A Montanha Mágica
Capítulo V
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Hans Castorp e Joachim Ziemssen, trajando calças brancas e jaquetas azuis, estavam
sentados no jardim, depois do almoço. Era mais um desses tão elogiados dias de outubro, um dia
quente sem ser pesado, de um brilho festivo, e ao mesmo tempo de certo sabor amargo. Um azul
de intensidade meridional pairava por cima do vale, em cujo fundo ainda verdejavam alegremente
as pradarias sulcadas de veredas e salpicadas de habitações, e de cujas encostas cobertas de
matagal selvagem vinham os sons dos cincerros das vacas – esse tilintar metálico, música pacífica
e singela, que flutuava, clara e tranquila, através dos ares calmos, vazios e rarefeitos,
aprofundando a atmosfera de solenidade que predomina em regiões altas.
Os primos haviam se instalado num banco numa das extremidades do jardim, diante de
um largo circular, plantado de abetos novos. O lugar estava situado na parte noroeste da
plataforma cercada, que se elevava uns cinquenta metros acima do vale e formava o pedestal do
Berghof. Permaneciam calados. Hans Castorp fumava. Intimamente experimentava algum rancor
contra Joachim, porque este, depois do almoço, não quisera tomar parte na reunião do terraço e,
contra o seu desejo, forçara-o a desfrutar a calma do jardim, antes de se entregar ao repouso
regulamentar. Era uma atitude tirânica da parte de Joachim. Afinal de contas, não eram eles
gêmeos siameses. Podiam separar-se quando as suas inclinações não coincidiam. Ora, Hans
Castorp não se achava ali para fazer companhia a Joachim; ele mesmo era paciente. Pensando
nisso, amuava-se, e não lhe era difícil suportar o amuo, já que dispunha do recurso do Maria
Mancini. Com as mãos nos bolsos da jaqueta, estendendo diante de si os pés calçados de sapatos
marrons, deixava pender entre os lábios o comprido charuto acinzentado, que se encontrava na
primeira fase da combustão, o que quer dizer que não fora ainda removida a cinza da ponta
obtusa. Depois da refeição farta, gozava aquele aroma que voltara a saborear plenamente. Bem
podia ser que a sua aclimatação ali em cima consistisse apenas em habituar-se à ideia de não se
habituar, e contudo era evidente que, no que se referia às reações químicas do seu estômago e aos
nervos das suas mucosas secas e propensas a sangrar, a adaptação se realizara enfim;
insensivelmente e sem que ele fosse capaz de observar o progresso, ressuscitara, no decorrer
desses sessenta e cinco ou setenta dias, todo o prazer orgânico que tinha a sua origem naquele
bem-preparado estimulante ou tóxico vegetal. Hans Castorp regozijava-se de lhe ter reencontrado
o sabor. A satisfação moral intensificava o prazer físico. Durante o tempo que passara na cama,
fizera economias nos duzentos charutos que trouxera como provisão de viagem, e dos quais
ainda sobravam alguns. Mas, junto com a roupa-branca e os trajes de inverno, mandara que lhe
enviassem por Schalleen outros quinhentos exemplares do produto bremense, a fim de se ver
munido para qualquer eventualidade. Eram bonitas caixinhas envernizadas, ostentando um globo
terrestre, muitas medalhas e um edifício de exposição rodeado de bandeiras tremulando ao vento,
tudo isso impresso em ouro.
Enquanto estavam assim sentados, eis que o Dr. Behrens atravessou o jardim. Naquele
dia tomara parte no almoço, à mesa da Srª. Salomon. Haviam-no visto juntar diante do prato as
enormes manzorras. Depois, provavelmente se detivera no terraço, dirigindo a cada enfermo
algumas palavras pessoais e exibindo, talvez, o truque dos cordões de sapato, para quem ainda
não o tivesse visto. Agora aproximava-se, flanando pelo caminho ensaibrado, sem o jaleco de
médico, num fraque de quadradinhos, com o chapéu-coco para trás, e tendo, também ele, na
boca um charuto muito preto, do qual tirava grandes baforadas de fumaça esbranquiçada. A
cabeça e o rosto com as faces azuladas, que pareciam quentes, com o nariz arrebitado, os olhos
azuis, lacrimosos, e o bigodinho torto, eram pequenos em proporção à silhueta comprida,
levemente encurvada, e às dimensões das mãos e dos pés. O médico andava nervoso e
sobressaltou-se visivelmente ao deparar com os primos. Até deu a impressão de estar um tanto
confuso, vendo-se obrigado a ir cumprimentá-los. Fê-lo na sua maneira habitual, jovialmente,
citando um verso apropriado de Schiller e pedindo, ao mesmo tempo, a bênção do céu para a
digestão dos pacientes. Fez questão de que permanecessem sentados, quando quiseram levantar
se em sua homenagem.
– Não se incomodem! Fiquem à vontade! Nada de cerimônias com um homem humilde
como eu! É uma honra que não mereço, tanto mais que ambos os senhores estão enfermos. Não
precisam observar essas formalidades. Vamos conservar o status quo.
E manteve-se de pé à frente dos primos, com o charuto entre os dedos indicador e médio
da manzorra.
– Que tal esse repolho enrolado, Castorp? Deixe ver, sou perito e amador. A cinza é boa.
Que bela morena é essa?
– Maria Mancini, Postre de Banquete, de Bremen, senhor conselheiro. Custa pouco ou nada,
uns dezenove Pfennige nas cores selecionadas, mas tem um bouquet que normalmente não se
encontra por esse preço. Sumatra-Havana, com capa cor de areia, como o senhor pode ver. É
uma mistura meio pesada e muito saborosa, mas que parece bem leve à língua. Esse charuto gosta
que se lhe deixe a cinza o maior tempo possível. Em geral não a sacudo mais de duas vezes. Claro
que ele tem os seus caprichos, mas o controle da fabricação deve ser muito rigoroso, porque o
Maria é de absoluta confiança quanto às suas qualidades e puxa com uma regularidade perfeita. O
senhor permite que eu lhe ofereça um?
– Obrigado. Podemos fazer uma troca. – E ambos tiraram as charuteiras.
– Este é de raça – disse o conselheiro áulico, mostrando a Hans Castorp a marca que
fumava. – Tem temperamento, sabe? E está cheio de força e de seiva. São Félix, Brasil; sempre
preferi este tipo. Um autêntico remédio para qualquer preocupação. Arde que nem aguardente, e
sobretudo no fim produz um efeito fulminante. Recomenda-se certa reserva nas relações com ele.
Não se pode acender um após outro; isso ultrapassa as forças de um homem. Mas acho melhor
um bom trago de vez em quando do que vapor de água durante o dia todo...
Fizeram girar entre os dedos os presentes que acabavam de permutar; examinavam com a
objetividade de peritos os corpos esbeltos, que tinham qualquer coisa de vida orgânica, com as
costelas oblíquas e paralelas, formadas pelas beiras elevadas e, aqui ou ali, um tanto despegadas,
da capa, com as veias expostas que pareciam pulsar, com as pequenas asperezas da pele, e com o
jogo da luz sobre as suas superfícies e as suas arestas. Hans Castorp formulou esta impressão:
– Um charuto desses tem vida. Respira, literalmente. Lá em casa me deu na veneta
guardar o Maria numa caixa de folha, hermeticamente fechada, para protegê-lo da umidade. O
senhor me acredita que ele morreu? Dentro de uma semana pereceram todos, e o que sobrou
foram cadáveres com cheiro de couro.
E ambos trocaram as suas experiências acerca da melhor maneira de conservar charutos,
sobretudo os importados. O conselheiro apreciava muito esse último tipo, e de preferência
fumaria Havanas pesados, mas infelizmente não os podia suportar. Dois pequenos Henry Clay,
cujos encantos fruíra durante certo sarau, quase o haviam mandado à outra vida. – Fumei-os com
o café – contou –, um após outro, sem prestar atenção. Mas quando terminei, comecei a me
perguntar o que se estava passando comigo. Eu me sentia diferente; era uma sensação totalmente
estranha, que eu nunca antes experimentara. Já não foi fácil chegar até em casa, e depois não
acreditei nos meus próprios olhos. Tinha as pernas geladas, sabe? Um suor frio por todo o corpo;
o rosto branco como um lençol; o coração com toda espécie de crises; o pulso ora fininho que
nem um fio e mal perceptível, ora galopando a rédea solta; compreende? E o cérebro numa
agitação louca... Eu tinha certeza de que dançava a minha última dança. Falo em dança, porque é
o termo que então me ocorreu, e que empreguei, falando com meus botões, para caracterizar o
meu estado. Pois, no fundo, achei a coisa formidável; pareceu-me uma verdadeira festa, embora
eu tivesse um medo terrível. Mais exatamente, eu era todo medo, dos pés à cabeça. Olhe, o medo
e a alegria não se excluem, como todo mundo sabe. Um rapaz que está a ponto de possuir pela
primeira vez uma garota também treme de medo, e ela, não menos. E todavia se desmancham de
prazer. Bem, eu quase me teria desmanchado igualmente. Com o peito arfando, comecei a
dançar aquela última dança. Mas a Mylendonk, com as suas aplicações, conseguiu desembriagar
me. Compressas geladas, fricções a escova, uma injeção de cânfora, e assim me salvaram para a
humanidade.
Hans Castorp, sentado, na sua qualidade de paciente, contemplava o médico com uma
expressão que demonstrava a atividade do seu cérebro. Notou que os olhos azuis, proeminentes,
de Behrens, durante a narrativa se haviam enchido de lágrimas.
– O senhor pinta às vezes, não é verdade, senhor conselheiro? – perguntou de repente.
O médico fingiu-se sumamente surpreso.
– Como? Por quem me toma, moço?
– Desculpe. Assim ouvi dizer em qualquer parte, e por acaso me lembrei disso agora.
– Hum, nesse caso não vou negá-lo. Todos nós temos as nossas pequenas fraquezas. Pois
é, confesso que essas coisas me acontecem. Anch'io sono pittore, como costumava dizer aquele
espanhol.
– Paisagens? – perguntou Hans Castorp lacônica e condescendentemente, num tom que
as circunstâncias o faziam adotar.
– Tudo o que o senhor quiser! – respondeu o conselheiro entre acanhado e jactancioso. –
Paisagens, naturezas-mortas, animais... Quando se é homem, não se tem medo de nada.
– E retratos?
– Ora, já me sucedeu pintar um retrato. O senhor quer encomendar o seu?
– Ah, ah! Não, mas seria muito gentil da sua parte, senhor conselheiro, se qualquer dia
nos mostrasse os seus quadros.
Após ter lançado ao primo um olhar cheio de surpresa, Joachim, por sua vez, apressou-se
a afirmar que ele também achava isso muito gentil.
Behrens estava encantado; sentia-se lisonjeado até o entusiasmo. Até corou de tanto
prazer, e dessa vez os seus olhos davam a impressão de querer derramar as lágrimas.
– Como não! – exclamou. – Com a maior boa vontade! Se os senhores quiserem,
podemos ir já. Venham, venham comigo! Vou lhes preparar um café turco no meu antro! –- E
tomou os dois jovens pelo braço, forçou-os a se levantarem e, caminhando entre eles, de braço
dado, guiou-os pela vereda ensaibrada em direção ao seu apartamento, que, como já sabiam, se
achava bem perto, na ala noroeste do Berghof.
– Tempos atrás – disse Hans Castorp – eu mesmo fiz algumas tentativas nesse gênero.
– Não diga! Coisa sólida, a óleo?
– Não, senhor, não fui além de algumas aquarelas. Às vezes um navio, outras uma
paisagem marinha, bagatelas e nada mais. Mas gosto muito de apreciar quadros, e por isso tomei
a liberdade...
Essa explicação serviu, sobretudo, para tranquilizar e esclarecer Joachim a respeito da
estranha curiosidade do primo. E com efeito fora mais para ele do que para o conselheiro que
Hans Castorp recordara os seus próprios estudos artísticos. Chegaram. Desse lado não havia um
portal tão magnífico, flanqueado de lampiões, como do lado da rampa. Alguns degraus
encurvados conduziam ao portão de carvalho, que o conselheiro abriu com uma das chaves do
seu bem-provido chaveiro. Ao fazê-lo, tremia-lhe a mão. Evidentemente estava nervoso.
Acolheu-os um vestíbulo guarnecido de cabides, onde Behrens pendurou o chapéu-coco. Mais
para dentro havia um pequeno corredor, que uma porta envidraçada separava do resto da casa.
Aos dois lados desse corredor estendiam-se as peças do apartamento particular. O médico
chamou a criada e deu ordens. A seguir, entre palavras joviais e animadoras, fez entrar os
hóspedes por uma das portas à direita.
Depararam com alguns cômodos mobiliados de modo banalmente burguês, que davam
para o vale e se comunicavam entre si, separados apenas por reposteiros: uma sala de jantar em
estilo “alemão antigo”; uma saleta de estar e de trabalho, com uma escrivaninha, acima da qual
estavam suspensos um boné de estudante e dois sabres cruzados, com alguns tapetes de lã, uma
estante e um sofá; e finalmente um gabinete de fumar, de mobília “turca”. Em toda parte viam-se
quadros, os quadros do conselheiro áulico. Cheios de cortesia e dispostos a admirá-los, os olhos
dos visitantes convergiram imediatamente sobre eles. A falecida esposa do médico estava
representada diversas vezes, pintada a óleo e também em fotografia, sobre a escrivaninha. Era
uma loura um tanto enigmática, vaporosamente vestida, com as mãos juntas à altura do ombro
esquerdo – não juntas firmemente, mas apenas unindo de leve as articulações superiores dos
dedos – e com os olhos ora dirigidos para o céu ora bem baixos, escondidos sob as longas
pestanas que saíam obliquamente das pálpebras; nunca, porém, a saudosa senhora olhava para a
frente, encarando o espectador. Além dela viam-se antes de tudo paisagens alpinas, montanhas
cobertas de neve ou de abetos verdes, montanhas envoltas na bruma das alturas, e montanhas
cujos contornos secos e nítidos penetravam, sob a influência de Segantini, um céu
profundamente azul. Havia ainda cabanas de pastores, vacas de grandes barbelas, pastando, de pé
ou deitadas, na pradaria ensolarada, uma galinha depenada, deitada na mesa, por entre legumes, e
que deixava pender o pescoço torcido, flores, tipos de montanheses e outras coisas mais – tudo
pintado com certo diletantismo fácil, com tintas atrevidamente aplicadas em grossos tufos, que
amiúde davam a impressão de terem sido comprimidos da bisnaga diretamente sobre a tela e
deviam ter levado muito tempo para secar – processo que não deixava de produzir certo efeito
em caso de defeitos graves.
Como numa exposição de pintura, iam contemplando os quadros expostos ao longo das
paredes acompanhados do dono da casa, que de vez em quando explicava o respectivo assunto,
mas em geral permanecia silencioso, desfrutando, com a orgulhosa reserva do verdadeiro artista,
o prazer de olhar as próprias obras em companhia de pessoas estranhas. O retrato de Clávdia
Chauchat encontrava-se na saleta de estar, pendurado na parede da janela. Hans Castorp, apenas
entrara, já o descobrira de relance, apesar de o quadro se parecer apenas vagamente com o
modelo. De propósito, o jovem evitou o lugar. Reteve os seus companheiros na sala de jantar,
onde fingia admirar um panorama verde do vale de Sergi, com as geleiras azuladas no fundo. A
seguir, por iniciativa própria, dirigiu-se ao gabinete de estilo turco, que examinou com igual
atenção, distribuindo muitos elogios. Depois, foi ver a parede da entrada da saleta de estar,
insistindo diversas vezes com Joachim para que manifestasse o seu aplauso. Por fim voltou-se e
disse com surpresa comedida:
– Este rosto me parece conhecido.
– O senhor a reconhece? – quis saber o Dr. Behrens.
– Claro, acho que não pode haver lugar para um engano. É aquela senhora da mesa dos
russos “distintos”, a que tem um nome francês...
– Sim, senhor, a Chauchat. Folgo em ver que o senhor a reconhece.
– Perfeitamente! -mentiu Hans Castorp, menos por falsidade, do que percebendo que ele
não deveria ter reconhecido o modelo do retrato, se tudo se tivesse passado corretamente – tão
pouco como Joachim o teria feito sem a ajuda dele, o bom Joachim a quem ele pregara esta peça,
e que agora começava a dar pela coisa e a sair do engano em que Hans Castorp o induzira. – Ah,
sim – disse baixinho, conformando-se com a ideia de contemplar o quadro. Seu primo soubera
compensar a ausência da reunião no terraço.
Era um busto de meio perfil, de tamanho um pouco menos que natural, decotado, com
um arranjo de véus em volta dos ombros e do peito. Rodeava-o uma larga moldura preta,
chanfrada e guarnecida, na parte interior, junto à tela, de uma borda de ouro. Mme. Chauchat
parecia dez anos mais velha do que na realidade, como ocorre frequentemente em retratos feitos
por amadores que se esforçam por salientar as características do modelo. Em todo o rosto havia
excesso de vermelho. O nariz estava muito mal desenhado. O pintor não acertara o tom dos
cabelos, fazendo-o muito semelhante a palha. A boca saíra torta. Ele absolutamente não
descobrira ou não conseguira expressar o encanto peculiar àquela fisionomia, ficando tudo
estragado pelo exagero de particularidades. O conjunto não passava de um trabalho de troca
tintas, e como retrato não ia além de uma afinidade muito longínqua com o original. Mas Hans
Castorp não se mostrava muito exigente quanto à semelhança. As relações que existiam entre essa
tela e a pessoa de Mme. Chauchat afiguravam-se-lhe suficientemente estreitas. O quadro devia
representar Mme. Chauchat; ela mesma posara para ele naqueles aposentos. Era o que bastava a
Hans Castorp, que repetiu com emoção:
– Em carne e osso!
– Não diga isso! – protestou o conselheiro. – Foi um trabalho bravo, e não creio ter
produzido uma coisa que preste, apesar de termos realizado umas vinte sessões. Como quer o
senhor que se reproduza um rosto tão complicado? A gente imagina que deve ser fácil apanhá-la,
com seus zigomas hiperbóreos e aqueles olhos rasgados como riscas na casca de um pão. É o que
o senhor pensa! Acertando no pormenor, fracassa-se no conjunto. É um verdadeiro quebra
cabeça. O senhor a conhece? Talvez seja melhor não pintá-la na presença dela, mas de memória.
Conhece-a o senhor?
– Sim e não, superficialmente, assim como aqui se conhece o pessoal.
– Bem, eu conheço-a mais por dentro, subcutaneamente; compreende? Estou mais ou
menos a par, por determinados motivos, quanto à sua pressão arterial, ao tônus dos seus tecidos e
à sua circulação linfática, mas a superfície me opõe maiores dificuldades. O senhor já observou
como ela anda? O rosto é tal e qual o andar. Uma criatura felina! Veja, por exemplo, os olhos!
Não falo da cor, que também é traiçoeira. Refiro-me à posição e à forma. O senhor dirá que a
fissura das pálpebras é rasgada, oblíqua. Mas só na aparência é assim. O que o engana é o
epicanto, isto é, uma particularidade que se encontra em certas raças. Tem ele a sua origem no
fato de que um excesso de pele, que provém do nariz chato dessa gente, se estende da dobra da
pálpebra para além da comissura interior do olho. Basta esticar fortemente a pele por cima da
base do nariz, para que o senhor obtenha um olho igual aos nossos. É uma mistificação picante,
mas nada honrosa, uma vez que o epicanto, observado de perto, não passa de uma imperfeição
de fundamento atávico.
– Ah, então é essa a explicação – disse Hans Castorp. – Não o sabia, mas já faz tempo me
interessava conhecer o mistério desse tipo de olhos.
– Ilusão, equívoco, nada mais! – confirmou o conselheiro. -se o senhor os desenhasse
simplesmente oblíquos e rasgados, estaria perdido. É preciso realizar essa aparência oblíqua e
rasgada assim como o faz a natureza, juntando, por assim dizer, a ilusão à ilusão, e para isso é
naturalmente indispensável que o senhor esteja informado a respeito do epicanto.
Conhecimentos nunca prejudicam. Olhe, por exemplo, a pele, essa pele do corpo! Acha ou não
acha que tem vida?
– É impressionante! – disse Hans Castorp. – É formidável como o senhor deu vida a essa
pele. Creio que nunca vi pele tão bem reproduzida. A gente tem a impressão de ver os poros. – E
com a borda exterior da mão acariciou o decote do retrato que se destacava muito branco do
exagerado vermelho do rosto, como uma parte do corpo que habitualmente não se vê exposta à
luz, e assim sugeria, de um modo petulante, fosse ou não intencionalmente, a ideia da nudez –
um efeito, em todo caso, bastante grosseiro.
Mesmo assim era justo o elogio de Hans Castorp. O brilho baço da alvura desse busto
delicado mas não magro, que se perdia no arranjo dos véus azulados, tinha muita naturalidade.
Evidentemente, fora pintado com sentimento; porém, apesar de um quê de adocicado, conseguira
o artista dar-lhe uma espécie de realidade científica e de precisão viva. Servira-se do grão da tela,
sobretudo na região das clavículas suavemente ressaltadas, para obter, através da tinta a óleo, o
efeito da aspereza natural da superfície da pele. Um lunarzinho, na parte esquerda, ali onde os
seios começavam a dividir-se, não ficara esquecido, e entre as proeminências aparecia a rede das
veias palidamente azuis. Era como se, sob os olhos do espectador, um estremecimento mal
perceptível de sensibilidade percorresse essa nudez. Ou, usando uma formulação um tanto
ousada: podia-se chegar à ideia de perceber a transpiração, a emanação invisível e viva dessa
carne, e quem colasse os lábios contra ela, talvez imaginasse sentir, não o cheiro de tinta e de
verniz, senão o de um corpo humano. Assim dizendo, limitamo-nos a reproduzir as impressões
de Hans Castorp; mas, embora ele estivesse particularmente disposto, a receber tais impressões,
deve-se constatar, com toda a objetividade, que o decote de Mme. Chauchat era, de fato, o que
havia de mais notável entre as pinturas da saleta.
continua pág 168...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Humaniora (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
[1] Personagens de Wilhelm Busch (1832-1908), autor de obras infantis muito divulgadas na Alemanha. No Brasil, são conhecidos como ]uca e Chico, na tradução de Olavo Bilac. (N. do E.)
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