em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
Deixei de tomar parte na conversa quando se falou de teatro, pois nesse assunto Rachel era muito malévola. É verdade que assumiu, em tom de comiseração contra Saint-Loup, o que provava que o atacava muitas vezes diante dele mesmo -, a defesa da Berma, ao dizer:
- Oh, não! É uma mulher notável. Evidentemente, o que ela faz já não nos diz nada, não
corresponde mais absolutamente ao que procuramos, mas é preciso colocá-la no momento em
que apareceu, a gente lhe deve muito. Fez as coisas certo, tu sabes. E, depois, é uma mulher tão
corajosa, tem um grande coração, naturalmente não preza as coisas que nos interessam, mas
teve, como um rosto bem impressionante, uma bela qualidade de inteligência. - (Os dedos não
acompanham da mesma forma todos os juízos estéticos. Se se trata de pintura, para mostrar que
é uma bela peça, de largas pinceladas, limita-se a ressaltar o polegar. Mas a "bela qualidade de
espírito" é mais exigente. São-lhe precisos dois dedos, ou melhor, duas unhas, como se se
tratasse de fazer pular um grão de poeira.) Mas, aberta esta exceção, a amante de Saint-Loup
falava dos artistas mais conhecidos num tom de ironia e superioridade que me irritava, porque eu
achava que ela é que lhes era inferior enganando-me nisso. Rachel percebeu muito bem que a
devia considerar uma artista medíocre e, pelo contrário, ter muita consideração por aqueles a
quem ela desprezava. Mas não se sentiu ofendida, porque há, no grande talento ainda não
reconhecido, como o seu, por mais seguro que possa estar de si mesmo, uma certa humildade, e
proporcionamos as considerações que exigimos não aos nossos dons ocultos, mas à posição que
adquirimos. (Uma hora depois, eu devia ver, no teatro, a amante de Saint-Loup demonstrar muita
deferência para com os artistas sobre quem externava um juízo tão severo.) Assim, por menos
dúvidas que pudesse ter deixado o meu silêncio, ela insistiu para que jantássemos juntos de noite,
assegurando que jamais se agradara tanto da conversa de alguém como da minha. Se ainda não
estávamos no teatro, aonde deveríamos ir após a refeição, dávamos a impressão de nos
acharmos num foyer, decorado com retratos antigos da companhia, de tal forma os mordomos
tinham caras que pareciam perdidas com toda uma geração de artistas fora do comum, do Palais
Royal; também pareciam acadêmicos: parado diante de um bufê, um examinava peras com o
rosto e a curiosidade desinteressada que poderia ter o Sr. de Jussieu. Outros, a seu lado,
lançavam pela sala os olhares cheios de curiosidade e frieza que os membros do Instituto, já
presentes, lançam sobre o público trocando algumas palavras que ninguém ouve. Eram figuras
célebres entre os habitués. Entretanto, mostrava-se um novato, de nariz pregueado e lábio
hipócrita, que tinha um jeito de igreja e exercia as funções pela primeira vez, e todos observavam
o novo eleito. Mas em breve, talvez para que Robert partisse e ela pudesse encontrar-se a sós
com Aimé, Rachel pôs-se a encarar um jovem bolsista que almoçava com um amigo numa mesa
próxima.
- Zézette, peço-te que não olhes assim para esse rapaz. - disse Saint-Loup, em cujo rosto
os rubores hesitantes de há pouco se haviam concentrado em uma sombra sangrenta que
dilatava e afundava os traços distendidos do meu amigo -; se pretendes nos fazer uma cena,
prefiro almoçar em separado e ir te esperar no teatro.
Nesse momento, vieram dizer a Aimé que um senhor lhe rogava fosse lhe falar na
portinhola de seu carro. Saint-Loup, sempre inquieto e temendo que se tratasse de um recado
amoroso a ser transmitido à sua amante, olhou pela vidraça e vislumbrou, no fundo de seu cupê,
as mãos enfiadas em luvas brancas raiadas de preto, com uma flor na botoeira, o Sr. de Charlus.
- Estás vendo. - disse-me ele em voz baixa - que minha família me manda perseguir até
aqui. Peço-te, eu não posso mais, mas já que conheces bem o mordomo, que certamente nos vai
denunciar, diga-lhe que não vá até o carro. Pelo menos que seja um garçom que não me
conheça. Se dizem a meu tio que não me conhecem, sei como ele é, não virá olhar no café,
detesta esses locais. E, mesmo assim, não é asqueroso que um velho mulherengo como ele, que
ainda não sossegou, me dê permanentemente lições de moral e venha me espionar?!
Aimé, tendo recebido minhas instruções, enviou um de seus ajudantes, que devia dizer
que ele não podia ausentar-se do salão naquele momento e que, se perguntassem pelo marquês
de Saint-Loup, que não o conheciam. E logo o carro partiu. Mas a amante de Saint-Loup, que não
entendera nossas frases sussurradas em voz baixa e julgara que se tratava do rapaz a quem
Robert lhe censurara por ter encarado, explodiu em insultos:
- Como? É esse rapaz agora?! Fazes bem em me prevenir; oh, é delicioso almoçar nessas
condições! Não ligue para o que ele diz, está um tanto ofendido, e principalmente - acrescentou
ela voltando-se para mim -, ele diz isto porque julga que é elegante, que isso de ter ciúmes é coisa
de grão-senhor.
E pôs-se a dar sinais de nervosismo com os pés e com as mãos.
- Mas Zézette, para mim é que é desagradável. Tu nos tornas ridículos aos olhos deste
senhor que vai ficar convencido que lhe dás atenções, e que me parece que é o que existe de
pior.
- A mim, ao contrário, ele me agrada muito; em primeiro lugar, tem olhos deslumbrantes, e
que possuem uma forma de olhar as mulheres; percebe-se que ele deve amá-las.
- Cala-te pelo menos até que eu tenha ido embora, se é que estás louca! - gritou Robert. -
Garçom, minhas coisas.
Não sabia se devia segui-lo.
- Não, preciso estar sozinho. - disse-me no mesmo tom com que acabara de falar à
amante e como se estivesse zangado comigo. Sua cólera parecia uma mesma frase musical
sobre a qual, numa ópera, cantam-se várias réplicas no libreto, inteiramente diversas entre si de
sentido e de natureza, mas que ela reúne num mesmo sentimento. Quando Robert partiu, sua
amante chamou Aimé e lhe pediu várias informações. E, a seguir, quis saber o que eu achava
dele.
- Tem um olhar divertido, não é? Compreende, o que me agradaria seria saber o que ele
pode estar pensando, ser servida por ele muitas vezes, levá-lo em viagem. Porém não mais do
que isso. Se a gente fosse obrigada a amar todas as pessoas que nos agradam, seria no fundo
uma coisa terrível. Robert não tem motivos para imaginar coisas. Tudo isto só me passa pela
cabeça, Robert devia ficar tranquilo. - Continuava a olhar para Aimé. - Veja, repare nos olhos
pretos que ele tem; gostaria de saber o que há por detrás deles.
Em breve, vieram lhe dizer que Robert a mandava chamar em um gabinete particular,
onde, passando por uma outra entrada, ele fora acabar o seu almoço sem atravessar o
restaurante. Assim, fiquei sozinho, e depois Robert me mandou chamar por minha vez. Encontrei
sua amante estendida num sofá rindo ante os beijos e as carícias que ele lhe prodigalizava.
Bebiam champanha.
- Meus cumprimentos. - disse-lhe ela, pois aprendera recentemente essa fórmula que lhe
parecia a última palavra em matéria de ternura e de espírito.
Eu almoçara mal, não me sentia à vontade e, sem que as palavras de Legrandin servissem
de nada para isso, lamentava começar num gabinete reservado de restaurante e acabar nos
bastidores de teatro aquela primeira tarde de primavera. Depois de ter olhado a hora para ver se
não estava atrasada, Rachel me ofereceu champanha, estendeu-me um de seus cigarros orientais
e retirou para mim uma rosa do corpete. Então murmurei comigo:
"Não tenho muito que lamentar o meu dia; estas horas passadas junto dessa moça não
estão perdidas para mim, visto que, por meio dela, possuo, coisa graciosa e que a gente pode
pagar caro, uma rosa, um cigarro perfumado e uma taça de champanha." Dizia-o porque me
parecia, dessa forma, dotar de um caráter estético, e assim justificar, salvar essas horas de tédio.
Talvez devesse ter pensado que a própria necessidade que eu experimentava de uma razão que
me consolasse do meu tédio bastava para provar que eu não sentia nada de estético. Quanto a
Robert e sua amante, davam a impressão de não guardar qualquer lembrança da discussão que
tinham tido minutos antes e nem que eu assistira à tal cena. Não fizeram qualquer alusão a ela,
não procuraram nenhuma desculpa para o fato, e nem mesmo para o contraste que formavam
com ela as suas maneiras de agora. À força de beber champanha com eles, comecei a sentir um
pouco a embriaguez que experimentara em Rivebelle, provavelmente a mesma. Não só cada
gênero de embriaguez, desde aquela que dá o sol ou a viagem, àquela que dá o cansaço ou o
vinho, mas também cada grau de sobriedade, e que deveria trazer consigo uma "cota" diferente,
como as que mostram os fundos no mar, põe a nu em nós, precisamente na profundidade em que
se encontra, um homem especial. O gabinete em que se achava Saint-Loup era pequeno, mas o
espelho único que o decorava era de tal espécie que parecia refletir uns trinta gabinetes, ao longo
de uma perspectiva infinita; e a lâmpada elétrica, colocada no topo da moldura, devia à noite,
quando estava acesa, seguida da procissão de uns trinta reflexos semelhantes a ela própria, dar
ao bebedor, mesmo solitário, a ideia de que o espaço a seu redor se multiplicava, ao mesmo
tempo que suas sensações exaltadas pela embriaguez e que, encerrado sozinho nesse pequeno
reduto, no entanto reinava sobre algo muito mais extenso, em sua curva indefinida e luminosa,
que uma aleia do "Jardim de Paris". Ora, sendo eu então nesse momento esse bebedor, de
súbito, procurando-o no espelho, avistei-o, horrível, desconhecido, a encarar-me. A alegria da
embriaguez era mais forte que o nojo; por alegria - ou bravata, sorri-lhe, ao mesmo tempo que ele
me sorria. Sentia-me de tal forma sob o império efêmero e poderoso do minuto em que as
sensações são tão fortes, que não sei se minha única tristeza seria pensar que o eu horrendo que
acabava de ver estava talvez no seu último dia, e que nunca mais encontraria aquele estranho
durante a minha vida.
Robert só estava aborrecido por eu não querer brilhar mais aos olhos de sua amante.
- Ora vamos, este senhor que encontraste esta manhã e que mistura esnobismo e
astronomia, conta-lhe, eu não me lembro bem e olhava-a com o rabo do olho.
- Mas, meu filho, não há nada a dizer além do que já disseste. - És insuportável. Então
conta coisas de Françoise nos Champs-Élysées; isso vai lhe agradar muito.
- Ah sim. Bobbey me falou tanto de Françoise. - E, segurando Saint-Loup pelo queixo,
repetiu, por falta de invenção, atraindo esse queixo para a luz: - Meus cumprimentos!
Desde que os atores já não eram exclusivamente, para mim, os depositários, na dicção e
no desempenho, de uma verdade artística, interessavam-me por si mesmos; divertia-me, julgando
ter diante de mim os personagens de um velho romance cômico, em ver a ingênua ouvir
distraidamente, no rosto novo de um jovem fidalgo que acabava de entrar na sala, a declaração
que lhe fazia o jovem galã na peça, ao passo que este, no fogo intenso de sua tirada amorosa,
não deixava de dirigir um olhar inflamado a uma velha senhora sentada num camarote vizinho, e
cujas pérolas magníficas o tinham siderado; e assim, sobretudo graças às informações dadas por
Saint-Loup acerca da vida privada dos artistas, eu via uma outra peça, muda e expressiva,
representar-se por detrás da peça falada, a qual, aliás, apesar de medíocre, me interessava; pois
nela sentia germinar e desabrochar, durante uma hora, à luz da ribalta feitas da aglutinação, sobre
o rosto de um ator, de um outro rosto de pintura e papelão, as palavras de um papel sobre a sua
alma pessoal -, essas individualidades vivazes e efêmeras que são as personagens de uma peça,
igualmente sedutoras, que a gente ama, admira, lastima, e que desejaríamos voltar a encontrar
ainda, tão logo deixamos o teatro, mas que já se desagregaram em um comediante que não tem
mais a condição que tinha na peça, num texto que já não exibe o rosto do comediante, num pó
colorido que o lenço desfaz, que, numa palavra, viraram elementos que nada mais têm deles, por
causa de sua dissolução, consumidas logo após o encerramento do espetáculo, e que fazem,
como a perda de um ente querido, duvidar da realidade do eu e meditar sobre o mistério da morte.
Um número do programa me foi extremamente penoso. Uma moça, que Rachel e várias de
suas amigas detestavam, devia fazer sua estreia cantando canções antigas, estreia na qual
fundara todas as suas esperanças de futuro e as dos seus. Essa moça tinha um traseiro
proeminente, quase ridículo, e uma voz bonita, mas muito débil, enfraquecida ainda pela emoção,
e que contrastava com aquela musculatura possante. Rachel colocara na sala um certo número
de amigos e amigas cujo papel era desconcertar a estreante com seus sarcasmos; sabiam que
era tímida, e contavam fazê-la perder a cabeça de modo que ela fosse um total fiasco, após o que
o diretor não lhe assinaria o contrato. Desde as primeiras notas da infeliz, alguns espectadores,
recrutados para esse fim, começaram a apontar para as suas costas, rindo; algumas mulheres
que participavam do complô riram bem alto, cada nota aflautada aumentava a hilaridade
intencional que se transformava em escândalo. A infeliz, que suava de dor sob a maquilagem,
tentou lutar por um momento; depois lançou a seu redor, sobre a assistência, olhares desolados,
indignados, que só fizeram redobrar os apupos. O espírito de imitação, o desejo de se mostrarem
espirituosas e atrevidas, fez com que belas atrizes, que não tinham sido prevenidas, entrassem no
jogo, e lançavam às outras umas olhadelas de malévola cumplicidade, torciam-se de rir em
violentas explosões, de modo que, no fim da segunda canção, e embora o programa anunciasse
cinco, o diretor de cena fez baixar o pano. Esforcei-me para não pensar naquele incidente, como
no sofrimento da minha avó quando meu tio-avô, para aborrecê-la, fazia meu avô beber
conhaque, pois a ideia da malvadeza possuía, para mim, algo de muito doloroso. No entanto,
assim como a piedade pela desgraça não é talvez muito exata, pois com a imaginação recriamos
toda uma dor, pela qual o infeliz, obrigado a lutar contra ela, nem pensa em enternecer-se, do
mesmo modo a malvadeza não tem provavelmente na alma do mau essa pura e voluptuosa
crueldade que tanto mal nos faz só de imaginar. O ódio o inspira, a cólera lhe dá um ardor e uma
atividade que nada têm de muito alegre; seria necessário sadismo para dele extrair prazer, e o
malvado julga que é malvado aquele a quem faz sofrer. Rachel certamente imaginava que a atriz
que ela fazia sofrer estava longe de ser interessante e, em todo caso, fazendo-a sofrer, achava
que ela própria vingava o bom gosto e dava uma lição a uma colega ruim. Não obstante, preferi
não falar daquele incidente, visto não ter tido nem a coragem nem o poder de impedi-lo; teria sido
muito penoso para mim, falando bem da vítima, fazer assemelharem-se às satisfações da
crueldade os sentimentos que animavam os carrascos daquela estreante.
Mas o começo do espetáculo interessou-me de outra maneira. Fez-me compreender em
parte a natureza da ilusão de que era vítima Saint-Loup em relação a Rachel e que colocara um
abismo entre as imagens que nós dois tínhamos acerca de sua amante, quando a víamos naquela
mesma manhã sob as pereiras em flor. Rachel representava um papel quase de simples figurante
na pecinha. Porém, vista assim, era uma outra mulher. Possuía um desses rostos que o
afastamento e não necessariamente o da plateia ao palco, sendo para isso o mundo apenas um
teatro maior modela e que, vistos de perto, recaem em pá. Junto dela, não se via mais que uma
nebulosa, uma Via-Láctea de sardas, pontinhos, e nada mais. A uma distância adequada, tudo
aquilo deixava de ser visível e, das faces apagadas, reabsorvidas, erguia-se, como um crescente
lunar, um nariz tão fino, tão puro, que a gente desejaria tornar-se objeto da atenção de Rachel,
revê-la tanto quanto se quisesse, possuí-la junto de si, caso nunca a houvesse visto de outro
modo e de perto. Não era a minha situação, mas a de Saint-Loup, quando a vira representar pela
primeira vez. Então, perguntara-se como se aproximar dela, como conhecê-la, abrira-se nele todo
um domínio maravilhoso aquele onde ela vivia do qual emanavam deliciosas radiações, mas onde
não poderia penetrar. Saiu do teatro dizendo a si próprio que seria louco se lhe escrevesse, que
ela não lhe responderia, pronto para dar sua fortuna e seu nome para a criatura que nele vivia em
um mundo de tal forma superior a essas realidades por demais conhecidas, um mundo
embelezado pelo desejo e pelo sonho, quando do teatro, velha construçãozinha que tinha ela
mesma o aspecto de um cenário, viu à saída dos artistas, por uma porta, desembocar o grupo
alegre e gentilmente enchapelado dos artistas que tinham representado. Pessoas jovens que os
conheciam ali estavam a esperá-los. Sendo o número de peões humanos menor que o das
combinações que podem formar, numa sala em que faltam todas as pessoas que a gente podia
conhecer, encontra-se uma que nunca se julgaria ter ocasião de rever e que vem tão a propósito
que o acaso parece providencial, ao qual, entretanto, um outro acaso substituiria se tivéssemos
ido não àquele lugar, mas a outro, onde teriam nascido desejos diferentes e onde seria
reencontrado outro velho conhecido para secundá-los. As portas de ouro do mundo dos sonhos
tinham-se fechado de novo sobre Rachel antes que Saint-Loup a tivesse visto sair do teatro, de
modo que as sardas e os sinaizinhos careceram de importância. Todavia lhe desagradaram, visto
que, deixando de estar só, já não tinha o mesmo poder de sonhar que no teatro. Mas tal poder,
embora já não o pudesse perceber, continuava a reger seus atos como esses astros que nos
governam por sua atração, mesmo nas horas em que não são visíveis para nós. Assim, o desejo
da comediante de finos traços, que nem mesmo estavam presentes na lembrança de Robert, fez
com que, abordando o antigo colega que ali se achava por acaso, ele se fizesse apresentar à
pessoa sem traços e com sardas, pois era a mesma, e dizendo consigo que mais tarde buscaria
saber qual das duas essa mesma pessoa era na realidade. Ela estava apressada e, naquele
momento, nem mesmo dirigiu a palavra a Saint-Loup, e só depois de vários dias é que ele pôde
enfim, conseguindo que ela deixasse os companheiros, regressar em sua companhia. Ele já a
amava. A necessidade de sonho, o desejo de ser feliz devido àquela com quem se sonhou fazem
não ser necessário muito tempo para que a gente confie todas as oportunidades de ventura
àquela que, alguns dias antes, não passava de uma aparição fortuita, desconhecida, indiferente,
nos tablados do palco.
Quando, descido o pano, passamos para o palco, intimidado por passear ali, quis falar
vivamente com Saint-Loup; desse modo, minha atitude, como não soubesse qual a que devia
tomar naqueles lugares novos para mim, seria totalmente monopolizada pela nossa conversa e
pensariam que eu estava tão absorto nela, tão distraído, que achariam natural que eu não tivesse
as expressões de fisionomia que deveria ter num lugar onde, atento a tudo o que eu mesmo dizia,
mal sabia onde me achava; e apanhando, para sair mais depressa, o primeiro assunto da
conversa:
- Sabes, - disse a Robert - que fui te dizer adeus no dia da minha partida? Nunca tivemos
oportunidade de falar a respeito. Cumprimentei-te na rua.
- Nem me fales nisso. - respondeu ele -, fiquei entristecido. Encontramo-nos bem perto do
quartel, mas não pude parar porque já estava muito atrasado. Garanto que estava desolado.
Assim, ele me reconhecera! Revia eu ainda o cumprimento totalmente impessoal que me
dirigira erguendo a mão ao quepe, sem um olhar que denunciasse que me conhecera, sem um
gesto que manifestasse lastimar o fato de não poder parar. Evidentemente, essa ficção que
adotara naquele momento, de não me reconhecer, devia lhe ter simplificado muitas coisas. Mas
eu estava estupefato de que tivesse sabido adotá-la tão rapidamente e antes que um reflexo
revelasse a sua primeira impressão. Já havia notado em Balbec que, ao lado dessa sinceridade
ingênua do seu rosto, cuja pele deixava ver por transparência o brusco afluir de certas emoções,
seu corpo fora admiravelmente treinado pela educação para determinado número de
dissimulações de conveniência e que, como um perfeito comediante, podia, em sua vida de
caserna, em sua vida mundana, desempenhar papéis diferentes, um após o outro. Num de seus
papéis, ele gostava profundamente de mim, tratava-me quase como se eu fosse seu irmão; meu
irmão ele o fora, voltara a sê-lo, mas por um instante tinha sido um outro personagem que não me
conhecia e que, segurando as rédeas, monóculo no olho, sem um olhar nem um sorriso, erguera a
mão à viseira do quepe para me dar corretamente a saudação militar!
Os cenários ainda armados, entre os quais passava, vistos assim de perto, desprovidos de
tudo o que lhes acrescentam o afastamento e a iluminação que o grande pintor que os executara
havia calculado, eram miseráveis, e Rachel, quando me aproximei dela, não sofreu menor poder
de destruição. As asas de seu nariz encantador tinham ficado na perspectiva, entre a plateia e o
palco, bem como o relevo dos cenários. Já não era ela, só a reconhecia graças aos olhos, onde
sua identidade se refugiara. A forma e o brilho desse jovem astro, tão fulgurante ainda há pouco,
haviam desaparecido. Em compensação, como se nos aproximássemos da lua e ela deixasse de
parecer-nos cor-de-rosa e ouro, naquele rosto tão igual momentos antes eu só distinguia
protuberâncias, manchas, ravinas. Apesar da incoerência em que se resolviam de perto, não
somente o rosto feminino mas as telas pintadas, sentia-me feliz por estar ali, por andar entre os
cenários, todo esse quadro que outrora o meu amor à natureza me faria considerar tedioso e
artificial, mas ao qual a sua pintura por Goethe no Wilhelm Meister me dera uma certa beleza; e já
me sentia encantado por avistar, em meio aos jornalistas ou às pessoas da sociedade amigos das
atrizes, que cumprimentavam, conversavam, fumavam, como se estivessem na cidade, um rapaz
de touca de veludo negro, de saia hortênsia, as faces pintadas de lápis vermelho como uma
página de álbum de Watteau, que, de boca risonha, os olhos voltados para o céu, esboçava sinais
graciosos com as palmas das mãos, saltando de leve, parecia de tal maneira pertencer a uma
espécie diferente das pessoas razoáveis de paletó e sobrecasaca, em meio às quais perseguia
como um louco o seu sonho extasiado, tão alheio às preocupações de suas vidas, tão anterior aos
hábitos de sua civilização, tão isento das leis da natureza, que era algo tão repousante e viçoso
como ver uma borboleta extraviada na multidão, seguir com os olhos, entre os frisos, os
arabescos naturais que ali traçava o seu folguedo alado, arrebicado e caprichoso. Mas, no mesmo
instante, Saint-Loup imaginou que sua amante prestava atenção naquele dançarino, que ensaiava
pela última vez uma figura da fantasia em que ia aparecer, e seu rosto voltou a ficar sombrio.
- Poderias olhar para o outro lado. - disse-lhe soturnamente Robert. - Sabes que esses
dançarinos não valem a corda a que fariam bem subir para quebrar o pescoço, e são pessoas
capazes de irem se gabar depois que lhes deste confiança. Aliás, estás ouvindo muito bem que te
dizem para ir ao camarim para te preparar. Vais chegar atrasada de novo.
Três senhores três jornalistas -, vendo o jeito enfurecido de Saint-Loup, aproximaram-se,
divertidos, para ouvir o que se dizia. E, como estavam armando um cenário do outro lado, ficamos
apertados contra eles.
- Oh, mas reconheço-o, é meu amigo! - exclamou a amante de Saint-Loup ao reparar no
dançarino. - Como é bonito, olhem estas mãozinhas que dançam como todo o resto do corpo!
O dançarino virou-se para ela e, sua pessoa humana aparecendo sob o silfo que ele se
empenhava em ser, a gelatina precisa e cinzenta de seus olhos estremeceu e brilhou por entre as
pestanas endurecidas e pintadas, e um sorriso prolongou-lhe a boca de ambos os lados na face
coberta de pastel vermelho; depois, para divertir a moça, como uma cantora que cantarola por
complacência a melodia em que lhe dissemos que a admirávamos, pôs-se a refazer o movimento
de suas palmas, arremedando a si próprio com uma finura de pastichador e um bom humor de
criança.
- Oh, que gentileza a sua em imitar a si mesmo! - exclamou Rachel batendo palmas.
- Rogo-te, minha filha. - disse-lhe Saint-Loup com voz desolada -, não te dês em
espetáculo desse modo, tu me matas; juro que se dizes uma só palavra a mais, não te
acompanho ao camarim e vou embora; vamos, não te faças de má. E não fiques assim, aspirando
a fumaça do charuto; vai te fazer mal. - acrescentou ele, voltando-se para mim com aquela
solicitude que me testemunhava desde Balbec.
- Oh, que sorte se fores embora!
- Previno-te que não voltarei mais.
- Nem ouso esperá-lo.
- Escuta, sabes, eu te prometi o colar se fosses gentil, mas já que me tratas deste modo...
- Ah, eis uma coisa que não me espanta de tua parte. Fizeste uma promessa, e eu bem
deveria ter imaginado que não haverias de cumpri-la. Queres alardear que tens dinheiro, mas não
sou interesseira como tu. Não ligo para o teu colar. Tenho alguém que me poderá dá-lo.
- Ninguém mais te poderá dar esse colar, pois eu o reservei na casa Boucheron e tenho a
sua palavra de que o venderá somente a mim.
- É isso mesmo, quiseste me prender, tomaste todas as precauções antecipadamente. É
bem como se diz: Marsantes, Mater Semita, sente-se o cheiro da raça. - retrucou Rachel,
repetindo uma etimologia fundada num grosseiro contrassenso, pois semita significa "senda" e não
"semita", mas que os nacionalistas aplicavam a Saint-Loup devido às suas opiniões dreyfusistas,
que no entanto ele devia à atriz. (Esta era menos indicada que ninguém para chamar de judia a
Sra. de Marsantes, em quem os etnógrafos da sociedade nada podiam encontrar de judaico, a
não ser o seu parentesco com os Lévy-Mimpoix.) - Mas nem tudo está liquidado, podes estar
certo. Uma palavra dada em tais condições não tem nenhum valor. Agiste traiçoeiramente comigo.
Boucheron vai saber disso e hão de lhe dar o dobro pelo colar. Fica tranquilo que em breve terás
notícias minhas.
Robert tinha cem vezes razão. Mas as circunstâncias são sempre tão confusas que o que
tem cem vezes razão pode não tê-la uma vez. E não pude evitar de me lembrar aquela frase
desagradável, no entanto bem inocente, que ele dissera em Balbec:
- Desse modo, tenho-a nas mãos.
- Compreendeste mal o que disse a respeito do colar. Eu não o havia prometido de
maneira formal. Do momento em que fazes tudo para que te deixe, entende, é muito natural que
não te dê o colar; não percebo onde é que está a traição nesse caso, nem admito ser interesseiro.
Não se pode dizer que eu faça alarde do meu dinheiro, digo-te sempre que sou um pobre-diabo
sem tostão. Não procedes bem tomando as coisas por esse lado, minha filha. Em que eu sou
interessado? Sabes muito bem que meu único interesse és tu.
- Sim, sim, podes continuar. - disse ela ironicamente, esboçando o gesto de alguém que
nos faz a barba. E voltando-se para o dançarino: - Ah, na verdade ele é assombroso com as
mãos. Eu, que sou mulher, não poderia fazer o que ele faz e voltando-se para ele, mostrando-lhe
as feições convulsivas de Robert:
- Olha, ele está sofrendo. - disse baixinho, no momentâneo impulso de uma crueldade
sádica, aliás sem qualquer relação com seus verdadeiros sentimentos de afeto por Saint-Loup.
- Escuta, pela última vez, te juro que, por mais que faças, poderás sentir daqui a oito dias
todos os remorsos do mundo, mas eu não voltarei; a taça está repleta, presta atenção, isto é
irrevogável, um dia hás de te arrepender e será tarde demais.
Talvez fosse sincero, e o tormento de abandonar a amante lhe parecia menos cruel que o
de estar junto dela em determinadas condições.
- Mas meu filho. - acrescentou, dirigindo-se a mim -, não fiques aí que vais começar a
tossir.
Mostrei-lhe o cenário que me impedia de mudar de lugar. Ele tocou de leve no chapéu e
disse ao jornalista:
- Senhor, pode jogar fora o charuto? O fumo faz mal ao meu amigo.
continua na página 78...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Deixei de tomar parte)
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - A amante, sem esperá-lo, encaminhava-se)
Volume 4
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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