quarta-feira, 21 de maio de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Além disso, seria unicamente a voz)

em busca do tempo perdido


volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


     Além disso, seria unicamente a voz que, por estar só, me dava essa nova impressão que me dilacerava? De jeito nenhum, mas esse isolamento da voz era antes como um símbolo, uma evocação, um efeito direto de outro isolamento, o de minha avó, pela primeira vez separada de mim. As ordens e proibições que me dirigia a todo momento no comum de sua vida, o tédio à obediência ou a febre da rebelião que neutralizavam a ternura que eu sentia por ela, eram suprimidos naquele momento e até poderiam sê-lo para o futuro (visto que minha avó já não exigia ter-me junto dela sob sua lei, e dizia de sua esperança que eu ficasse em Doncieres, ou, em todo caso, que prolongasse a minha estada o máximo possível, se isso fosse proveitoso à minha saúde e ao meu trabalho); assim, o que eu tinha sob o pequeno sino próximo ao meu ouvido era, desembaraçada das pressões opostas que todos os dias lhes fizeram contrapeso, e desde agora irresistível, animando-me todo inteiro, a nossa mútua ternura. Minha avó, dizendo-me que ficasse, dava-me uma ansiosa e louca necessidade de voltar. Essa liberdade que me deixava daí em diante, e à qual eu jamais imaginara que ela consentisse, pareceu-me de repente tão triste como o poderia ser minha liberdade após a sua morte (quando ainda a amasse e ela tivesse para sempre renunciado a mim). Eu gritava: "Vovó, vovó", e desejaria beijá-la; mas, perto de mim só tinha aquela voz, fantasma tão impalpável como o que talvez viesse me visitar quando minha avó morresse. "Fale comigo"; mas aconteceu então que, deixando-me mais só ainda, deixei subitamente de perceber aquela voz. Minha avó já não me ouvia, não estava mais em comunicação comigo, tínhamos deixado de estar em face um do outro, de ser audíveis um para o outro, eu continuava a interpelá-la, tateando na noite, sentindo que os apelos dela também deveriam ter se extraviado. Palpitava com a mesma angústia que, num passado remoto, experimentara antigamente num dia em que, bem pequeno, eu a havia perdido na multidão, angústia menos por não encontrá-la do que por sentir que ela me procurava, por sentir que ela dizia consigo que eu a estava procurando; angústia muito parecida com a que eu sentiria no dia em que falamos àqueles que já não podem nos responder e a quem desejaríamos pelo menos fazer ouvir tudo aquilo que não lhes dissemos, e com a segurança de que já não sofremos. Parecia-me que já era uma sombra querida que eu acabava de deixar perder-se por entre as sombras e, sozinho diante do aparelho, continuava a repetir em vão: "Vovó, vovó", como Orfeu, sozinho, repete o nome da morta. Decidi deixar o posto, ir ao encontro de Robert no restaurante para lhe dizer que, indo talvez receber uma correspondência que me obrigaria a regressar, gostaria de saber, fosse como fosse, o horário dos trens. E, no entanto, antes de tomar essa resolução, teria desejado invocar uma última vez as Filhas da Noite, as Mensageiras da palavra, as divindades sem rosto; mas as caprichosas Guardiãs não mais tinham querido abrir as Portas maravilhosas, ou sem dúvida não o puderam; por mais que invocassem, segundo seu costume, o venerável inventor da imprensa e o jovem príncipe amador de pintura impressionista e de automobilismo (o qual era sobrinho do capitão de Borodino), Gutenberg e Wagram deixaram suas súplicas sem resposta, e eu fui embora, sentindo que o Invisível solicitado permaneceria surdo. 
     Chegando junto de Robert e seus amigos, não lhes confessei que meu coração não estava mais com eles, que minha partida já estava irrevogavelmente decidida. Saint-Loup pareceu acreditar em mim, mas soube depois que ele, desde o primeiro momento, compreendera que minha incerteza era simulada e que no dia seguinte já não me encontraria. Ao passo que, deixando os pratos esfriando à frente deles, seus amigos procuravam com ele, no guia, o trem que eu poderia tomar de volta a Paris, e, enquanto se ouviam na noite estrelada e fria os silvos das locomotivas, eu certamente já não sentia a mesma tranquilidade que me haviam proporcionado aqui, em tantas noites, a amizade de uns e a passagem distante de outros. Entretanto, não faltavam naquela noite, sob uma outra forma, a esse mesmo ofício. Minha partida me acabrunhou menos quando não fui mais obrigado a pensar nela sozinho, quando senti empregar-se nisso a atividade mais normal e mais saudável de meus enérgicos amigos, os companheiros de Robert, e daqueles outros seres fortes, os trens, cujas idas e vindas, de manhã à noite, de Doncieres a Paris, esmigalhavam, retrospectivamente, em possibilidades cotidianas de regresso, o que havia de mais compacto e insustentável no meu longo isolamento de minha avó. 

- Não duvido da veracidade de tuas palavras e que não contas partir ainda. - disse Robert rindo -, mas procede como se partisses e vem me dizer adeus amanhã cedinho, pois sem isso estou me arriscando a não te ver mais; almoço justamente na cidade, o capitão me autorizou; é necessário que eu esteja de volta ao quartel às duas horas, pois vamos marchar o dia inteiro. Por certo o senhor com quem vou almoçar a três quilômetros daqui vai me trazer de volta a tempo para estar às duas no quartel. 

     Mal dissera estas palavras, quando vieram me procurar, da parte do hotel, dizendo que me chamavam no posto telefônico. Corri, pois ele ia fechar. A palavra "interurbano" voltava sem cessar nas respostas que me davam os empregados. Sentia-me no auge da ansiedade, pois era minha avó quem chamava. O escritório ia fechar. Por fim, consegui a ligação. 

- És tu, vovó? - 

     Uma voz de mulher, com um forte sotaque inglês, me respondeu: 

- Sim, mas não reconheço a sua voz.

     Tampouco reconhecia eu a voz que me falava, já que minha avó não me tratava de "você". Enfim, tudo se esclareceu. O rapaz cuja avó pedira para chamá-lo ao telefone tinha um nome quase igual ao meu e morava num anexo do hotel. Ao me chamarem no mesmo dia em que eu quisera telefonar à minha avó, eu não duvidara um só instante que fosse ela quem me chamava. Ora, era por uma simples coincidência que o posto telefônico e o hotel acabavam de cometer um duplo erro.
     Na manhã seguinte, atrasei-me e não encontrei Saint-Loup, que já saíra para almoçar no tal castelo próximo. Cerca de uma e meia, preparava-me para ir, fosse como fosse, ao quartel para já estar ali à sua chegada, quando, atravessando uma das avenidas que me levavam ao mesmo, vi, na própria direção em que eu ia, um tílburi que, passando junto a mim, me obrigou a desviar-me; um suboficial o conduzia, de monóculo no olho era Saint-Loup. A seu lado estava o amigo em cuja casa almoçara e que eu já encontrara uma vez no hotel em que Robert jantava. Não tive coragem de chamá-lo, visto que não estava sozinho, mas, desejando que parasse para me levar consigo, atraí sua atenção com um grande cumprimento supostamente motivado pela presença de um desconhecido. Sabia que Robert era míope e no entanto julgava que, se pelo menos me visse, não deixaria de me reconhecer; ora, ele viu perfeitamente o cumprimento e lhe correspondeu, mas sem deter-se; e, afastando-se rapidamente, sem um sorriso, sem que um só músculo do rosto se movesse, contentou-se em manter a mão erguida à altura do quepe, como se respondesse a um soldado a que não houvesse reconhecido. Corri até o quartel, mas ainda estava longe; quando cheguei, o regimento se perfilava no pátio, onde não me deixaram ficar, e senti-me desolado por não ter podido dizer adeus a Saint-Loup; subi para o seu quarto, e ele já não se achava ali; pude indagar a seu respeito a um grupo de soldados doentes, recrutas dispensados da marcha, o jovem bacharel e um veterano que observavam o regimento em forma.

- Vocês não viram o sargento-mor Saint-Loup? - perguntei.
- Ele já desceu, senhor. - disse o veterano. 
- Não o vi. - disse o bacharel. 
- Não viste disse o veterano-, sem mais se ocupar de mim -, não viste o nosso famoso Saint-Loup, que arrasa com suas calças novas? Quando o capitão vir aquilo, com fazenda de oficial! 
- Fazenda de oficial... tens cada uma! - disse o jovem bacharel que, enfermo no quarto, não fazia marchas e tentava, não sem uma certa inquietação, ser atrevido com os veteranos. - Aquilo é fazenda de oficial tanto quanto esta aqui. 
- Senhor?! - exclamou furioso o veterano que falara das calças. Estava indignado porque o jovem bacharel punha em dúvida que aquelas calças fossem de fazenda de oficial; mas, bretão, nascido numa aldeia que se chama Penguern-Stereden, tendo aprendido o francês com tanta dificuldade como se fosse inglês ou alemão, quando era possuído por uma emoção, dizia duas ou três vezes "Senhor" para ter tempo de encontrar as palavras; depois desses preparativos, entregava-se à eloquência, contentando-se em repetir algumas palavras que conhecia melhor, mas sem pressa, tomando cuidado contra a falta de hábito da pronúncia. 
- Ah, então é um pano como esse? - retomou ele, com uma cólera de que progressivamente iam aumentando a intensidade e a lentidão de seu enunciado. 
- Ah, é um pano como esse! Quando digo que é uma fazenda de oficial, quando te digo, e já que te digo, é que sei, eu penso. A gente não precisa gastar palavras com isso. 
- Ah, sendo assim... - disse o jovem bacharel, vencido por essa argumentação. - Veja, aí está justamente o capitão passando. Não, mas olha só o Saint-Loup. Isso é modo de atirar a perna? E, depois, a cabeça. Nem parece um suboficial. E o monóculo então? Ah, ele é um dos tais.  

     Pedi àqueles soldados, que minha presença não perturbava, que me deixassem olhar também pela janela. Não me impediram de fazê-lo, e tampouco se mexeram. Vi o capitão de Borodino passar majestosamente, fazendo trotar o seu cavalo e parecendo ter a ilusão de que se achava na batalha de Austerlitz. Alguns curiosos estavam reunidos diante das grades do quartel para ver o regimento sair. Ereto no seu cavalo, o rosto um tanto cheio, as faces de uma plenitude imperial, o olhar lúcido, o príncipe devia ser o joguete de alguma alucinação, como eu próprio o era de cada vez que, após a passagem do bonde, o silêncio que se seguia ao seu rolar me parecia percorrido e estriado por uma vaga palpitação musical. Sentia-me desolado por não ter me despedido de Saint-Loup, mas parti do mesmo jeito, pois minha única preocupação era voltar para junto de minha avó; até esse dia, naquela cidadezinha, quando pensava no que minha avó estaria fazendo, solitária, imaginava-a como ela era comigo, mas suprimindo-me, sem levar em conta os efeitos dessa supressão sobre ela; agora, precisava livrar-me, o mais depressa possível, em seus braços, do fantasma, até então insuspeitado e de súbito evocado por sua voz, de uma avó realmente separada de mim, resignada, tendo, o que ainda não lhe conhecera, uma idade, e que acabava de receber uma carta minha no apartamento vazio onde eu já imaginara mamãe quando partira para Balbec.
     Infelizmente, esse fantasma, foi ele mesmo que avistei quando, ao entrar no salão sem que minha avó estivesse avisada do meu regresso, a encontrei lendo. Eu estava ali, ou melhor, ainda não estava, pois ela não o sabia e, como uma mulher que a gente surpreende no ato de fazer um trabalho que esconderá ao entrarmos, estava entregue a pensamentos que jamais havia mostrado diante de mim. De mim por esse privilégio que não dura e em que temos, durante o breve instante do regresso, a faculdade de assistir bruscamente à nossa própria ausência não havia ali senão o testemunho, o observador, de chapéu e capa de viagem, o estranho que vem tirar uma foto dos lugares que nunca mais há de ver. O que se fez em meus olhos, mecanicamente, quando avistei minha avó, foi mesmo uma fotografia. Jamais vemos os seres queridos a não ser no sistema animado, no movimento permanente de nossa incessante ternura, a qual, antes de deixar chegarem até nós as imagens que nos apresentam o seu rosto, arrebata as em seu turbilhão, atira-as sobre a ideia que fazemos deles desde sempre, fá-las aderir a ela, coincidir com ela. Como, visto que eu fazia a fronte e as faces de minha avó significarem o que havia de mais delicado e permanente em seu espírito, como, visto que todo olhar habitual é uma necromancia e cada rosto que amamos é o espelho do passado, como não teria eu omitido o que nela pudera ter-se tornado pesado e diferente, considerando que, mesmo nos espetáculos mais indiferentes da vida, o nosso olhar, carregado de pensamentos, negligencia, como o faria uma tragédia clássica, todas as imagens que não concorrem para a ação, retendo apenas as que podem tornar inteligível o desfecho? Mas que, em vez do nosso olhar, seja uma objetiva puramente material, uma placa fotográfica, que haja contemplado, e então o que havemos de ver, por exemplo no pátio do Instituto, em vez da saída de um acadêmico que quer chamar um fiacre, será a sua vacilação, suas precauções para não cair para trás, a parábola de sua queda, como se estivesse embriagado, ou como se o solo estivesse coberto de gelo. Dá-se o mesmo quando uma cruel cilada do acaso impede a nossa inteligente e piedosa ternura de acorrer a tempo para ocultar a nossos olhos o que eles jamais devem contemplar, quando aquela é ultrapassada por estes que, chegando primeiro e entregues a si mesmos, funcionam mecanicamente à maneira de películas, mostrando-nos, em vez do ser amado que há muito já não existe, mas cuja morte a nossa ternura jamais quisera nos fosse revelada, o ser novo que cem vezes ao dia ela revestia de uma querida aparência falsa. E, como um enfermo que, não vendo há muito tempo a si mesmo e compondo a todo instante o rosto que não enxerga segundo a imagem ideal que de si próprio conserva no pensamento, recua ao perceber no espelho, no meio de um rosto árido e deserto, a protuberância oblíqua e rósea de um nariz gigantesco feito uma pirâmide do Egito, eu, para quem a minha avó era ainda eu próprio, eu que nunca a vira senão em minha alma, sempre no mesmo lugar do passado, através da transparência de lembranças contíguas e superpostas, de repente, em nosso salão que fazia parte de um mundo novo, o do Tempo, aquele em que vivem os estranhos de quem se diz "está bem envelhecido", eis que pela primeira vez e apenas por um instante, pois desapareceu logo, avistei no canapé, à luz da lâmpada, rubra, pesada e vulgar, enferma, devaneando, passeando por um livro os olhos um tanto alucinados, uma velha acabada que eu não conhecia.
     Ao meu pedido para ir ver os Elstirs da Sra. de Guermantes, Saint-Loup dissera: 

- Respondo por ela.

     E, com efeito, só ele é que havia respondido por ela. Respondemos facilmente aos outros quando, dispondo no pensamento as pequenas imagens que os figuram, manejamo-las à vontade. É claro que, mesmo nesse momento, levamos em conta as dificuldades provenientes da natureza de cada um, diversas da nossa, e não deixamos de recorrer a esse ou àquele poderoso meio de ação sobre ela, interesse, persuasão, emoção, que há de neutralizar tendências contrárias. Porém, essas diferenças quanto à nossa natureza, é ainda a nossa natureza que as imagina; essas dificuldades, somos nós que as erguemos; esses meios de ação eficazes, somos nós que os dosamos. E os movimentos que em nosso espírito fizemos outra pessoa repetir, e que a fazem agir à nossa vontade, quando queremos que ela os execute na vida, tudo então muda, e damos de encontro a resistências imprevistas que podem ser invencíveis. Uma das mais fortes é sem dúvida a que pode desenvolver, numa mulher que não ama, o nojo que lhe inspira, fétido e insuperável, o homem que a ama: durante as longas semanas em Paris, sua tia, a quem não duvidei que ele tivesse escrito para rogar-lhe que o fizesse, não me convidou uma única vez para que fosse à sua casa ver os quadros de Elstir.
     Recebi sinais de frieza da parte de outra pessoa da casa. Foi de Jupien. Acharia ele que eu deveria entrar para lhe dar bom-dia, na minha volta de Doncieres, antes até de subir para o meu quarto? Minha mãe disse que não, não precisava ficar espantado. Françoise lhe dissera que ele era assim, sujeito a bruscos acessos de mau humor, sem motivo. Isso passava sempre em pouco tempo.
     Entretanto, o inverno findava. Certa manhã, depois de algumas semanas de aguaceiros e tempestades, ouvi na minha lareira em lugar do vento informe, elástico e sombrio que me sacudia de vontade de ir à beira mar o arrulho dos pombos que nidificavam na muralha: irisado, imprevisto como um primeiro jacinto rompendo suavemente seu coração nutritivo para que dele brotasse, malva e acetinada, sua flor sonora, fazendo entrar, como uma janela aberta, no meu quarto ainda fechado e escuro, a quentura, o deslumbramento, a fadiga de um primeiro dia bonito. Naquela manhã, surpreendi-me a cantarolar uma música de café-concerto que havia esquecido desde o ano em que deveria ter ido a Florença ou a Veneza. Tão profundamente, ao acaso dos dias, age a atmosfera sobre nosso organismo, extraindo as obscuras reservas em que tínhamos esquecido as melodias inscritas que nossa memória não decifrou. Um sonhador mais consciente em breve acompanhou o músico que eu ouvia dentro de mim, sem mesmo ter reconhecido de imediato o que ele estava tocando.
     Sabia muito bem que não eram próprios de Balbec os motivos pelos quais, quando ali chegara, não havia encontrado em sua igreja o encanto que ela me apresentava antes que a conhecesse; que em Florença, em Parma ou em Veneza, minha imaginação já não poderia substituir-se a meus olhos para contemplar. Sentia-o. Do mesmo modo, numa tarde de primeiro de janeiro, ao cair da noite, diante de uma coluna de anúncios, eu descobrira a ilusão que existe em crer que certos dias de festa diferem essencialmente dos outros. E, no entanto, não podia evitar que a lembrança do tempo durante o qual julgara passar em Florença a Semana Santa continuasse a fazer desta como que a atmosfera da Cidade das Flores, a dar ao dia da Páscoa, ao mesmo tempo, algo de florentino, e a Florença algo de pascal. A semana da Páscoa ainda estava longe; mas, na fileira dos dias que se estendiam à minha frente, os dias santos destacavam-se mais claros no fim dos dias médios. Tocados por um raio como certas casas de uma aldeia que se entrevê ao longe num efeito de sombra e luz, detinham em si todo o sol.
     O tempo melhorara. E até meus pais, aconselhando-me a passear, davam-me um pretexto para continuar minhas saídas matutinas. Gostaria de acabar com elas, pois aí encontrava a Sra. de Guermantes. Mas era por causa dela mesma que pensava o tempo todo nessas saídas, o que me fazia achar a cada instante um novo motivo para sair, motivo que não tinha qualquer relação com a Sra. de Guermantes e convencia-me facilmente que, se ela não existisse, nem por isso deixaria de passear a essa mesma hora.
     Aí, se para mim encontrar qualquer outra pessoa que não ela seria indiferente, sentia que, para ela, encontrar qualquer outro que não eu teria sido suportável. Sucedia-lhe, nos seus passeios matinais, receber cumprimentos de muitos patetas, e que ela considerava como tais. Mas julgava o aparecimento deles, se não uma promessa de satisfação, ao menos obra do acaso. E fazia-os parar às vezes, pois há momentos em que se tem necessidade de sair de si mesmo, aceitar a hospitalidade da alma alheia, sob a condição de que essa alma, por modesta e feia que seja, seja uma alma estranha, ao passo que no meu coração ela sentia, exasperada, que o que teria encontrado era ela própria. Assim, mesmo quando eu tinha, para seguir o mesmo caminho, um motivo diverso que o de vê-la, tremia como um culpado no momento em que ela passava; e às vezes, para neutralizar o que podiam ter de excessivo as minhas tentativas de aproximação, mal correspondia a seu cumprimento, ou olhava-a fixamente sem saudar, e nada conseguia a não ser irritá-la ainda mais e fazer com que começasse a me achar cada vez mais insolente e mal educado.
     Usava ela agora vestidos mais leves, ou pelo menos mais claros, e descia a rua onde, como se já fosse primavera, diante das estreitas lojas intercaladas entre as amplas fachadas dos velhos palacetes aristocráticos, na varanda da vendedora de manteiga, de frutas, de legumes, os toldos já estavam pendurados para proteger do sol. Dizia comigo que a mulher que via ao longe a caminhar, abrir a sombrinha, atravessar a rua era, de acordo com a opinião dos conhecedores, a maior artista contemporânea na arte de realizar esses movimentos e transformá-los em algo delicioso. Entretanto, ela avançava; ignorando aquela reputação que se espalhara, seu corpo delgado, refratário, e que nada havia absorvido, se encurvava obliquamente sob uma estola de surah violeta. Seus olhos claros e entediados olhavam para frente distraídos e talvez me tivessem visto; ela mordia o canto da boca; via-a endireitar o regalo, dar esmola a um pobre, comprar um buquê de violetas a uma vendedora, com a mesma curiosidade que eu teria tido em contemplar um grande pintor a dar pinceladas. E, quando, tendo chegado onde eu estava, cumprimentava-me acrescentando às vezes um leve sorriso, era como se tivesse executado para mim, ajuntando-lhe uma dedicatória, uma aquarela que era uma obra-prima. Cada um de seus vestidos era-me como uma ambiência natural, necessária, como a projeção de um aspecto particular de sua alma. Numa dessas manhãs de quaresma em que ela ia almoçar na cidade, encontrei-a usando um vestido de veludo vermelho-claro, ligeiramente decotado. O rosto da Sra. de Guermantes parecia pensativo debaixo dos cabelos louros. Eu estava menos triste que de costume porque a melancolia de sua expressão, a espécie de claustro que a violência da cor punha entre ela e o resto do mundo conferiam-lhe algo de solitário e infeliz que me tranquilizava. Aquele vestido me parecia a materialização, a seu redor, dos raios escarlates de um coração que eu não lhe conhecia e que talvez pudesse consolar; refugiada na luz mística do tecido de ondas suaves, ela me fazia pensar nalguma santa dos primeiros tempos cristãos. Então, sentia vergonha de magoar aquela mártir com a minha vista.

"Mas enfim, a rua é de todo mundo." 

"A rua é de todo mundo", continuava eu, dando a estas palavras um sentido diverso e admirando que, de fato, na rua populosa, frequentemente molhada de chuva, e que se tornava preciosa como o é às vezes a rua nas velhas cidades da Itália, a duquesa de Guermantes misturasse à vida pública momentos de sua vida secreta, mostrando-se assim a qualquer um, misteriosa, acotovelada por todos, com a esplêndida gratuidade das grandes obras-primas. Como eu saía de manhã depois de ficar acordado a noite inteira, à tarde meus pais diziam que me deitasse um pouco e procurasse dormir. Para saber como dormir, não é preciso muita reflexão, mas o hábito é muito útil para tanto e até mesmo a ausência de reflexão. Ora, nessas ocasiões ambos me faziam falta. Antes de adormecer pensava por muito tempo que o não conseguiria, que, mesmo dormindo, me restaria um pouco de pensamento. Não passava de um clarão na quase obscuridade, mas bastava para refletir, no meu sono, primeiro a ideia de que eu não poderia dormir, depois, reflexo desse reflexo, que era dormindo que eu tinha tido a ideia de que não dormia; depois, por uma nova refração, meu despertar... em um novo sono onde eu queria contar aos amigos que tinham entrado no meu quarto que, há pouco, dormindo, julgava que não dormia. Tais sombras mal se distinguiam: seria necessária uma grande e muito vã delicadeza de percepção para discerni-las. Assim, mais tarde, em Veneza, bem depois do pôr-do-sol, quando parece que é completamente noite, no entanto, vi, graças ao eco invisível de uma derradeira nota de luz indefinidamente sustentada nos canais como por efeito de algum pedal ótico, os reflexos dos palácios desenrolados como para sempre em veludo mais negro sobre o cinza crepuscular das águas. Um de meus sonhos era a síntese do que minha imaginação procurara representar muitas vezes, na vigília, de uma certa paisagem marinha e de seu passado medieval. Em meu sono, eu via uma cidade gótica no meio de um mar de ondas imobilizadas como num vitral. Um braço de mar dividia a cidade em duas; a água verde se estendia a meus pés; banhava, na margem oposta, uma igreja oriental e depois casas que ainda existiam no século XIV, de forma que ir na direção delas seria remontar o curso das idades. Este sonho, onde a natureza aprendera a arte, onde o mar tornara-se gótico, este sonho onde eu desejava, onde julgava abordar o impossível, parecia-me que já o tivera muitas vezes. Mas como é próprio daquilo que se imagina ao dormir, multiplicar-se no passado e parecer, embora sendo novo, familiar, achei que me enganara. Ao contrário, percebi que tivera de fato muitas vezes aquele sonho. 

continua na página 63...
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