram pesados e difíceis de manejar. Para os ler, quando deitado, Hans
Castorp apoiava a borda inferior sobre o peito ou o estômago. Isso não deixava de ser incômodo,
mas ele o suportava pacientemente. De boca entreaberta, fazia os olhos percorrerem as páginas
eruditas, que se achavam quase desnecessariamente iluminadas pela claridade avermelhada do
quebra-luz da lampadazinha, já que as poderia ler, se fosse preciso, à luz do luar. Acompanhava
as linhas com a cabeça, até que seu queixo repousasse sobre o peito, posição em que o leitor
permanecia algum tempo, refletindo, cochilando ou entregando-se a um misto de sono e de
meditação, antes de elevar o rosto para ler a página seguinte. Hans Castorp realizava profundas
investigações; lia, enquanto a lua seguia, a passo comedido, a sua órbita por cima do vale alpino,
cintilante de cristais; lia livros que tratavam da matéria organizada, das qualidades do
protoplasma, da substância sensível que, entre a composição e a decomposição, se mantém numa
estranha existência intermediária, e da evolução das suas formas desenvolvidas a partir de tipos
fundamentais, primitivos e todavia sempre presentes; lia com insistente interesse o que os livros
diziam sobre a vida e o seu sagrado e impuro mistério.
Que era a vida? Não se sabia. Tinha ela consciência de si mesma, indubitavelmente, desde
que era vida, mas ignorava o que era. Era incontestável que a consciência, sob o aspecto da
propriedade de reagir a estímulos, despertava até certo ponto já nas fases mais baixas, menos
adiantadas, da vida; não era possível fixar em determinado ponto da sua história coletiva ou
individual a primeira aparição de fenômenos conscientes, e, por exemplo, fazer a reação
consciente depender da existência de um sistema nervoso. As formas animais mais inferiores não
dispunham de nenhum sistema nervoso, e muito menos de um cérebro; ninguém se atreveria,
contudo, a negar-lhes a capacidade de sentir estímulos. Além disso, podia-se entorpecer a vida, a
própria vida, e não somente certos órgãos especiais destinados à recepção de estímulos, que esta
porventura criasse, a saber, os nervos. Podia-se suspender temporariamente a irritabilidade de
toda substância dotada de vida, no reino vegetal tanto como no reino animal; era possível
narcotizar os ovos e os espermatozoides por meio de clorofórmio, de cloral hidratado ou de
morfina. A consciência de si mesma era, pois, uma simples função da matéria organizada em prol
da vida, e numa fase mais elevada dirigia-se a função contra o seu próprio portador, convertia-se
no desejo de pesquisar e explicar o fenômeno ao qual deu origem, na tendência esperançosa e
desesperada da vida para se conhecer a si própria, na auto investigação da natureza que sempre
acaba sendo vã, visto a natureza não se poder resolver em conhecimento e a vida não ser capaz
de contemplar os últimos segredos de si mesma.
Que era a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto donde brotava a natureza, e
no qual ela se acendia. A partir desse ponto, nada havia na vida que não estivesse motivado ou o
estivesse apenas insuficientemente; mas a própria vida parecia não ter motivo. A única coisa que
se podia, talvez, afirmar a seu respeito era que sua estrutura devia ser de tal modo evoluída que
não tinha, nem de longe, igual no mundo inanimado. Entre o pseudópode da ameba e o animal
vertebrado a distância era insignificante, desprezível, em comparação com aquela que existe entre
o fenômeno mais simples da vida e a outra parte da natureza que nem sequer merecia ser
qualificada de morta, uma vez que era inorgânica. Pois a morte não era senão a negação lógica da
vida; entre esta, porém, e a natureza inanimada abria-se um abismo por cima do qual a ciência em
vão se empenhava em lançar uma ponte. Alguns esforçavam-se por fechá-lo por meio de teorias,
que ele sorvia sem nada perder da sua profundidade nem da sua extensão. Para encontrar um
laço, haviam-se perdido na hipótese contraditória de uma matéria viva sem estrutura, de
organismos não organizados, que se reuniriam espontaneamente na solução de albumina, como o
cristal na água-mãe – embora, na realidade, a diferenciação orgânica constituísse, ao mesmo
tempo, a condição básica e a manifestação de toda vida, e posto que não se conhecesse nenhuma
criatura viva que não devesse a sua existência a um ato de procriação. O júbilo triunfante que
saudara o protoplasma primevo, pescado nas mais extremas profundezas do mar, rapidamente
chegara a transformar-se em consternação. Demonstrou-se que depósitos de gesso haviam sido
confundidos com o protoplasma. Mas os cientistas, para não se deterem à frente de um milagre –
pois a vida a compor-se dos mesmos elementos e a decompor-se nos mesmos elementos que a
natureza inorgânica, sem nada que a motivasse, seria um milagre –, viram-se forçados a admitir
uma geração espontânea, isto é, a origem do orgânico no inorgânico, o que, aliás, era igualmente
um milagre. Destarte continuaram a inventar graus intermediários e transições, a supor a
existência de organismos inferiores a todos os que se conheciam, mas que, por sua vez, tivessem
como predecessores tentativas de vida ainda mais primitivas, os chamados “probiontes” que
ninguém jamais veria, porque eram de uma pequenez inframicroscópica, e antes de cujo
nascimento hipotético devia ter-se produzido a síntese de combinações de albumina...
Que era, então, a vida? Era calor, o calor produzido pela instabilidade preservadora da
forma; era uma febre da matéria, que acompanhava o processo de incessante decomposição e
reconstituição de moléculas de albumina, insubsistentes pela complicação e pela engenhosidade
de sua estrutura. Era o ser daquilo que em realidade não podia ser, daquilo que, a muito custo,
mediante um esforço delicioso e aflitivo, consegue, nesse processo complexo e febril de
decadência e de renovação, chegar ao equilíbrio no ponto do ser. Não era nem matéria nem
espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal e qual o
arco-íris sobre a queda-d'água, e igual à chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a
volúpia e até o asco, o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria,
e a forma lasciva do ser. Era um movimento clandestino, mas perceptível no casto frio do
universo, uma secreta e voluptuosa impureza composta de sucção e de evacuação, uma exalação
excretória de gás carbônico e de substâncias nocivas de procedência e qualidade ignotas. Era a
vegetação, a desenvolução, a configuração – possibilitadas pela hipercompensação da sua
instabilidade e controladas pelas leis de formação que lhe eram inerentes – de uma coisa túmida
de água, de albumina, de sal e de gordura, coisa que se chamava carne e se convertia em forma,
em imagem sublime, em beleza, mas, ao mesmo tempo, era o princípio da sensualidade e do
desejo. Pois essa forma e essa beleza não eram conduzidas pelo espírito, como nas obras da
poesia e da música, nem tampouco por uma substância neutra, absorvida pelo espírito, e que o
encarnasse de uma maneira inocente, como o fazem a forma e a beleza das obras plásticas. Era,
pelo contrário, conduzida e elaborada por uma substância na qual despertou, de um modo
desconhecido, a voluptuosidade, pela substância da própria matéria orgânica que vivia se
decompondo, pela carne cheirosa...
continua pág 180...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Pesquisas (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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