segunda-feira, 26 de maio de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Deixei de tomar parte)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Deixei de tomar parte na conversa quando se falou de teatro, pois nesse assunto Rachel era muito malévola. É verdade que assumiu, em tom de comiseração contra Saint-Loup, o que provava que o atacava muitas vezes diante dele mesmo -, a defesa da Berma, ao dizer:

- Oh, não! É uma mulher notável. Evidentemente, o que ela faz já não nos diz nada, não corresponde mais absolutamente ao que procuramos, mas é preciso colocá-la no momento em que apareceu, a gente lhe deve muito. Fez as coisas certo, tu sabes. E, depois, é uma mulher tão corajosa, tem um grande coração, naturalmente não preza as coisas que nos interessam, mas teve, como um rosto bem impressionante, uma bela qualidade de inteligência. - (Os dedos não acompanham da mesma forma todos os juízos estéticos. Se se trata de pintura, para mostrar que é uma bela peça, de largas pinceladas, limita-se a ressaltar o polegar. Mas a "bela qualidade de espírito" é mais exigente. São-lhe precisos dois dedos, ou melhor, duas unhas, como se se tratasse de fazer pular um grão de poeira.) Mas, aberta esta exceção, a amante de Saint-Loup falava dos artistas mais conhecidos num tom de ironia e superioridade que me irritava, porque eu achava que ela é que lhes era inferior enganando-me nisso. Rachel percebeu muito bem que a devia considerar uma artista medíocre e, pelo contrário, ter muita consideração por aqueles a quem ela desprezava. Mas não se sentiu ofendida, porque há, no grande talento ainda não reconhecido, como o seu, por mais seguro que possa estar de si mesmo, uma certa humildade, e proporcionamos as considerações que exigimos não aos nossos dons ocultos, mas à posição que adquirimos. (Uma hora depois, eu devia ver, no teatro, a amante de Saint-Loup demonstrar muita deferência para com os artistas sobre quem externava um juízo tão severo.) Assim, por menos dúvidas que pudesse ter deixado o meu silêncio, ela insistiu para que jantássemos juntos de noite, assegurando que jamais se agradara tanto da conversa de alguém como da minha. Se ainda não estávamos no teatro, aonde deveríamos ir após a refeição, dávamos a impressão de nos acharmos num foyer, decorado com retratos antigos da companhia, de tal forma os mordomos tinham caras que pareciam perdidas com toda uma geração de artistas fora do comum, do Palais Royal; também pareciam acadêmicos: parado diante de um bufê, um examinava peras com o rosto e a curiosidade desinteressada que poderia ter o Sr. de Jussieu. Outros, a seu lado, lançavam pela sala os olhares cheios de curiosidade e frieza que os membros do Instituto, já presentes, lançam sobre o público trocando algumas palavras que ninguém ouve. Eram figuras célebres entre os habitués. Entretanto, mostrava-se um novato, de nariz pregueado e lábio hipócrita, que tinha um jeito de igreja e exercia as funções pela primeira vez, e todos observavam o novo eleito. Mas em breve, talvez para que Robert partisse e ela pudesse encontrar-se a sós com Aimé, Rachel pôs-se a encarar um jovem bolsista que almoçava com um amigo numa mesa próxima. 
- Zézette, peço-te que não olhes assim para esse rapaz. - disse Saint-Loup, em cujo rosto os rubores hesitantes de há pouco se haviam concentrado em uma sombra sangrenta que dilatava e afundava os traços distendidos do meu amigo -; se pretendes nos fazer uma cena, prefiro almoçar em separado e ir te esperar no teatro. 

     Nesse momento, vieram dizer a Aimé que um senhor lhe rogava fosse lhe falar na portinhola de seu carro. Saint-Loup, sempre inquieto e temendo que se tratasse de um recado amoroso a ser transmitido à sua amante, olhou pela vidraça e vislumbrou, no fundo de seu cupê, as mãos enfiadas em luvas brancas raiadas de preto, com uma flor na botoeira, o Sr. de Charlus.

- Estás vendo. - disse-me ele em voz baixa - que minha família me manda perseguir até aqui. Peço-te, eu não posso mais, mas já que conheces bem o mordomo, que certamente nos vai denunciar, diga-lhe que não vá até o carro. Pelo menos que seja um garçom que não me conheça. Se dizem a meu tio que não me conhecem, sei como ele é, não virá olhar no café, detesta esses locais. E, mesmo assim, não é asqueroso que um velho mulherengo como ele, que ainda não sossegou, me dê permanentemente lições de moral e venha me espionar?!

     Aimé, tendo recebido minhas instruções, enviou um de seus ajudantes, que devia dizer que ele não podia ausentar-se do salão naquele momento e que, se perguntassem pelo marquês de Saint-Loup, que não o conheciam. E logo o carro partiu. Mas a amante de Saint-Loup, que não entendera nossas frases sussurradas em voz baixa e julgara que se tratava do rapaz a quem Robert lhe censurara por ter encarado, explodiu em insultos: 

- Como? É esse rapaz agora?! Fazes bem em me prevenir; oh, é delicioso almoçar nessas condições! Não ligue para o que ele diz, está um tanto ofendido, e principalmente - acrescentou ela voltando-se para mim -, ele diz isto porque julga que é elegante, que isso de ter ciúmes é coisa de grão-senhor. 

     E pôs-se a dar sinais de nervosismo com os pés e com as mãos. 

- Mas Zézette, para mim é que é desagradável. Tu nos tornas ridículos aos olhos deste senhor que vai ficar convencido que lhe dás atenções, e que me parece que é o que existe de pior. 
- A mim, ao contrário, ele me agrada muito; em primeiro lugar, tem olhos deslumbrantes, e que possuem uma forma de olhar as mulheres; percebe-se que ele deve amá-las. 
- Cala-te pelo menos até que eu tenha ido embora, se é que estás louca! - gritou Robert. - Garçom, minhas coisas.  

     Não sabia se devia segui-lo. 

- Não, preciso estar sozinho. - disse-me no mesmo tom com que acabara de falar à amante e como se estivesse zangado comigo. Sua cólera parecia uma mesma frase musical sobre a qual, numa ópera, cantam-se várias réplicas no libreto, inteiramente diversas entre si de sentido e de natureza, mas que ela reúne num mesmo sentimento. Quando Robert partiu, sua amante chamou Aimé e lhe pediu várias informações. E, a seguir, quis saber o que eu achava dele. 
- Tem um olhar divertido, não é? Compreende, o que me agradaria seria saber o que ele pode estar pensando, ser servida por ele muitas vezes, levá-lo em viagem. Porém não mais do que isso. Se a gente fosse obrigada a amar todas as pessoas que nos agradam, seria no fundo uma coisa terrível. Robert não tem motivos para imaginar coisas. Tudo isto só me passa pela cabeça, Robert devia ficar tranquilo. - Continuava a olhar para Aimé. - Veja, repare nos olhos pretos que ele tem; gostaria de saber o que há por detrás deles.

     Em breve, vieram lhe dizer que Robert a mandava chamar em um gabinete particular, onde, passando por uma outra entrada, ele fora acabar o seu almoço sem atravessar o restaurante. Assim, fiquei sozinho, e depois Robert me mandou chamar por minha vez. Encontrei sua amante estendida num sofá rindo ante os beijos e as carícias que ele lhe prodigalizava. Bebiam champanha. 

- Meus cumprimentos. - disse-lhe ela, pois aprendera recentemente essa fórmula que lhe parecia a última palavra em matéria de ternura e de espírito.

     Eu almoçara mal, não me sentia à vontade e, sem que as palavras de Legrandin servissem de nada para isso, lamentava começar num gabinete reservado de restaurante e acabar nos bastidores de teatro aquela primeira tarde de primavera. Depois de ter olhado a hora para ver se não estava atrasada, Rachel me ofereceu champanha, estendeu-me um de seus cigarros orientais e retirou para mim uma rosa do corpete. Então murmurei comigo: 

"Não tenho muito que lamentar o meu dia; estas horas passadas junto dessa moça não estão perdidas para mim, visto que, por meio dela, possuo, coisa graciosa e que a gente pode pagar caro, uma rosa, um cigarro perfumado e uma taça de champanha." Dizia-o porque me parecia, dessa forma, dotar de um caráter estético, e assim justificar, salvar essas horas de tédio. Talvez devesse ter pensado que a própria necessidade que eu experimentava de uma razão que me consolasse do meu tédio bastava para provar que eu não sentia nada de estético. Quanto a Robert e sua amante, davam a impressão de não guardar qualquer lembrança da discussão que tinham tido minutos antes e nem que eu assistira à tal cena. Não fizeram qualquer alusão a ela, não procuraram nenhuma desculpa para o fato, e nem mesmo para o contraste que formavam com ela as suas maneiras de agora. À força de beber champanha com eles, comecei a sentir um pouco a embriaguez que experimentara em Rivebelle, provavelmente a mesma. Não só cada gênero de embriaguez, desde aquela que dá o sol ou a viagem, àquela que dá o cansaço ou o vinho, mas também cada grau de sobriedade, e que deveria trazer consigo uma "cota" diferente, como as que mostram os fundos no mar, põe a nu em nós, precisamente na profundidade em que se encontra, um homem especial. O gabinete em que se achava Saint-Loup era pequeno, mas o espelho único que o decorava era de tal espécie que parecia refletir uns trinta gabinetes, ao longo de uma perspectiva infinita; e a lâmpada elétrica, colocada no topo da moldura, devia à noite, quando estava acesa, seguida da procissão de uns trinta reflexos semelhantes a ela própria, dar ao bebedor, mesmo solitário, a ideia de que o espaço a seu redor se multiplicava, ao mesmo tempo que suas sensações exaltadas pela embriaguez e que, encerrado sozinho nesse pequeno reduto, no entanto reinava sobre algo muito mais extenso, em sua curva indefinida e luminosa, que uma aleia do "Jardim de Paris". Ora, sendo eu então nesse momento esse bebedor, de súbito, procurando-o no espelho, avistei-o, horrível, desconhecido, a encarar-me. A alegria da embriaguez era mais forte que o nojo; por alegria - ou bravata, sorri-lhe, ao mesmo tempo que ele me sorria. Sentia-me de tal forma sob o império efêmero e poderoso do minuto em que as sensações são tão fortes, que não sei se minha única tristeza seria pensar que o eu horrendo que acabava de ver estava talvez no seu último dia, e que nunca mais encontraria aquele estranho durante a minha vida.

     Robert só estava aborrecido por eu não querer brilhar mais aos olhos de sua amante. 

- Ora vamos, este senhor que encontraste esta manhã e que mistura esnobismo e astronomia, conta-lhe, eu não me lembro bem e olhava-a com o rabo do olho. 
- Mas, meu filho, não há nada a dizer além do que já disseste. - És insuportável. Então conta coisas de Françoise nos Champs-Élysées; isso vai lhe agradar muito. 
- Ah sim. Bobbey me falou tanto de Françoise. - E, segurando Saint-Loup pelo queixo, repetiu, por falta de invenção, atraindo esse queixo para a luz: - Meus cumprimentos!

     Desde que os atores já não eram exclusivamente, para mim, os depositários, na dicção e no desempenho, de uma verdade artística, interessavam-me por si mesmos; divertia-me, julgando ter diante de mim os personagens de um velho romance cômico, em ver a ingênua ouvir distraidamente, no rosto novo de um jovem fidalgo que acabava de entrar na sala, a declaração que lhe fazia o jovem galã na peça, ao passo que este, no fogo intenso de sua tirada amorosa, não deixava de dirigir um olhar inflamado a uma velha senhora sentada num camarote vizinho, e cujas pérolas magníficas o tinham siderado; e assim, sobretudo graças às informações dadas por Saint-Loup acerca da vida privada dos artistas, eu via uma outra peça, muda e expressiva, representar-se por detrás da peça falada, a qual, aliás, apesar de medíocre, me interessava; pois nela sentia germinar e desabrochar, durante uma hora, à luz da ribalta feitas da aglutinação, sobre o rosto de um ator, de um outro rosto de pintura e papelão, as palavras de um papel sobre a sua alma pessoal -, essas individualidades vivazes e efêmeras que são as personagens de uma peça, igualmente sedutoras, que a gente ama, admira, lastima, e que desejaríamos voltar a encontrar ainda, tão logo deixamos o teatro, mas que já se desagregaram em um comediante que não tem mais a condição que tinha na peça, num texto que já não exibe o rosto do comediante, num pó colorido que o lenço desfaz, que, numa palavra, viraram elementos que nada mais têm deles, por causa de sua dissolução, consumidas logo após o encerramento do espetáculo, e que fazem, como a perda de um ente querido, duvidar da realidade do eu e meditar sobre o mistério da morte.
     Um número do programa me foi extremamente penoso. Uma moça, que Rachel e várias de suas amigas detestavam, devia fazer sua estreia cantando canções antigas, estreia na qual fundara todas as suas esperanças de futuro e as dos seus. Essa moça tinha um traseiro proeminente, quase ridículo, e uma voz bonita, mas muito débil, enfraquecida ainda pela emoção, e que contrastava com aquela musculatura possante. Rachel colocara na sala um certo número de amigos e amigas cujo papel era desconcertar a estreante com seus sarcasmos; sabiam que era tímida, e contavam fazê-la perder a cabeça de modo que ela fosse um total fiasco, após o que o diretor não lhe assinaria o contrato. Desde as primeiras notas da infeliz, alguns espectadores, recrutados para esse fim, começaram a apontar para as suas costas, rindo; algumas mulheres que participavam do complô riram bem alto, cada nota aflautada aumentava a hilaridade intencional que se transformava em escândalo. A infeliz, que suava de dor sob a maquilagem, tentou lutar por um momento; depois lançou a seu redor, sobre a assistência, olhares desolados, indignados, que só fizeram redobrar os apupos. O espírito de imitação, o desejo de se mostrarem espirituosas e atrevidas, fez com que belas atrizes, que não tinham sido prevenidas, entrassem no jogo, e lançavam às outras umas olhadelas de malévola cumplicidade, torciam-se de rir em violentas explosões, de modo que, no fim da segunda canção, e embora o programa anunciasse cinco, o diretor de cena fez baixar o pano. Esforcei-me para não pensar naquele incidente, como no sofrimento da minha avó quando meu tio-avô, para aborrecê-la, fazia meu avô beber conhaque, pois a ideia da malvadeza possuía, para mim, algo de muito doloroso. No entanto, assim como a piedade pela desgraça não é talvez muito exata, pois com a imaginação recriamos toda uma dor, pela qual o infeliz, obrigado a lutar contra ela, nem pensa em enternecer-se, do mesmo modo a malvadeza não tem provavelmente na alma do mau essa pura e voluptuosa crueldade que tanto mal nos faz só de imaginar. O ódio o inspira, a cólera lhe dá um ardor e uma atividade que nada têm de muito alegre; seria necessário sadismo para dele extrair prazer, e o malvado julga que é malvado aquele a quem faz sofrer. Rachel certamente imaginava que a atriz que ela fazia sofrer estava longe de ser interessante e, em todo caso, fazendo-a sofrer, achava que ela própria vingava o bom gosto e dava uma lição a uma colega ruim. Não obstante, preferi não falar daquele incidente, visto não ter tido nem a coragem nem o poder de impedi-lo; teria sido muito penoso para mim, falando bem da vítima, fazer assemelharem-se às satisfações da crueldade os sentimentos que animavam os carrascos daquela estreante.
     Mas o começo do espetáculo interessou-me de outra maneira. Fez-me compreender em parte a natureza da ilusão de que era vítima Saint-Loup em relação a Rachel e que colocara um abismo entre as imagens que nós dois tínhamos acerca de sua amante, quando a víamos naquela mesma manhã sob as pereiras em flor. Rachel representava um papel quase de simples figurante na pecinha. Porém, vista assim, era uma outra mulher. Possuía um desses rostos que o afastamento e não necessariamente o da plateia ao palco, sendo para isso o mundo apenas um teatro maior modela e que, vistos de perto, recaem em pá. Junto dela, não se via mais que uma nebulosa, uma Via-Láctea de sardas, pontinhos, e nada mais. A uma distância adequada, tudo aquilo deixava de ser visível e, das faces apagadas, reabsorvidas, erguia-se, como um crescente lunar, um nariz tão fino, tão puro, que a gente desejaria tornar-se objeto da atenção de Rachel, revê-la tanto quanto se quisesse, possuí-la junto de si, caso nunca a houvesse visto de outro modo e de perto. Não era a minha situação, mas a de Saint-Loup, quando a vira representar pela primeira vez. Então, perguntara-se como se aproximar dela, como conhecê-la, abrira-se nele todo um domínio maravilhoso aquele onde ela vivia do qual emanavam deliciosas radiações, mas onde não poderia penetrar. Saiu do teatro dizendo a si próprio que seria louco se lhe escrevesse, que ela não lhe responderia, pronto para dar sua fortuna e seu nome para a criatura que nele vivia em um mundo de tal forma superior a essas realidades por demais conhecidas, um mundo embelezado pelo desejo e pelo sonho, quando do teatro, velha construçãozinha que tinha ela mesma o aspecto de um cenário, viu à saída dos artistas, por uma porta, desembocar o grupo alegre e gentilmente enchapelado dos artistas que tinham representado. Pessoas jovens que os conheciam ali estavam a esperá-los. Sendo o número de peões humanos menor que o das combinações que podem formar, numa sala em que faltam todas as pessoas que a gente podia conhecer, encontra-se uma que nunca se julgaria ter ocasião de rever e que vem tão a propósito que o acaso parece providencial, ao qual, entretanto, um outro acaso substituiria se tivéssemos ido não àquele lugar, mas a outro, onde teriam nascido desejos diferentes e onde seria reencontrado outro velho conhecido para secundá-los. As portas de ouro do mundo dos sonhos tinham-se fechado de novo sobre Rachel antes que Saint-Loup a tivesse visto sair do teatro, de modo que as sardas e os sinaizinhos careceram de importância. Todavia lhe desagradaram, visto que, deixando de estar só, já não tinha o mesmo poder de sonhar que no teatro. Mas tal poder, embora já não o pudesse perceber, continuava a reger seus atos como esses astros que nos governam por sua atração, mesmo nas horas em que não são visíveis para nós. Assim, o desejo da comediante de finos traços, que nem mesmo estavam presentes na lembrança de Robert, fez com que, abordando o antigo colega que ali se achava por acaso, ele se fizesse apresentar à pessoa sem traços e com sardas, pois era a mesma, e dizendo consigo que mais tarde buscaria saber qual das duas essa mesma pessoa era na realidade. Ela estava apressada e, naquele momento, nem mesmo dirigiu a palavra a Saint-Loup, e só depois de vários dias é que ele pôde enfim, conseguindo que ela deixasse os companheiros, regressar em sua companhia. Ele já a amava. A necessidade de sonho, o desejo de ser feliz devido àquela com quem se sonhou fazem não ser necessário muito tempo para que a gente confie todas as oportunidades de ventura àquela que, alguns dias antes, não passava de uma aparição fortuita, desconhecida, indiferente, nos tablados do palco.
     Quando, descido o pano, passamos para o palco, intimidado por passear ali, quis falar vivamente com Saint-Loup; desse modo, minha atitude, como não soubesse qual a que devia tomar naqueles lugares novos para mim, seria totalmente monopolizada pela nossa conversa e pensariam que eu estava tão absorto nela, tão distraído, que achariam natural que eu não tivesse as expressões de fisionomia que deveria ter num lugar onde, atento a tudo o que eu mesmo dizia, mal sabia onde me achava; e apanhando, para sair mais depressa, o primeiro assunto da conversa: 

- Sabes, - disse a Robert - que fui te dizer adeus no dia da minha partida? Nunca tivemos oportunidade de falar a respeito. Cumprimentei-te na rua. 
- Nem me fales nisso. - respondeu ele -, fiquei entristecido. Encontramo-nos bem perto do quartel, mas não pude parar porque já estava muito atrasado. Garanto que estava desolado.

     Assim, ele me reconhecera! Revia eu ainda o cumprimento totalmente impessoal que me dirigira erguendo a mão ao quepe, sem um olhar que denunciasse que me conhecera, sem um gesto que manifestasse lastimar o fato de não poder parar. Evidentemente, essa ficção que adotara naquele momento, de não me reconhecer, devia lhe ter simplificado muitas coisas. Mas eu estava estupefato de que tivesse sabido adotá-la tão rapidamente e antes que um reflexo revelasse a sua primeira impressão. Já havia notado em Balbec que, ao lado dessa sinceridade ingênua do seu rosto, cuja pele deixava ver por transparência o brusco afluir de certas emoções, seu corpo fora admiravelmente treinado pela educação para determinado número de dissimulações de conveniência e que, como um perfeito comediante, podia, em sua vida de caserna, em sua vida mundana, desempenhar papéis diferentes, um após o outro. Num de seus papéis, ele gostava profundamente de mim, tratava-me quase como se eu fosse seu irmão; meu irmão ele o fora, voltara a sê-lo, mas por um instante tinha sido um outro personagem que não me conhecia e que, segurando as rédeas, monóculo no olho, sem um olhar nem um sorriso, erguera a mão à viseira do quepe para me dar corretamente a saudação militar!
     Os cenários ainda armados, entre os quais passava, vistos assim de perto, desprovidos de tudo o que lhes acrescentam o afastamento e a iluminação que o grande pintor que os executara havia calculado, eram miseráveis, e Rachel, quando me aproximei dela, não sofreu menor poder de destruição. As asas de seu nariz encantador tinham ficado na perspectiva, entre a plateia e o palco, bem como o relevo dos cenários. Já não era ela, só a reconhecia graças aos olhos, onde sua identidade se refugiara. A forma e o brilho desse jovem astro, tão fulgurante ainda há pouco, haviam desaparecido. Em compensação, como se nos aproximássemos da lua e ela deixasse de parecer-nos cor-de-rosa e ouro, naquele rosto tão igual momentos antes eu só distinguia protuberâncias, manchas, ravinas. Apesar da incoerência em que se resolviam de perto, não somente o rosto feminino mas as telas pintadas, sentia-me feliz por estar ali, por andar entre os cenários, todo esse quadro que outrora o meu amor à natureza me faria considerar tedioso e artificial, mas ao qual a sua pintura por Goethe no Wilhelm Meister me dera uma certa beleza; e já me sentia encantado por avistar, em meio aos jornalistas ou às pessoas da sociedade amigos das atrizes, que cumprimentavam, conversavam, fumavam, como se estivessem na cidade, um rapaz de touca de veludo negro, de saia hortênsia, as faces pintadas de lápis vermelho como uma página de álbum de Watteau, que, de boca risonha, os olhos voltados para o céu, esboçava sinais graciosos com as palmas das mãos, saltando de leve, parecia de tal maneira pertencer a uma espécie diferente das pessoas razoáveis de paletó e sobrecasaca, em meio às quais perseguia como um louco o seu sonho extasiado, tão alheio às preocupações de suas vidas, tão anterior aos hábitos de sua civilização, tão isento das leis da natureza, que era algo tão repousante e viçoso como ver uma borboleta extraviada na multidão, seguir com os olhos, entre os frisos, os arabescos naturais que ali traçava o seu folguedo alado, arrebicado e caprichoso. Mas, no mesmo instante, Saint-Loup imaginou que sua amante prestava atenção naquele dançarino, que ensaiava pela última vez uma figura da fantasia em que ia aparecer, e seu rosto voltou a ficar sombrio.

- Poderias olhar para o outro lado. - disse-lhe soturnamente Robert. - Sabes que esses dançarinos não valem a corda a que fariam bem subir para quebrar o pescoço, e são pessoas capazes de irem se gabar depois que lhes deste confiança. Aliás, estás ouvindo muito bem que te dizem para ir ao camarim para te preparar. Vais chegar atrasada de novo.

     Três senhores três jornalistas -, vendo o jeito enfurecido de Saint-Loup, aproximaram-se, divertidos, para ouvir o que se dizia. E, como estavam armando um cenário do outro lado, ficamos apertados contra eles. 

- Oh, mas reconheço-o, é meu amigo! - exclamou a amante de Saint-Loup ao reparar no dançarino. - Como é bonito, olhem estas mãozinhas que dançam como todo o resto do corpo!

     O dançarino virou-se para ela e, sua pessoa humana aparecendo sob o silfo que ele se empenhava em ser, a gelatina precisa e cinzenta de seus olhos estremeceu e brilhou por entre as pestanas endurecidas e pintadas, e um sorriso prolongou-lhe a boca de ambos os lados na face coberta de pastel vermelho; depois, para divertir a moça, como uma cantora que cantarola por complacência a melodia em que lhe dissemos que a admirávamos, pôs-se a refazer o movimento de suas palmas, arremedando a si próprio com uma finura de pastichador e um bom humor de criança. 

- Oh, que gentileza a sua em imitar a si mesmo! - exclamou Rachel batendo palmas. 
- Rogo-te, minha filha. - disse-lhe Saint-Loup com voz desolada -, não te dês em espetáculo desse modo, tu me matas; juro que se dizes uma só palavra a mais, não te acompanho ao camarim e vou embora; vamos, não te faças de má. E não fiques assim, aspirando a fumaça do charuto; vai te fazer mal. - acrescentou ele, voltando-se para mim com aquela solicitude que me testemunhava desde Balbec. 
- Oh, que sorte se fores embora! 
- Previno-te que não voltarei mais. 
- Nem ouso esperá-lo. 
- Escuta, sabes, eu te prometi o colar se fosses gentil, mas já que me tratas deste modo... 
- Ah, eis uma coisa que não me espanta de tua parte. Fizeste uma promessa, e eu bem deveria ter imaginado que não haverias de cumpri-la. Queres alardear que tens dinheiro, mas não sou interesseira como tu. Não ligo para o teu colar. Tenho alguém que me poderá dá-lo. 
- Ninguém mais te poderá dar esse colar, pois eu o reservei na casa Boucheron e tenho a sua palavra de que o venderá somente a mim. 
- É isso mesmo, quiseste me prender, tomaste todas as precauções antecipadamente. É bem como se diz: Marsantes, Mater Semita, sente-se o cheiro da raça. - retrucou Rachel, repetindo uma etimologia fundada num grosseiro contrassenso, pois semita significa "senda" e não "semita", mas que os nacionalistas aplicavam a Saint-Loup devido às suas opiniões dreyfusistas, que no entanto ele devia à atriz. (Esta era menos indicada que ninguém para chamar de judia a Sra. de Marsantes, em quem os etnógrafos da sociedade nada podiam encontrar de judaico, a não ser o seu parentesco com os Lévy-Mimpoix.) - Mas nem tudo está liquidado, podes estar certo. Uma palavra dada em tais condições não tem nenhum valor. Agiste traiçoeiramente comigo. Boucheron vai saber disso e hão de lhe dar o dobro pelo colar. Fica tranquilo que em breve terás notícias minhas. 

     Robert tinha cem vezes razão. Mas as circunstâncias são sempre tão confusas que o que tem cem vezes razão pode não tê-la uma vez. E não pude evitar de me lembrar aquela frase desagradável, no entanto bem inocente, que ele dissera em Balbec: 

- Desse modo, tenho-a nas mãos. 
- Compreendeste mal o que disse a respeito do colar. Eu não o havia prometido de maneira formal. Do momento em que fazes tudo para que te deixe, entende, é muito natural que não te dê o colar; não percebo onde é que está a traição nesse caso, nem admito ser interesseiro. Não se pode dizer que eu faça alarde do meu dinheiro, digo-te sempre que sou um pobre-diabo sem tostão. Não procedes bem tomando as coisas por esse lado, minha filha. Em que eu sou interessado? Sabes muito bem que meu único interesse és tu. 
- Sim, sim, podes continuar. - disse ela ironicamente, esboçando o gesto de alguém que nos faz a barba. E voltando-se para o dançarino: - Ah, na verdade ele é assombroso com as mãos. Eu, que sou mulher, não poderia fazer o que ele faz e voltando-se para ele, mostrando-lhe as feições convulsivas de Robert: 
- Olha, ele está sofrendo. - disse baixinho, no momentâneo impulso de uma crueldade sádica, aliás sem qualquer relação com seus verdadeiros sentimentos de afeto por Saint-Loup. 
- Escuta, pela última vez, te juro que, por mais que faças, poderás sentir daqui a oito dias todos os remorsos do mundo, mas eu não voltarei; a taça está repleta, presta atenção, isto é irrevogável, um dia hás de te arrepender e será tarde demais. 

     Talvez fosse sincero, e o tormento de abandonar a amante lhe parecia menos cruel que o de estar junto dela em determinadas condições. 

- Mas meu filho. - acrescentou, dirigindo-se a mim -, não fiques aí que vais começar a tossir. 

     Mostrei-lhe o cenário que me impedia de mudar de lugar. Ele tocou de leve no chapéu e disse ao jornalista: 

- Senhor, pode jogar fora o charuto? O fumo faz mal ao meu amigo.

continua na página 78...
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Volume 2
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