segunda-feira, 5 de maio de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - x)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(x)

continuando...

      Gisele julgara dever endereçar à amiga, a fim de que esta a comunicasse às outras, a composição que tivera de fazer para obter seu diploma de estudos do segundo grau. Os temores de Albertine acerca das dificuldades dos assuntos propostos tinham aumentado ainda mais devido aos dois entre os quais Gisele fora obrigada a optar. Um era: 

"Sófocles escreve dos Infernos para consolar Racine pelo fracasso de Athaiie"; o outro: “Suponha que, após a primeira representação de Esther, a Sra, de Sévigné escreve à Sra. de La Fayette para lhe dizer o quanto lamentou a sua ausência."

     Pois Gisele, por um excesso de zelo que deve ter tocado os examinadores, escolhera o primeiro, o mais difícil dos dois assuntos, e o desenvolvera de modo tão notável que obtivera 14 e fora felicitada pelo júri. Teria conseguido a menção "ótimo" se não tivesse levado pau no exame de espanhol. A composição, cuja cópia Gisele enviara a Albertine, nos foi lida imediatamente por esta, visto que, devendo ela própria passar pelo mesmo exame, desejava muito ouvir a opinião de Andrée, muito mais forte que elas todas e que podia lhe dar bons conselhos. 

- Ela tem uma sorte! - disse Albertine. - Era justamente o assunto que lhe deu aqui sua professora de francês.

     A carta de Sófocles a Racine, redigida por Gisele, começava assim:

"Meu caro amigo, desculpai-me o escrever-vos sem ter tido a honra de ser conhecido pessoalmente de vós, mas vossa nova tragédia, Athalie, não mostrará por acaso que estudastes perfeitamente bem as minhas modestas obras? Não pusestes versos senão na boca dos protagonistas, ou personagens principais do drama, porém escrevestes alguns, e encantadores; permiti que vos diga sem lisonjas, quanto aos coros, que não faziam má figura, segundo se diz, na tragédia grega, mas que são na França uma legítima novidade. Além do mais, o vosso talento, tão fino, tão aprimorado, tão arrebatador, tão sutil, tão delicado, alcançou uma energia pela qual vos felicito. 
Athalie, Joad, eis personagens que vosso rival, Corneille, não teria burilado melhor. As índoles são viris, a intriga é simples e forte. Eis uma tragédia cujo móvel não é o amor e apresento-vos meus mais sinceros cumprimentos. Os mais famosos preceitos nem sempre são os mais verdadeiros. Citar-vos-ei como exemplo:
''Desta paixão a sensível pintura 
 Chega-nos pela via mais segura.'' 
 Tendes provado que o sentimento religioso que transborda de vossos coros não é menos capaz de emocionar. O grande público pode ter ficado desorientado, mas os verdadeiros conhecedores vos rendem justiça. Portanto, fiz questão de vos enviar minhas congratulações, às quais acrescento, meu caro confrade, a expressão dos meus mais elevados sentimentos."

     Os olhos de Albertine não tinham deixado de cintilar enquanto estivera lendo:

- Parece até que ela copiou isto - exclamou, ao acabar. - Nunca teria acreditado que Gisele fosse capaz de realizar uma tarefa destas. E os versos que ela cita! De onde será que os afanou? A admiração de Albertine, é verdade que mudando de objeto, ainda mais aumentou, bem como a mais aplicada atenção, fazendo com que "os olhos lhe saíssem das órbitas" quando Andrée, consultada por ser a mais velha e a mais instruída, falou do trabalho de Gisele primeiro com uma certa ironia e, depois, com um ar displicente que mal dissimulava a sua verdadeira seriedade, e refez à sua moda a mesma carta. 
- Não está má. - disse ela a Albertine mas, se eu fosse você e me dessem o mesmo tema, o que pode ocorrer, pois o apresentam seguido, não faria desse jeito. Eis como faria. Primeiro, se fosse Gisele, não me deixaria embalar e teria começado escrevendo numa folha à parte o plano da obra. Na primeira linha, a posição da questão e a exposição do tema; depois, as ideias gerais que entrariam no desenvolvimento do assunto. Por fim, a apreciação, o estilo, a conclusão. Desse modo, inspirando-se num sumário, a gente sabe aonde vai. Desde a exposição do tema, ou, se você prefere, Titine, já que se trata de uma carta, desde a entrada no assunto, Gisele comete um equívoco. Dirigindo-se a um homem do século XVII, Sófocles não devia ter escrito: "Meu caro amigo". 
- É verdade, deveria tê-lo feito dizer: "Meu caro Racine" - gritou fogosamente Albertine. - Teria ficado bem melhor. 
- Não. - respondeu Andrée num tom meio trocista -, deveria ter posto "Senhor". Da mesma forma, para encerrar deveria ter encontrado algo como: "Permiti, Senhor (quando muito "caro Senhor"), que vos diga dos sentimentos de estima com os quais tenho a honra de ser vosso servidor." Por outro lado, Gisele diz que os coros são uma novidade em Athalie. Ela esquece Esther, e duas tragédias pouco sabidas, mas que precisamente este ano foram analisadas pelo professor, de modo que, bastando citá-las, pois são a mania dele, a gente tem certeza de ser aprovada. São As Judias, de Robert Garnier, e o Amante, de Montchrestien.

     Andrée citou estes dois títulos sem conseguir esconder um sentimento de benevolente superioridade que se exprimiu num sorriso, aliás bem gracioso. Albertine não se conteve:

- Andrée, você é de abafar - exclamou. - Vai me escrever estes dois títulos. O quê? Imagine só se me cair isso na prova; mesmo que fosse na oral, eu os citaria logo e causaria um efeito tremendo.

     Mas, a seguir, cada vez que Albertine pediu a Andrée que lhe repetisse os nomes das duas peças para que ela as escrevesse, a tão sábia amiga fingiu tê-los esquecido e nunca mais pôde recordá-los.

- Depois - continuou Andrée num tom de imperceptível desdém pelas companheiras mais pueris, porém feliz por se fazer admirar e dando mais importância do que parecia à forma de como teria desenvolvido o assunto - Sófocles nos Infernos deve estar bem informado. Assim, deve saber que não é diante do grande público, mas diante do Rei-Sol e de alguns cortesãos privilegiados que Athalie foi representada. O que Gisele diz a respeito da estima dos conhecedores não está inteiramente ruim, mas poderia ser completado. Sófocles, tornado imortal, pode muito bem ter o dom da profecia e anunciar que, segundo Voltaire, Athalie não será apenas "a obra-prima de Racine, mas do espírito humano".

     Albertine bebia todas essas palavras. Tinha as pupilas em fogo. E foi com a mais profunda indignação que repeliu a proposta de Rosemonde para começarem a jogar.

- Enfim. - disse Andrée no mesmo tom desligado, desenvolto, um tanto zombeteiro e ardentemente convicto-, se Gisele tivesse anotado antes as ideias gerais para desenvolvê-las, talvez houvesse pensado no que eu faria, ou seja, mostrar a diferença existente entre a inspiração religiosa dos coros de Sófocles e a dos de Racine. Eu teria feito, por meio de Sófocles, a observação de que, se os coros de Racine são impregnados de sentimentos religiosos como os da tragédia grega, não se trata todavia dos mesmos deuses. O deus de Joad nada tem a ver com o de Sófocles. E isto leva, muito naturalmente, após o fim do desenvolvimento, à conclusão: Que importa que as crenças sejam diversas?" Sófocles sentiria escrúpulos em insistir nesse ponto. Recearia ferir as convicções de Racine e, insinuando a esse respeito algumas palavras sobre seus mestres de Port-Royal, prefere felicitar o seu êmulo pela elevação do seu gênio poético.

     A admiração e a atenção tinham dado tanto calor a Albertine que ela suava em bicas. Andrée conservava a fleuma sorridente de um dândi feminino. 

- Também não seria mau citar alguns julgamentos de críticos célebres. - disse ela antes que recomeçassem a jogar.
- Sim - respondeu Albertine -, já me disseram isso. Os mais recomendáveis, em geral, são os julgamentos de Sainte-Beuve e Merlet, não é? 
- Não está enganada de modo nenhum. - replicou Andrée que aliás se recusou a lhe escrever os dois outros nomes malgrado as súplicas de Albertine. - Merlet e Sainte-Beuve são bem lembrados. Mas é preciso citar principalmente Deltour e Gasc-Desfossés.

      Enquanto isso, eu pensava na folhinha do bloco que Albertine me passara: 

"Amo-te muito", e, uma hora depois, descendo os caminhos, um tanto íngremes para o meu gosto, que levavam a Balbec, dizia comigo que seria com ela que viveria o meu romance.

     O estado caracterizado pelo conjunto de signos pelos quais normalmente julgamos estar enamorados, como as ordens que eu dava no hotel para não me despertarem fosse qual fosse a visita, a não ser que se tratasse de uma ou outra dessas moças, como as batidas de coração ao esperá-las (qualquer que fosse a que estivesse por chegar) e, naqueles dias, a minha raiva se não achasse um barbeiro e devesse me apresentar diante de Albertine, Rosemonde ou Andrée com a barba por fazer esse estado, sem dúvida, renascendo alternativamente por uma ou por outra, era tão diferente daquilo a que chamamos amor como difere a vida humana da dos zoófitos, nos quais a existência, a individualidade se assim podemos chamá-la, se reparte entre organismos diversos. Mas a História Natural nos ensina que se observa semelhante organização animal e que nossa própria vida, por pouco que já esteja um tanto adiantada, não é menos afirmativa sobre a realidade dos estados insuspeitados por nós antigamente e pelos quais devemos passar, mesmo que seja para abandoná-los em seguida; tal era para mim aquele estado amoroso dividido simultaneamente entre várias moças. Dividido, ou melhor, indiviso, pois, na maioria das vezes, o que me era mais delicioso, diferente do resto do mundo, o que principiava a me ser tão caro a ponto de que a esperança de voltar a vê-lo no dia seguinte era a melhor alegria da minha vida, era antes o grupo inteiro dessas moças, tomado em conjunto naquelas tardes sobre o rochedo, durante aquelas horas ao ar livre, naquela faixa de relva onde se sentavam as figuras, tão excitantes para a minha imaginação, de Albertine, de Rosemonde e de Andrée; e isto sem que eu pudesse dizer qual delas me fazia tão preciosas aquelas paragens, qual delas eu tinha mais desejos de amar.
     No princípio de um amor, como no seu término, não estamos exclusivamente ligados ao objeto desse amor, ou melhor, o desejo de amar de que ele vai derivar (e, mais tarde, a recordação que ele deixa) erra voluptuosamente numa zona de encantos intercambiáveis encantos às vezes simplesmente de natureza, de gula, de moradia-bastante harmônicos entre si para que ele não se sinta em terra estranha junto de nenhum. Além disso, como diante delas eu ainda não me mostrava enfastiado pelo hábito, tinha a faculdade de vê-las, ou seja, de sentir profundo espanto, cada vez que me encontrava em sua presença. Por um lado, sem dúvida, esse espanto se deve à criatura que nos apresenta então uma nova faceta de si mesma; mas é tão grande a multiplicidade de cada uma, a riqueza de linhas de seu rosto e de seu corpo, linhas das quais tão pouco voltamos a encontrar, logo que não estamos mais perto da pessoa, na simplicidade arbitrária de nossa lembrança-como a memória escolheu determinada particularidade que nos impressionou, isolou-a, exagerou-a, fazendo de uma mulher que nos pareceu alta um estudo onde o comprimento do seu talhe é desmesurado, ou de uma mulher que nos pareceu loura e rosada uma pura "Harmonia em rosa e ouro", no momento em que essa mulher está de novo perto de nós, todas as outras qualidades esquecidas que lhe dão equilíbrio nos assaltam, em sua complexidade confusa, diminuindo a altura, afogando o tom róseo, e substituindo o que viemos buscar com exclusividade por outras particularidades que não nos lembrávamos de ter notado da primeira vez e que não compreendemos que contássemos tão pouco com revê-las. Lembramo-nos: íamos ao encontro de um pavão e encontramos uma peônia. E esse espanto inevitável não e o único; pois junto dele há um outro, nascido da diferença não mais entre as estilizações da lembrança e da realidade, mas entre a criatura que vimos pela última vez e a que nos surge hoje sob outro ângulo, mostrando-nos um novo aspecto. O rosto humano é verdadeiramente como o do deus de uma teogonia oriental, todo um cacho de fisionomias justapostas nos planos diferentes que não vemos ao mesmo tempo.
     Mas, em grande parte, o nosso espanto provém sobretudo de que a criatura também nos apresenta uma mesma face. Ser-nos-ia necessário um tão grande esforço para recriar tudo o que nos foi proporcionado por algo que não é nós próprios ainda que seja o sabor de uma fruta-que mal recebemos a impressão descemos insensivelmente o declive da lembrança e, sem dar por isso, em pouco tempo estamos muito longe daquilo que sentimos. De modo que todo novo encontro é uma espécie de correção que nos reconduz ao que muito bem tínhamos visto. Já não nos lembrávamos mais, de tal modo o que se denomina lembrar uma criatura é na verdade esquecê-la. Mas, enquanto ainda sabemos ver, no momento em que o traço esquecido aparece nós o reconhecemos, somos obrigados a retificar a linha que se desviou e, assim, a perpétua e fecunda surpresa que fazia tão saudáveis e suavizadores para mim esses encontros diários com as bonitas moças à beira-mar, era feita de partes iguais de descobertas e reminiscências. Acrescentando-se a isto a agitação despertada pelo que elas representavam para mim, que jamais era inteiramente aquilo que eu julgara, o que fazia que a esperança do próximo encontro não mais fosse idêntica à precedente e sim à lembrança ainda vibrante do último encontro, compreender-se-á que cada passeio dava a meus pensamentos uma violenta mudança de rumo, e não na direção que eu traçara a sós no meu quarto, com a cabeça descansada. E essa direção ficava esquecida, anulada, quando eu voltava, vibrando como uma colmeia, com as frases que me haviam perturbado, e que ressoavam dentro de mim por muito tempo. Cada criatura é destruída quando a deixamos de ver; depois, o seu aparecimento seguinte é uma nova criação, diversa da que a precedeu imediatamente, senão de todas. Pois o mínimo de variedades que possa reinar em tais criações é representado pelo número dois.
     Se lembramos um olhar enérgico, um jeito atrevido, o próximo encontro inevitavelmente nos deixará espantados, ou seja, quase exclusivamente impressionados com um lânguido perfil, por uma espécie de doçura sonhadora, coisas que havíamos negligenciado na recordação anterior. No confronto entre a nossa lembrança e a nova realidade, é isso que marcará a nossa decepção ou nossa surpresa, e agora nos parece o retoque da realidade advertindo-nos de que nossa recordação era falha; por seu turno, o aspecto fisionômico negligenciado da última vez e, por isso mesmo, mais sedutor agora, mais real e corrigido, se transformará em matéria de recordações e devaneios. É um perfil suave, langoroso, uma expressão sonhadora e doce, o que desejamos rever. E então, da próxima vez, o que houver de voluntário no olhar penetrante, no nariz pontudo, nos lábios cerrados, virá corrigir a defasagem entre o nosso desejo e o objeto que julgava corresponder-lhe. Fica bem entendido que essa fidelidade às impressões primeiras, puramente físicas, reencontradas sempre junto de minhas amigas, não se referia somente às suas feições, pois já vimos que eu também era sensível às suas vozes, talvez mais inquietantes (pois elas não oferecem apenas as mesmas superfícies singulares e sensuais das feições, mas fazem parte do abismo inacessível que dá a vertigem dos beijos sem esperança), vozes semelhantes ao som único de um pequeno instrumento onde cada uma punha inteira a sua alma e que era exclusivamente seu. Traçada por uma inflexão, a linha profunda de uma dessas vozes espantava-me sempre que a reconhecia depois de a ter esquecido. Tanto que as retificações que eu era obrigado a fazer a cada novo encontro, para voltar ao tom exato, eram tão adequadas a um afinador ou a um professor de canto, como a um desenhista.
      Quanto à harmoniosa coesão em que se neutralizavam já algum tempo, pela resistência que cada uma opunha à expansão das demais, as diversas ondas de sentimento propagadas em mim por essas moças, tudo se rompeu em favor de Albertine, numa tarde em que brincávamos de passar anel. Era num pequeno bosque sobre a falésia. Colocado entre duas jovens estranhas ao pequeno grupo e que minhas amigas haviam trazido porque nesse dia deveríamos ser bem numerosos, eu olhava com inveja o vizinho de Albertine, um rapaz, dizendo comigo que, se estivesse no seu lugar, poderia tocar as mãos da minha amiga naqueles minutos inesperadas que talvez jamais voltassem e que tão longe poderiam me levar. Já o simples contato das mãos de Albertine, e até sem pensar nas consequências que daí adviriam, me parecia delicioso. Não que eu nunca tivesse visto mãos mais lindas que as suas. Até no grupo de suas amigas, as de Andrée, delgadas e bem mais finas, tinham como que uma vida particular, dócil ao comando da moça, mas independente, e muitas vezes se alongavam diante dela como nobres lebreus, com atitudes de preguiça, de sonho profundo, e estiramentos bruscos de uma falange, devido aos quais Elstir havia feito vários estudos dessas mãos. Num deles, via-se Andrée aquecendo-as ao fogo e, diante da luz, elas mostravam a diafaneidade dourada de duas folhas de outono. Porém mais grossas, as mãos de Albertine cediam um instante e depois resistiam à pressão da mão que as apertava, transmitindo uma sensação toda particular. A pressão da mão de Albertine era dotada de uma doçura sem igual bem em harmonia com a coloração rósea, ligeiramente malva, de sua pele. Com essa pressão, parecia que a gente penetrava na moça, na profundidade de seus sentidos, assim como na sonoridade do seu riso, indecente como um barulho sensual ou como certos gritos. Era uma dessas mulheres a quem temos tão grande prazer em apertar a mão que ficamos gratos à civilização por ter feito do shake-hand um ato permitido entre rapazes e moças que se encontram. Se os costumes arbitrários de cortesia tivessem substituído esse aperto de mãos por outro gesto, eu teria contemplado todos os dias as mãos intangíveis de Albertine, tão ardentemente curioso de conhecer o seu contato, como o era de saber o gosto de suas faces.
     Mas, no prazer de ter por muito tempo suas mãos entre as minhas, se tivesse sido o seu vizinho no jogo do anel, eu tinha como objetivo um pouco mais que esse prazer: quantas confissões, quantas declarações até hoje caladas por timidez, eu teria podido confiar a certas pressões da mão; de sua parte, como lhe teria sido fácil demonstrar, com outras pressões de mão, que me aceitava; que cumplicidade, que princípio de volúpia! Meu amor podia progredir mais em alguns minutos assim passados ao lado dela do que desde que a conhecia. E não me aguentava no lugar, pois via que aqueles minutos não durariam muito, estariam em breve chegando ao fim, pois aquele joguinho certamente não continuaria por muito tempo, e tão logo acabasse seria tarde demais. Deixei que me pegassem o anel de propósito e, uma vez no meio da roda, fingia que não o via passar e o seguia com os olhos esperando o momento em que chegasse às mãos do vizinho de Albertine; esta, rindo loucamente, estava toda cor-de-rosa na animação e alegria do jogo.

- Estamos justamente no bosque bonito - disse-me Andrée, designando as árvores que nos rodeavam, com um sorriso no olhar que era só para mim e parecia passar por cima dos jogadores como se só nós dois fôssemos bastante inteligentes para nos desdobrarmos e fazer, a respeito do jogo, uma observação de caráter poético. E ela chegou até a levar a delicadeza de espírito a ponto de cantar, sem vontade, o "Ele passou por aqui, o furão do bosque, senhoras, passou por aqui o furão do bosque bonito", como essas pessoas que não podem ir ao Trianon sem dar uma festa estilo Luís XVI, ou que muitas vezes se divertem mandando cantar uma canção no mesmo ambiente para o qual foi escrita. E ao contrário, sem dúvida, eu teria ficado triste por não achar qualquer encanto na comparação proposta por Andrée, se tivesse tempo para pensar naquilo. Mas estava bem longe o meu espírito. Jogadores e jogadoras começavam a se espantar com a minha estupidez, e porque não pegava o anel. Eu contemplava Albertine tão bela, tão indiferente, tão alegre que, sem o prever, ia ser minha vizinha, quando enfim pegasse o anel nas mãos designadas, graças a uma manobra de que ela não suspeitava e que, se soubesse, muito a irritaria. Na febre do jogo, os longos cabelos de Albertine tinham-se desfeito um pouco e, em mechas encaracoladas, caíam-lhe pelo rosto, cuja rósea carnação ainda mais ressaltavam pela sua negra secura.
- Você tem as tranças de Laura Dianti, de Éléonore de Guyenne e de sua descendente, tão amada por Chateaubriand. Deveria usar sempre os cabelos meio caídos. - disse-lhe ao ouvido para me aproximar dela.  

     De repente, o anel passou para o vizinho de Albertine. Imediatamente me lancei sobre ele, brutalmente abri suas mãos, e peguei o anel; ele foi obrigado a ocupar meu posto no meio do círculo e eu tomei o seu ao lado de Albertine. Poucos minutos antes, invejava o rapaz ao ver suas mãos deslizando pelo barbante e encontrando a todo momento as de Albertine. Agora que chegara a minha vez, muito tímido para procurar esse contato, muito emocionado para poder desfrutá-lo, só conseguia sentir as batidas rápidas e dolorosas do coração. Num dado instante, Albertine se inclinou para mim com um ar de inteligência, o rosto cheio e rosado, fingindo assim que estava com o anel, a fim de enganar o furão e evitar que ele olhasse para o lado onde o anel estava sendo passado. Compreendi logo que os subentendidos expressos no olhar de Albertine se referiam àquela artimanha, mas perturbei-me ao ver assim passar em seus olhos a imagem, puramente simulada para os propósitos do jogo, de um segredo, de uma combinação que não existia entre nós dois, mas que desde então me pareceram possíveis e me seriam divinamente gratificantes. Como esse pensamento me exaltasse, senti uma leve pressão da mão de Albertine contra a minha, e seu dedo caricioso que deslizava por baixo do meu e vi que, ao mesmo tempo, ela me piscava o olho, procurando fazê-lo imperceptivelmente. De súbito, uma multidão de esperanças, até então invisíveis para mim mesmo, se cristalizaram:

 "Ela aproveita o jogo para me demonstrar que me ama muito", pensei no auge de uma alegria, da qual imediatamente despenquei ao ouvir Albertine me dizer com raiva:

- Mas pegue logo o anel, seu burro, faz uma hora que estou lhe passando.

     Aturdido pela dor, larguei o barbante; o furão percebeu o anel, se atirou sobre ele e tive de voltar para o meio do círculo, desesperado, olhando a ronda desenfreada que continuava a meu redor, interpelado pelos gracejos de todas as jogadoras, obrigado, para lhes responder, a rir também quando tinha tão pouca vontade disso, enquanto Albertine não parava de dizer:

- Não se deve jogar quando não se pode prestar atenção, para não fazer os outros perderem. Ou a gente não o convida nos dias em que formos jogar, Andrée, ou sou eu que não venho mais.

     Andrée, superior ao jogo e que continuava cantando o seu "Bosque bonito", que Rosemonde por espírito de imitação repetia sem qualquer convicção, quis desviar as censuras de Albertine e me disse: 

- Estamos a dois passos dos Creuniers que você tanto gostaria de ver. Venha, vou levá-lo até lá por um belo caminho enquanto essas doidas bancam crianças de oito anos. 

     Como Andrée era extremamente gentil comigo, pelo caminho lhe fui dizendo de Albertine tudo o que me parecia próprio para que esta me amasse. Andrée me respondeu que também gostava muito dela, achava-a encantadora; entretanto, meus elogios à sua amiga davam-me a impressão de não lhe causar nenhum prazer. De súbito, ao pequeno caminho vazio, parei, tocado no coração por uma doce lembrança da meninice: acabava de reconhecer, nas folhas recortadas e brilhantes que avançavam para a entrada dos Creuniers, uma moita de espinheiros-rosa sem flor, infelizmente, desde o fim da primavera. Em torno a mim flutuava uma atmosfera de antigos meses de Maria, de tardes de domingo, de crenças, de erros esquecidos. Desejaria apreendê-la. Parei por um segundo e Andrée, com adivinhação encantadora, deixou-me conversar por um instante com as folhas do arbusto. Pedi-lhe notícias das flores, aquelas flores de espinheiro-rosa semelhantes a alegres moças estouvadas, coquetes e piedosas. 

- Essas senhoritas já se foram há muito tempo. - diziam-me as folhas. 

     E talvez pensassem que, para o grande amigo delas que eu pretendia ser, não parecia de modo algum informado sobre seus hábitos. Um grande amigo, mas que não as revia desde muitos anos, apesar de suas promessas. E, no entanto, como Gilberte fora o meu primeiro amor por uma menina, elas tinham sido o meu primeiro amor por uma flor. 

- Sim, eu sei, elas vão embora em meados de junho. respondi -, mas tenho muito prazer em ver o local onde elas moravam aqui. Foram me ver em Combray, no meu quarto, trazidas por minha mãe quando eu estava doente. E nos encontrávamos aos sábados de tarde, no mês de Maria. Aqui elas podem ir às novenas? 
- Oh, naturalmente! Aliás gostam muito dessas senhoritas na igreja de Saint-Denis-du Désert, que é a paróquia mais próxima. 
- E como fazer agora para vê-las? 
- Ora, não antes do mês de maio do ano que vem. 
- Mas posso estar certo de que elas estarão lá?
- Regularmente todos os anos. 
- Só não sei se encontrarei o lugar. 
- Como não!? Essas senhoritas são tão alegres; elas só param de rir para entoar cânticos, de modo que não é possível a gente se enganar e, na beira do caminho, você reconhecerá o seu aroma. 

      Voltei para junto de Andrée e recomecei a lhe fazer elogios acerca de Albertine. Parecia me impossível que ela não os fosse transmitir a Albertine, tamanha era a minha insistência. E, no entanto, jamais soube que Albertine tomasse conhecimento deles. Todavia, Andrée possuía mais conhecimento em assuntos do coração do que ela, e maior refinamento na gentileza; descobrir o olhar, a palavra, a ação que mais engenhosamente pudessem dar prazer, calar uma reflexão que arriscasse magoar, fazer o sacrifício (e sem parecer que era um sacrifício) de uma hora de jogo, e até de uma reunião matinal, de um garden-party, para ficar junto de um amigo ou de uma amiga triste e lhe mostrar assim que preferia sua simples companhia a prazeres frívolos, tais eram as suas delicadezas habituais. Mas, depois que a gente a conhecia um pouco melhor, dir-se-ia que com ela se dava o mesmo que ocorria com esses covardes heroicos que não querem ter medo e cuja bravura é particularmente meritória; dir-se-ia que, no fundo de sua natureza, não havia nada daquela bondade que ela manifestava a todo instante por distinção moral, por sensibilidade, por vontade nobre de se mostrar boa amiga. Ao ouvir as coisas encantadoras que ela me dizia acerca de uma possível afeição entre mim e Albertine, parecia que ela iria trabalhar com todas as suas forças para realizá-la. Ora, talvez por acaso, nunca se utilizou do menor dos nadas de que dispunha e que poderiam unir-me a Albertine, e eu não juraria que meus esforços para ser amado por Albertine não tenham provocado, de sua amiga, manobras secretas destinadas a contrariá-los, mas despertado nela uma cólera aliás bem oculta e contra a qual talvez lutasse ela própria por delicadeza. Albertine seria incapaz dos mil refinamentos de bondade de Andrée, e no entanto eu não estava certo da bondade profunda desta última como o fiquei mais tarde da bondade da primeira. Sempre se mostrando indulgente para com a exuberante frivolidade de Albertine, Andrée tinha para ela palavras e sorrisos que eram de amiga, e mais, agia como amiga. Eu a vi, dia após dia, para fazê-la aproveitar o seu luxo, tornar feliz essa amiga pobre, ter, sem nenhum interesse, mais trabalho que um cortesão que deseja captar o favor do soberano. Era encantadora de doçura, de palavras tristes e carinhosas, quando lamentavam diante dela a pobreza de Albertine, e esforçava-se mil vezes mais por ela do que o faria por uma amiga rica. Mas, se alguém suspeitasse que Albertine não era tão pobre como diziam, uma nuvem mal perceptível velava afronte e os olhos de Andrée; ela parecia de mau humor. E se iam ao ponto de dizer que afinal não tivesse tanta dificuldade de casar como pensavam, Andrée protestava com veemência e repetia quase com raiva: 

-Oh, ela não poderá casar, bem sei. E isso me dá muita pena!  

     Mesmo no que me dizia respeito, ela era a única das moças que jamais me repetiria algo desagradável que tivessem dito de mim; mais ainda, se era eu mesmo quem o contasse a ela, dava a impressão de não acreditar ou vinha com uma explicação que tornava inofensiva a frase. É o conjunto dessas qualidades a que se denomina tato. É o apanágio das pessoas que, se vamos ao campo da honra, nos felicitam e acrescentam que não havia razão para um duelo, a fim de aumentar ainda mais aos nossos olhos a coragem de que demos prova, sem a isso ser constrangidos. São o oposto das pessoas que, nas mesmas circunstâncias, afirmam:

- Deve ser bastante aborrecido para você bater-se em duelo, mas por outro lado você não podia engolir essa afronta, não podia proceder de outra maneira.

     Mas, como em tudo há prós e contras, se o prazer ou pelo menos a indiferença de nossos amigos em nos repetir algo de ofensivo que foi dito a nosso respeito prova que absolutamente não se colocam na nossa pele no momento em que nos falam, e enfiam-lhe o alfinete ou a faca como numa bexiga, a arte de nos ocultar sempre o que pode ser desagradável no que ouviram dizer de nossos atos ou da opinião que estes lhes inspiraram, pode provar, em outra categoria de amigos, a dos amigos cheios de tato, uma forte dose de dissimulação. Não há inconveniente se, de fato, não podem pensar mal de nós e se o que lhes é dito os faz apenas sofrer, como a nós mesmos. Achava que este era o caso de Andrée, sem contudo estar absolutamente certo disso. 
     Deixáramos o bosquezinho e seguíamos por um emaranhado de veredas muito pouco freqüentadas que Andrée conhecia perfeitamente bem. 

- Olhe - disse ela de repente, eis os seus famosos Creuniers. E você ainda tem muita sorte, pois estão exatamente na hora e na luz em que Elstir os pintou. 

     Mas eu ainda estava muito triste por haver caído, no jogo do anel, de tão alto apogeu de esperanças. Portanto, não foi com o prazer que certamente teria sentido em outras circunstâncias que pude distinguir de súbito a meus pés, agachadas contra as rochas onde se protegiam do calor, as Deusas marinhas que Elstir espiara e surpreendera, sob uma sombria transparência tão bela como o teria sido a um Leonardo, as maravilhosas Sombras escondidas e furtivas, ágeis e silenciosas, prestes a escorregar pelas pedras ao primeiro remoinho de luz, a se ocultar num buraco e prontas, passada a ameaça do raio luminoso, a voltar para junto do rochedo ou da alga, sob o sol esfarelador das falésias e do Oceano descolorido, cuja modorra parecem velar, guardiãs imóveis e leves, deixando aparecer à flor d'água o seu corpo viscoso e o olhar atento dos olhos fundos.

continua na página 218...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - x)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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