em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(v)
continuando...
Uma das manhãs que se seguiram àquela em que Andrée me dissera ser obrigada a ficar junto da mãe, estava eu passeando com Albertine, a quem encontrara atirando ao ar, na ponta de uma corda, um objeto esquisito que a fazia parecer-se com a Idolatria, de Giotto; aliás, chama-se diabolô e de tal maneira caiu em desuso que, diante do retrato de uma moça com um deles, os comentadores do futuro poderão dissertar, como diante de uma figura alegórica da Arena, sobre o que ela segura na mão. Passado um momento, sua amiga do grupo, de aspecto rude e pobre, que troçara no primeiro dia com um ar tão maligno:
"Esse pobre velho me dá pena"; falando do velho senhor roçado pelos pés ligeiros de
Andrée, veio dizer a Albertine:
- Bom dia, estou incomodando?
Tirara o chapéu, que a atrapalhava, e seus cabelos, como uma variedade vegetal
deslumbrante e desconhecida, caíam-lhe na testa com a minuciosa delicadeza de sua foliação.
Albertine, talvez irritada por vê-la de cabeça descoberta, não respondeu nada, mantendo um
silêncio glacial; apesar disso, a outra ficou, conservada a distância por Albertine, que às vezes
dava um jeito de ficar a sós com ela, outras vezes de andar a meu lado, deixando-a por trás. Para
que me apresentasse, fui obrigado a pedi-lo diante da outra. Então, no momento em que Albertine
disse o meu nome, no rosto e nos olhos azuis daquela moça em quem achara um ar tão cruel
quando havia dito:
"Esse pobre velho me dá pena" -vi passar e brilhar um sorriso cordial, amável, e ela me
estendeu a mão. Seus cabelos eram dourados e não só eles; pois, se suas faces eram rosadas e
os olhos azuis, era como o céu ainda purpurino da manhã onde em toda parte o ouro brilha e
aponta.
Ficando logo entusiasmado, imaginei que fosse uma menina tímida quando amava e que
era por mim, por amor a mim, que ela havia ficado conosco apesar das grosserias de Albertine, e
que devia sentir-se feliz de poder enfim me confessar, com aquele olhar risonho e bondoso, que
seria tão doce comigo quão terrível para com os outros.
É claro que devia ter reparado em mim na praia, quando não a conhecia ainda, e pensava
em mim desde então: talvez fosse para se fazer admirada por mim que havia zombado do velho
senhor, e porque não tivesse chegado a me conhecer é que, nos dias seguintes, ostentara aquele
ar melancólico. Do hotel, muitas vezes a avistara a passar à tardinha na praia. Provavelmente era
na esperança de me encontrar. E agora, constrangida pela presença de Albertine, como o tinha
sido pela de todo o pequeno grupo, evidentemente não se juntava a nós, apesar da atitude cada
vez mais fria de sua amiga, senão na esperança de ficar por último, de marcar encontro comigo
para um momento em que tivesse meios de escapar, sem que a família e as amigas soubessem,
num lugar seguro antes da missa ou depois do golfe. E era ainda mais difícil vê-la porque Andrée
estava de mal com ela e a detestava.
- Durante muito tempo suportei sua terrível falsidade - disse-me Albertine -, sua baixeza, as
inúmeras sujeiras que me fez. Suportei tudo por causa das outras. Mas a última foi a gota d'água.
E me contou uma intriga que essa moça havia espalhado e que, de fato, podia causar
prejuízos a Andrée.
Mas as palavras a mim prometidas pelo olhar de Gisele para o momento em que Albertine
nos deixasse sozinhos não puderam ser ditas, pois, tendo Albertine, obstinadamente colocada
entre nós dois, continuado a responder cada vez com maior brevidade, e depois deixando
inteiramente de responder às palavras da amiga, esta acabou por nos deixar. Censurei a Albertine
o ter sido tão desagradável.
- Isto a ensinará a ser mais discreta. Não é má menina, mas é chata demais. Não precisa
vir meter o nariz por toda parte. Porque se gruda a nós sem ter sido chamada? Por pouco não a
mandei plantar batatas. Aliás, detesto que use os cabelos desse jeito; não fica bem.
Eu olhava as faces de Albertine enquanto ela falava, a indagava-me que perfume e que
gosto deveriam ter; naquele dia estava, não fresca mas lisa, de um rosado unido, violáceo,
cremoso, como certas rosas que têm um verniz de cera. Estava apaixonado por elas como o
estamos às vezes por um espécime de flor.
- Não tinha reparado - respondi.
- No entanto, olhou muito para ela, se poderia até dizer que desejava fazer o seu retrato. -respondeu ela sem se acalmar pelo fato de que, naquele instante, era ela mesma quem eu
olhava tanto. - Não creio, no entanto, que lhe agrade. Ela não flerta de jeito nenhum. Você deve
gostar das moças que flertam. Em todo caso, ela não mais terá oportunidade de se grudar e se
oferecer, pois em breve volta a Paris.
- Suas outras amigas vão com ela?
- Não, apenas ela e a Miss, porque ela tem de fazer exames de recuperação; vai ter de
estudar muito, a pobre. Garanto-lhe que não é nada engraçado. Pode ser que lhe caia um bom
tema. O acaso é importante. Assim, uma de nossas amigas pegou: "Narre um acidente ao qual
tenha assistido." Isto é que é sorte. Mas conheço uma moça que teve de se virar (e por escrito,
ainda por cima) com o seguinte: "Entre Alceste e Philinte, qual dos dois preferiria ter como
amigo?" O que eu não teria suado com isso! Primeiro, e acima de tudo, não é pergunta que se
faça a moças. As moças se unem a outras moças e não são obrigadas a ter senhores como
amigos. (Esta frase, mostrando que eu tinha poucas chances de ser admitido no pequeno grupo,
me fez tremer.) Mas, em todo caso, mesmo que a pergunta fosse feita a rapazes, que é que você
acha que se possa dizer a respeito? Várias famílias escreveram ao Gaulois para se queixarem da
dificuldade de questões semelhantes. O melhor de tudo é que, numa coletânea das melhores
provas de alunas coroadas, o assunto foi tratado duas vezes de forma absolutamente oposta.
Tudo depende do examinador. Um queria que se dissesse que Philinte era um homem adulador e
tratante, outro que não se podia recusar sua admiração por Alceste, o qual era por demais azedo,
e que, como amigo, era preciso preferir-lhe Philinte. Como quer que as infelizes alunas se
acertassem se nem os professores estão de acordo entre si? E isso ainda não é nada, pois a
cada ano a coisa se torna mais difícil. Gisele só poderia se dar bem com um pistolão.
Regressei ao hotel, mas minha avó estava ausente; esperei por ela durante muito tempo;
por fim, quando ela chegou, roguei-lhe que me deixasse fazer uma excursão, em condições
inesperadas, que levaria talvez 48 horas; almocei com ela, encomendei um carro e mandei que
me levassem à estação. Gisele não ficaria espantada por me ver ali; uma vez que faríamos
baldeação em Doncieres, havia, no trem de Paris, um vagão-corredor onde, enquanto a Miss
cochilasse, eu poderia levar Gisele para um canto escuro, marcar encontro com ela para o meu
regresso a Paris, que eu cuidaria de apressar o mais possível. Conforme o desejo que ela me
expressasse, eu a acompanharia até Caen ou mesmo a Évreux, e tomaria o primeiro trem de
volta. Ainda assim, o que não pensaria Gisele se soubesse que eu havia hesitado por muito tempo
entre ela e suas amigas, e que tanto quisera apaixonar-me por ela como por Albertine, pela moça
de olhos claros ou por Rosemonde? Senti remorsos, agora que um amor recíproco ia me unir a
Gisele. Aliás, poderia lhe assegurar, muito veridicamente, que Albertine já não me agradava. Vira
a naquela manhã voltar-se, quase me dando as costas, para falar com Gisele. Sobre a cabeça
inclinada, com ar amuado, seus cabelos, que trazia penteados para trás e mais negros que nunca,
brilhavam como se ela acabasse de sair de dentro d'água. Pensei até numa franga molhada, e
esses cabelos tinham-me feito encarnar em Albertine uma outra alma diferente da que até então
me lembravam o rosto cor-de-violeta e o olhar misterioso. Durante um momento, tudo o que pude
perceber dela foram aqueles cabelos luzidios por trás da cabeça, e era apenas isso o que
continuava a ver. Nossa memória se assemelha a essas lojas que, em suas vitrinas, expõem de
uma certa pessoa ora uma fotografia, ora outra. E, de hábito, a mais recente é a única a
permanecer, durante algum tempo, em exposição. Enquanto o cocheiro apressava o seu cavalo,
eu ouvia as palavras de reconhecimento e ternura que Gisele me dizia, todas nascidas do seu
sorriso bom e de sua mão estendida; é que nos períodos da minha vida em que não estava
enamorado e nos quais o desejava estar, não levava em mim apenas um ideal físico de beleza
entrevista que reconhecia de longe em cada passante, bastante afastada para que seus traços
confusos não se opusessem a tal identificação mas também o espectro moral -sempre disposto a
ser encarnado da mulher que ia se apaixonar por mim e dar-me a réplica na comédia amorosa
que eu trazia inteiramente escrita na cabeça desde minha infância e que toda jovem amável, a
meu ver, estaria querendo representar, contanto que tivesse um pouco das condições físicas para
o papel. Nessa peça, fosse qual fosse a nova "estrela" que eu chamasse para criar ou repetir o
papel, o cenário, as peripécias e o próprio texto conservavam uma mesma forma.
Alguns dias depois, apesar da pouca pressa de Albertine em nos apresentar, eu já
conhecia todo o pequeno grupo do primeiro dia, que continuava completo em Balbec (menos
Gisele, que, devido a uma parada longa diante da barreira da estação e a uma mudança de
horário, eu não pudera encontrar no trem, que partira cinco minutos antes da minha chegada, e na
qual, além disso, já não pensava) e a mais duas ou três amigas delas que, a meu pedido, me
haviam sido apresentadas. E assim, a esperança do prazer que eu teria com uma nova moça era
proveniente de outra moça a quem por ela fora apresentado; a mais recente era então como uma
dessas variedades de rosas que se obtém graças a uma rosa de outra espécie. E, remontando de
corola em corola nessa cadeia de flores, o prazer de conhecer uma outra diferente fazia-me virar
para aquela a quem a devia, com uma gratidão mesclada de tanto desejo como se fosse a minha
nova esperança. Em breve passei o dia inteiro com elas.
Mas, infelizmente, na flor mais viçosa já se podem distinguir os pontos imperceptíveis que,
para o espírito prevenido, delineiam o que será, pela dissecação ou frutificação das carnes hoje
em flor, a forma imutável e já predestinada da semente. Seguimos encantados um nariz
semelhante a uma onda minúscula, que enche deliciosamente uma água matinal e que parece
imóvel, delineável, porque o mar está de tal modo tranqüilo que nem percebemos a maré. Os
rostos humanos não parecem mudar no momento em que os olhamos, pois a revolução que
cumprem é muito lenta para que a percebamos. Mas bastaria ver, ao lado dessas moças, sua
mãe ou sua tia, para avaliar as distâncias que, sob a atração interna de um tipo em geral
horrendo, essas feições teriam atravessado em menos de trinta anos, até a hora do declínio dos
olhares, até o momento em que o rosto, tendo ultrapassado a linha do horizonte, já não recebe
luz. Eu sabia que, tão profundo, tão inelutável como o patriotismo judeu ou o atavismo cristão,
naqueles que se julgam mais liberados de suas raças, habitava, sob a rósea inflorescência de
Albertine, de Rosemonde e de Andrée, desconhecidos delas próprias, mantidos em reserva pelas
circunstâncias, um nariz grosso, uma boca proeminente, uma gordura que espantaria mas que na
realidade já estava nos bastidores, pronta para entrar em cena, imprevista, fatal, feito uma onda
de dreyfusismo, de clericalismo, de heroísmo nacional e feudal, subitamente aparecidos, ao apelo
das circunstâncias, de uma natureza anterior ao próprio indivíduo, pela qual ele pensa, vive,
evolui, se fortifica ou morre, sem que a possa distinguir dos motivos particulares com que a
confunde. Mesmo mentalmente, dependemos das leis naturais muito mais que julgamos e nosso
espírito possui previamente, como certo criptógamo, ou determinada gramínea, as
particularidades que acreditamos escolher.
Mas não apreendemos mais que as ideias secundárias sem nos apercebermos da causa
primeira (raça judia, família francesa, etc.) que as produzia necessariamente e que manifestamos
no momento desejado. E talvez, enquanto umas nos parecem o resultado de uma deliberação e
as outras a consequência de um descuido na nossa higiene, herdamos da nossa família, como as
papilionáceas a forma de sua semente, tanto as ideias de que vivemos como a doença de que
havemos de morrer.
Como num viveiro onde as flores amadurecem em épocas diversas, eu as vira, como
velhas damas, naquela praia de Balbec, essas duras sementes, esses tubérculos macios, que
minhas amigas um dia haveriam de ser. Mas que importava? Neste momento era a estação das
flores. Assim, quando a Sra. de Villeparisis me convidava para um passeio, eu buscava uma
desculpa para não estar livre. Só visitei Elstir quando minhas novas amigas me acompanhavam.
Nem mesmo pude encontrar uma tarde para ir a Doncieres a fim de ver Saint-Loup, como lhe
prometera. As reuniões sociais, as conversações sérias, até mesmo uma palestra amigável, se
viessem substituir meus passeios com aquelas moças, me causariam o mesmo efeito de que se
nos levassem, à hora do almoço, não para comer e sim para olhar um álbum. Os homens, os
rapazes, as mulheres velhas ou maduras com quem julgamos agradável conviver, só os levamos
a uma superfície plana e inconsistente porque não tomamos consciência deles senão pela
percepção visual reduzida a si mesma; mas é como delegada dos outros sentidos que ela se
dirige às moças; eles vão procurar, uma após outra, as diversas qualidades odoríferas, tácteis,
saborosas, de que desfrutam, mesmo sem ajuda das mãos e dos lábios; e, capazes, graças às
artes da transposição e ao gênio da síntese em que excede o desejo, de restituir sob a cor das
faces ou do busto, o contato, a degustação, o roçar proibido, eles conferem a essas moças a
mesma consistência de mel que dão às rosas e às uvas quando vagueiam por um roseiral ou um
vinhedo, cujos cachos comem com os olhos.
Se chovia, conquanto o mau tempo não assustasse Albertine, que era muitas vezes vista
com seu impermeável, correndo de bicicleta debaixo dos aguaceiros, passávamos o dia no
cassino, onde me pareceria impossível não ir naqueles dias. Eu sentia o maior desprezo pelas
senhoritas d'Ambresac, que jamais entravam ali. E, com muito gosto, ajudava minhas amigas a
pregar peças no professor de dança. Em geral sofríamos algumas admoestações do gerente do
cassino ou dos empregados, que se arrogavam poderes ditatoriais, porque minhas amigas até a
própria Andrée, que justamente devido àquele salto eu havia, desde a primeira vez, julgado uma
criatura tão dionisíaca e que, pelo contrário, era frágil, intelectual e, naquele ano, muito
adoentada, mas que, apesar disso, obedecia menos ao seu estado de saúde que ao
temperamento dessa idade que arrasta e confunde tudo na alegria, tanto os doentes como os
robustos não podiam ir do vestíbulo ao salão de festas sem tomar impulso, saltar por cima de
todas as cadeiras, voltar deslizando, conservando o equilíbrio com um gracioso movimento dos
braços, cantando, misturando todas as artes nessa primeira juventude, à maneira daqueles
poetas dos tempos antigos para quem os gêneros ainda não estão separados e que mesclam
num poema épico os preceitos agrícolas aos ensinamentos teológicos.
Essa Andrée, que me havia parecido a mais fria da primeira vez, era infinitamente mais
delicada, mais afetuosa, mais refinada que Albertine, a quem devotava uma ternura carinhosa e
suave de irmã mais velha. Vinha ao cassino sentar-se a meu lado e sabia ao contrário de Albertine
recusar uma valsa ou até, se eu estivesse cansado, desistir de ir ao cassino para vir ao hotel.
Expressava sua amizade por mim, por Albertine, com nuanças que davam provas da mais
deliciosa inteligência das coisas do coração, o que talvez se devesse em parte ao seu estado
enfermiço. Tinha sempre um sorriso alegre para desculpar as criancices de Albertine, que exprimia
com uma violência ingênua a atração irresistível que para ela ofereciam os prazeres a que não
sabia, como Andrée, preferir decididamente uma conversa comigo. Quando se aproximava a hora
de um lanche servido no campo de golfe, ela se preparava e depois ia ter com Andrée:
- E então, Andrée, está esperando o quê? Está sabendo muito bem que vamos lanchar no
campo de golfe.
- Não, eu fico para conversar com ele. - respondia Andrée me apontando.
- Mas você sabe que a Sra. Durieux a convidou - gritava Albertine, como se a intenção de
Andrée de ficar comigo só pudesse se explicar pela ignorância, de sua parte, de que fora
convidada.
- Ora vamos, minha filha, não seja tão idiota - respondia Andrée.
Albertine não insistia, de medo que lhe propusessem ficar também.
- Faça o que quiser. - respondia sacudindo a cabeça, como se diz a um doente que por
prazer se mata aos pouquinhos; - vou andando, pois parece que o seu relógio está atrasado.
E saía voando.
- Ela é encantadora, mas incrível - dizia Andrée, envolvendo a amiga num sorriso que a
acariciava e julgava ao mesmo tempo.
Se, nesse prazer pelo divertimento, Albertine mostrava um pouco da Gilberte dos primeiros
tempos, é que existe uma certa semelhança embora sempre evoluindo, entre as mulheres que
amamos sucessivamente, semelhança que tem a ver com a fixidez do nosso temperamento,
porque é ele quem as escolhe, eliminando todas aquelas que não nos seriam, a um tempo,
opostas e complementares, isto é, próprias para satisfazer nossos sentidos e deixar sofrer nosso
coração.
Tais mulheres são um produto do nosso temperamento, uma imagem e uma projeção às
avessas, um "negativo" da nossa sensibilidade. De modo que um romancista poderia, no decurso
da vida de seu herói, pintar de modo quase exatamente igual os seus amores sucessivos e,
assim, dar a impressão não de imitar a si próprio, mas de criar, visto que há menos força numa
inovação artificial do que numa repetição destinada a sugerir uma verdade nova. Embora deva
assinalar, no caráter do apaixonado, um índice de variação que se denuncie à medida que vai
chegando a novas regiões, sob outras latitudes da vida. E talvez ainda exprimisse uma verdade a
mais se, pintando caracteres para suas outras personagens, ele se abstivesse de conceder
qualquer caráter à mulher amada. Conhecemos o caráter dos que nos são indiferentes; como
poderíamos apreender o de uma criatura que se confunde com a nossa vida, que em breve não
mais havemos de separar de nós próprios, sobre cujos motivos não cessamos de formular
ansiosas hipóteses, perpetuamente remanejadas? Lançando-se para além da inteligência, nossa
curiosidade quanto à mulher a quem amamos ultrapassa em sua corrida o caráter dela.
Poderíamos ali parar, mas de certo não o desejaríamos. O objeto de nossa inquieta investigação é
mais essencial que essas particularidades de caráter, iguais a esses pequenos losangos da
epiderme cujas variadas combinações formam a florida originalidade da carne. Nossa radiação
intuitiva os atravessa e as imagens que ela nos restitui não são de modo algum as de um aspecto
particular, mas representam a sombria e dolorosa universalidade de um esqueleto.
Como Andrée era extremamente rica e Albertine pobre e órfã, a primeira, com grande
generosidade, fazia a outra aproveitar o seu luxo. Quanto aos sentimentos que externava em
relação a Gisele, não eram inteiramente aqueles que eu imaginara. De fato, em breve tivemos
notícias da estudante e, quando Albertine mostrou a carta que recebera dela, carta destinada por
Gisele a dar notícias da viagem e da chegada, desculpando-se pela preguiça de ainda não ter
escrito às outras, fiquei surpreso ao ouvir Andrée, que julgara estar de mal com ela por toda a
vida, dizer:
- Vou lhe escrever amanhã, porque se espero primeiro a sua carta, posso ficar esperando
por muito tempo, ela é tão negligente. - E, virando-se para mim, acrescentou: - Evidentemente,
você não a acharia muito interessante, mas é uma moça muito boa; e depois, sinto na verdade
uma grande afeição por ela.
Concluí que as brigas de Andrée não duravam muito.
A não ser nos dias de chuva, como tínhamos de ir de bicicleta pelos rochedos da costa ou
pelos campos, com uma hora de antecipação eu já procurava me preparar e gemia se Françoise
não cuidara bem dos meus apetrechos.
Ora, mesmo em Paris, ela aprumava, altiva e raivosamente, o corpo que a idade
começava a curvar, diante da menor falta de que a acusassem, ela que era tão humilde, modesta
e encantadora quando seu amor-próprio era lisonjeado. Como este era o principal móvel da sua
vida, a satisfação e o bom-humor de Françoise estavam na razão direta da dificuldade das coisas
que lhe pediam. As coisas que tinha a fazer em Balbec eram tão fáceis que quase sempre ela
demonstrava um descontentamento que, de súbito, era centuplicado, e ao qual se aliava uma
irônica expressão de orgulho quando eu me queixava, no momento de ir encontrar as minhas
amigas, que o meu chapéu não fora escovado, ou que minhas gravatas não estavam em ordem.
Ela, que podia trabalhar tanto sem por isso achar ter feito alguma coisa, à simples observação de
que um casaco não estava no lugar, não só se gabava do cuidado com que "o guardara para não
deixar que ficasse empoeirado", mas, fazendo um elogio em regra de seus trabalhos, deplorava
que absolutamente não eram férias o que estava passando em Balbec, que não achariam outra
pessoa como ela para suportar uma vida daquelas.
- Não entendo como alguém pode deixar seus negócios desse jeito, e ver se uma outra
saberia dar conta desta confusão. Até o diabo perderia o seu latim.
Ou então, contentava-se em assumir um aspecto de rainha, lançando-me olhares
inflamados, e mantinha um silêncio interrompido logo que fechava a porta e enfiava pelo corredor;
este, então, retumbava de frases que eu adivinhava serem injuriosas, mas que permaneciam tão
indistintas como as das personagens que recitam suas primeiras palavras nos bastidores antes de
entrar em cena. Além disso, quando me preparava desse modo para sair com minhas amigas,
mesmo que nada me faltasse ou que Françoise estivesse de bom humor, ela ainda assim se
mostrava insuportável. Pois, servindo-se de gracejos que, na minha necessidade de falar
daquelas moças, eu lhe fizera sobre elas, Françoise assumia um ar de quem vai me revelar o que
eu melhor do que ela saberia ser exato, mas que não o era, pois Françoise o compreendera mal.
Como todos, Françoise possui seu gênio próprio; uma pessoa nunca se assemelha a um caminho
reto, e nos assombra com seus desvios singulares e inevitáveis de que os outros não se
apercebem, e por onde nos é penoso ter de passar. Cada vez que eu chegava ao ponto:
"Chapéu fora do lugar", "em nome de Andrée ou de Albertine", era obrigado, por Françoise,
a me perder em caminhos absurdos e cheios de desvios que muito me atrasavam. O mesmo
ocorria quando eu mandava preparar os sanduíches de queijo e a salada, e comprar tortas que
comeria à hora do lanche, sobre o rochedo, com essas moças, e que elas bem poderiam pagar,
cada uma por sua vez, se não fossem tão interesseiras, declarava Françoise, em cujo socorro
vinha então todo um atavismo de rapacidade e vulgaridade provincianas e para quem se diria que
a alma repartida da defunta Eulalie se encarnara, mais graciosamente que em santo Elói, nos
corpos encantadores de minhas amigas do pequeno grupo. Eu escutava essas acusações com a
raiva de topar com um desses pontos a partir dos quais o caminho rústico e familiar, que era o
caráter de Françoise, se tornava impraticável felizmente não por muito tempo. Depois, achado o
casaco e prontos os sanduíches, eu ia procurar Albertine, Andrée, Rosemonde, por vezes outras,
e, a pé ou de bicicleta, íamos embora.
Outrora, eu teria preferido que esse passeio se desse com mau tempo. Então, queria eu
descobrir em Balbec "o país dos cimérios", e dias bonitos eram uma coisa que não deveria ter
existido ali, uma invasão do estio vulgar dos banhistas nessa região antiga velada de brumas.
Porém agora, tudo o que eu desdenhara, afastara dos olhos, não só os efeitos do sol mas
também as regatas, as corridas de cavalos, tudo isso eu procuraria com paixão pelo mesmo
motivo por que, antigamente, só desejava mares tempestuosos, e era porque se prendiam, uns
hoje em dia como outrora os outros, a um ideal estético. É que, com minhas amigas, ia às vezes
visitar Elstir e, nos dias em que as moças lá estavam, ele mostrara de preferência alguns esboços
de lindas yachtswomen ou então um rascunho feito num hipódromo vizinho a Balbec.
Primeiramente, confessara com timidez a Elstir que não quisera comparecer às reuniões
que ali se realizavam.
- Fez mal - disse-me ele -, é tão bonito, e também curioso. De início, essa criatura
particular, o jóquei, no qual se fixam tantos olhos, e que diante do paddock está acinzentado e
sombrio em sua casaca de espavento, formando um só todo com o cavalo inquieto que ele retém;
como seria interessante liberar seus movimentos profissionais, mostrara mancha brilhante que
produz e que também faz o pêlo dos cavalos na pista de corridas! Que transformação de todas as
coisas nessa imensidade luminosa de uma pista de corridas onde nos surpreendemos com tantas
sombras, reflexos que só ali se vêem! Como são lindas as mulheres ali! Especialmente a primeira
reunião estava de arrebatar! Havia mulheres de extrema elegância, numa luz úmida, holandesa,
onde se sentia subir, mesmo ao sol, o frio penetrante da água. Nunca vi mulheres chegando de
carro, ou de binóculos, numa luz como aquela, resultante sem dúvida da umidade marinha. Ah,
como gostaria de captá-la numa tela! Voltei louco daquelas corridas, com tanta vontade de
trabalhar!
Depois, extasiou-se mais ainda com as reuniões de iatismo do que com as corridas de
cavalos, e percebi então que as regatas, os embates esportivos, onde as mulheres bem vestidas
se banhavam na glauca iluminação de um hipódromo marinho, podiam ser, para um artista
moderno, motivos tão interessantes como, para um Veronese ou um Carpaccio, as festas que eles
tanto gostavam de descrever.
- Sua comparação é tanto mais exata. - disse-me Elstir -, visto que, por causa da cidade
onde pintavam, tais festas eram náuticas por um lado. Apenas, a beleza das embarcações
daquele tempo residia o mais das vezes no fato de serem pesadas, na sua complicação. Havia
torneios marítimos como agora, geralmente em honra de alguma embaixada semelhante àquela
que Carpaccio representa na Lenda de Santa Úrsula. Os navios eram maciços, construídos como
arquiteturas, e pareciam quase anfíbios como Venezas menores no meio da outra, quando, unidos
por meio de pontes levadiças, recobertos de cetim escarlate e de tapetes persas, levavam
mulheres de brocado cereja ou de damasco verde até junto dos balcões incrustados de mármores
multicores onde outras mulheres se debruçavam para ver, em seus vestidos de mangas negras,
cujas aberturas de forro branco eram bordadas com pérolas ou ornadas de rendilhado fino. Não
se sabia mais onde acabava aterra e onde começava a água, o que ainda era palácio ou já
formava o navio, a caravela, a galeaça, o Bucentauro.
Albertine escutava com uma atenção apaixonada esses detalhes de toalete, essas
imagens luxuosas que nos descrevia Elstir.
- Oh, como gostaria de ver os rendilhados de que fala, é tão linda a ponte de Veneza! - exclamou. - Aliás, gostaria muito de ir a Veneza!
- Talvez possa ir em breve - disse Elstir - contemplar os tecidos maravilhosos que lá se
usavam. Só podiam ser vistos nos quadros dos pintores venezianos, ou então, muito raramente,
nos tesouros das igrejas, e às vezes até aparecia algum para vender. Mas conta-se que um artista
de Veneza, Fortuny, encontrou o segredo de sua fabricação e que, daqui a alguns anos, as
mulheres poderão passear e sobretudo ficar em casa vestindo brocados tão magníficos como os
que Veneza ornamentava, para suas cidadãs, com desenhos do Oriente. Mas não sei se gostaria
muito disso, se isso não seria um tanto anacrônico demais para as mulheres de hoje, mesmo que
se exibam nas regatas, pois, para voltar aos nossos modernos barcos de recreio, são totalmente o
oposto os tempos de Veneza, "Rainha do Adriático". O maior encanto de um iate, da mobília de
um iate, das roupas adequadas ao iatismo, é a sua simplicidade de coisas do mar, e eu amo tanto
o mar! Confesso-lhes que prefiro as modas atuais às do tempo de Veronese e até de Carpaccio.
O que há de bonito nos nossos iates e principalmente nos iates médios, pois não gosto dos
enormes, bancando navios; e, mesmo no caso dos chapéus, há uma certa medida a guardar - é a
coisa lisa, singela, clara, discreta que, em épocas de névoa, azuladas, adquire uma vaporosidade
cremosa. É preciso que o recinto em que se está pareça um pequeno café. O mesmo ocorre com
as toaletes femininas em um iate; o gracioso são as toaletes leves, brancas e lisas, de linho, de
cambraia, de brim, de pequim, que, ao sol e sobre o azul do mar, produzem um branco tão
deslumbrante como uma vela branca. Aliás, há muito poucas mulheres que se vestem bem; no
entanto, algumas são maravilhosas. Nas corridas, a Srta. Léa usava um chapeuzinho branco e
uma sombrinha também branca que eram arrebatadores. Não sei o que daria para possuir uma
sombrinha dessas.
Muito gostaria eu de saber em que semelhante sombrinha diferia das demais, e muito mais
ainda o queria saber Albertine, por motivos diversos, de coqueteria feminil. Mas, como dizia
Françoise dos suflês, "é conforme a mão", a diferença estava no corte.
- Era - dizia Elstir - pequenino, bem redondo, como um guarda-sol chinês.
continua na página 206...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - v)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário