em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(x)
continuando...
Gisele julgara dever endereçar à amiga, a fim de que esta a comunicasse às outras, a composição que tivera de fazer para obter seu diploma de estudos do segundo grau. Os temores de Albertine acerca das dificuldades dos assuntos propostos tinham aumentado ainda mais devido aos dois entre os quais Gisele fora obrigada a optar. Um era:
"Sófocles escreve dos Infernos para consolar Racine pelo fracasso de Athaiie"; o outro:
“Suponha que, após a primeira representação de Esther, a Sra, de Sévigné escreve à Sra. de La
Fayette para lhe dizer o quanto lamentou a sua ausência."
Pois Gisele, por um excesso de zelo que deve ter tocado os examinadores, escolhera o
primeiro, o mais difícil dos dois assuntos, e o desenvolvera de modo tão notável que obtivera 14 e
fora felicitada pelo júri. Teria conseguido a menção "ótimo" se não tivesse levado pau no exame
de espanhol. A composição, cuja cópia Gisele enviara a Albertine, nos foi lida imediatamente por
esta, visto que, devendo ela própria passar pelo mesmo exame, desejava muito ouvir a opinião de
Andrée, muito mais forte que elas todas e que podia lhe dar bons conselhos.
- Ela tem uma sorte! - disse Albertine. - Era justamente o assunto que lhe deu aqui sua
professora de francês.
A carta de Sófocles a Racine, redigida por Gisele, começava assim:
"Meu caro amigo, desculpai-me o escrever-vos sem ter tido a honra de ser conhecido
pessoalmente de vós, mas vossa nova tragédia, Athalie, não mostrará por acaso que estudastes
perfeitamente bem as minhas modestas obras? Não pusestes versos senão na boca dos
protagonistas, ou personagens principais do drama, porém escrevestes alguns, e encantadores;
permiti que vos diga sem lisonjas, quanto aos coros, que não faziam má figura, segundo se diz, na
tragédia grega, mas que são na França uma legítima novidade. Além do mais, o vosso talento, tão
fino, tão aprimorado, tão arrebatador, tão sutil, tão delicado, alcançou uma energia pela qual vos
felicito.
Athalie, Joad, eis personagens que vosso rival, Corneille, não teria burilado melhor. As
índoles são viris, a intriga é simples e forte. Eis uma tragédia cujo móvel não é o amor e
apresento-vos meus mais sinceros cumprimentos. Os mais famosos preceitos nem sempre são os
mais verdadeiros. Citar-vos-ei como exemplo:
''Desta paixão a sensível pintura
Chega-nos pela via mais segura.''
Tendes provado que o sentimento religioso que transborda de vossos coros não é menos
capaz de emocionar. O grande público pode ter ficado desorientado, mas os verdadeiros
conhecedores vos rendem justiça. Portanto, fiz questão de vos enviar minhas congratulações, às
quais acrescento, meu caro confrade, a expressão dos meus mais elevados sentimentos."
Os olhos de Albertine não tinham deixado de cintilar enquanto estivera lendo:
- Parece até que ela copiou isto - exclamou, ao acabar. - Nunca teria acreditado que Gisele
fosse capaz de realizar uma tarefa destas. E os versos que ela cita! De onde será que os afanou?
A admiração de Albertine, é verdade que mudando de objeto, ainda mais aumentou, bem como a
mais aplicada atenção, fazendo com que "os olhos lhe saíssem das órbitas" quando Andrée,
consultada por ser a mais velha e a mais instruída, falou do trabalho de Gisele primeiro com uma
certa ironia e, depois, com um ar displicente que mal dissimulava a sua verdadeira seriedade, e
refez à sua moda a mesma carta.
- Não está má. - disse ela a Albertine mas, se eu fosse você e me dessem o mesmo tema,
o que pode ocorrer, pois o apresentam seguido, não faria desse jeito. Eis como faria. Primeiro, se
fosse Gisele, não me deixaria embalar e teria começado escrevendo numa folha à parte o plano
da obra. Na primeira linha, a posição da questão e a exposição do tema; depois, as ideias gerais
que entrariam no desenvolvimento do assunto. Por fim, a apreciação, o estilo, a conclusão. Desse
modo, inspirando-se num sumário, a gente sabe aonde vai. Desde a exposição do tema, ou, se
você prefere, Titine, já que se trata de uma carta, desde a entrada no assunto, Gisele comete um
equívoco. Dirigindo-se a um homem do século XVII, Sófocles não devia ter escrito: "Meu caro
amigo".
- É verdade, deveria tê-lo feito dizer: "Meu caro Racine" - gritou fogosamente Albertine. -
Teria ficado bem melhor.
- Não. - respondeu Andrée num tom meio trocista -, deveria ter posto "Senhor". Da mesma
forma, para encerrar deveria ter encontrado algo como: "Permiti, Senhor (quando muito "caro
Senhor"), que vos diga dos sentimentos de estima com os quais tenho a honra de ser vosso
servidor." Por outro lado, Gisele diz que os coros são uma novidade em Athalie. Ela esquece
Esther, e duas tragédias pouco sabidas, mas que precisamente este ano foram analisadas pelo
professor, de modo que, bastando citá-las, pois são a mania dele, a gente tem certeza de ser
aprovada. São As Judias, de Robert Garnier, e o Amante, de Montchrestien.
Andrée citou estes dois títulos sem conseguir esconder um sentimento de benevolente
superioridade que se exprimiu num sorriso, aliás bem gracioso. Albertine não se conteve:
- Andrée, você é de abafar - exclamou. - Vai me escrever estes dois títulos. O quê? Imagine
só se me cair isso na prova; mesmo que fosse na oral, eu os citaria logo e causaria um efeito
tremendo.
Mas, a seguir, cada vez que Albertine pediu a Andrée que lhe repetisse os nomes das duas
peças para que ela as escrevesse, a tão sábia amiga fingiu tê-los esquecido e nunca mais pôde
recordá-los.
- Depois - continuou Andrée num tom de imperceptível desdém pelas companheiras mais
pueris, porém feliz por se fazer admirar e dando mais importância do que parecia à forma de
como teria desenvolvido o assunto - Sófocles nos Infernos deve estar bem informado. Assim, deve
saber que não é diante do grande público, mas diante do Rei-Sol e de alguns cortesãos
privilegiados que Athalie foi representada. O que Gisele diz a respeito da estima dos
conhecedores não está inteiramente ruim, mas poderia ser completado. Sófocles, tornado imortal,
pode muito bem ter o dom da profecia e anunciar que, segundo Voltaire, Athalie não será apenas
"a obra-prima de Racine, mas do espírito humano".
Albertine bebia todas essas palavras. Tinha as pupilas em fogo. E foi com a mais profunda
indignação que repeliu a proposta de Rosemonde para começarem a jogar.
- Enfim. - disse Andrée no mesmo tom desligado, desenvolto, um tanto zombeteiro e
ardentemente convicto-, se Gisele tivesse anotado antes as ideias gerais para desenvolvê-las,
talvez houvesse pensado no que eu faria, ou seja, mostrar a diferença existente entre a inspiração
religiosa dos coros de Sófocles e a dos de Racine. Eu teria feito, por meio de Sófocles, a
observação de que, se os coros de Racine são impregnados de sentimentos religiosos como os
da tragédia grega, não se trata todavia dos mesmos deuses. O deus de Joad nada tem a ver com
o de Sófocles. E isto leva, muito naturalmente, após o fim do desenvolvimento, à conclusão: Que
importa que as crenças sejam diversas?" Sófocles sentiria escrúpulos em insistir nesse ponto.
Recearia ferir as convicções de Racine e, insinuando a esse respeito algumas palavras sobre
seus mestres de Port-Royal, prefere felicitar o seu êmulo pela elevação do seu gênio poético.
A admiração e a atenção tinham dado tanto calor a Albertine que ela suava em bicas.
Andrée conservava a fleuma sorridente de um dândi feminino.
- Também não seria mau citar alguns julgamentos de críticos célebres. - disse ela antes que
recomeçassem a jogar.
- Sim - respondeu Albertine -, já me disseram isso. Os mais recomendáveis, em geral, são
os julgamentos de Sainte-Beuve e Merlet, não é?
- Não está enganada de modo nenhum. - replicou Andrée que aliás se recusou a lhe
escrever os dois outros nomes malgrado as súplicas de Albertine. - Merlet e Sainte-Beuve são
bem lembrados. Mas é preciso citar principalmente Deltour e Gasc-Desfossés.
"Amo-te muito", e, uma hora depois, descendo os caminhos, um tanto íngremes para o
meu gosto, que levavam a Balbec, dizia comigo que seria com ela que viveria o meu romance.
O estado caracterizado pelo conjunto de signos pelos quais normalmente julgamos estar
enamorados, como as ordens que eu dava no hotel para não me despertarem fosse qual fosse a
visita, a não ser que se tratasse de uma ou outra dessas moças, como as batidas de coração ao
esperá-las (qualquer que fosse a que estivesse por chegar) e, naqueles dias, a minha raiva se
não achasse um barbeiro e devesse me apresentar diante de Albertine, Rosemonde ou Andrée
com a barba por fazer esse estado, sem dúvida, renascendo alternativamente por uma ou por
outra, era tão diferente daquilo a que chamamos amor como difere a vida humana da dos zoófitos,
nos quais a existência, a individualidade se assim podemos chamá-la, se reparte entre
organismos diversos. Mas a História Natural nos ensina que se observa semelhante organização
animal e que nossa própria vida, por pouco que já esteja um tanto adiantada, não é menos
afirmativa sobre a realidade dos estados insuspeitados por nós antigamente e pelos quais
devemos passar, mesmo que seja para abandoná-los em seguida; tal era para mim aquele estado
amoroso dividido simultaneamente entre várias moças. Dividido, ou melhor, indiviso, pois, na
maioria das vezes, o que me era mais delicioso, diferente do resto do mundo, o que principiava a
me ser tão caro a ponto de que a esperança de voltar a vê-lo no dia seguinte era a melhor alegria
da minha vida, era antes o grupo inteiro dessas moças, tomado em conjunto naquelas tardes
sobre o rochedo, durante aquelas horas ao ar livre, naquela faixa de relva onde se sentavam as
figuras, tão excitantes para a minha imaginação, de Albertine, de Rosemonde e de Andrée; e isto
sem que eu pudesse dizer qual delas me fazia tão preciosas aquelas paragens, qual delas eu
tinha mais desejos de amar.
No princípio de um amor, como no seu término, não estamos exclusivamente ligados ao
objeto desse amor, ou melhor, o desejo de amar de que ele vai derivar (e, mais tarde, a
recordação que ele deixa) erra voluptuosamente numa zona de encantos intercambiáveis
encantos às vezes simplesmente de natureza, de gula, de moradia-bastante harmônicos entre si
para que ele não se sinta em terra estranha junto de nenhum. Além disso, como diante delas eu
ainda não me mostrava enfastiado pelo hábito, tinha a faculdade de vê-las, ou seja, de sentir
profundo espanto, cada vez que me encontrava em sua presença. Por um lado, sem dúvida, esse
espanto se deve à criatura que nos apresenta então uma nova faceta de si mesma; mas é tão
grande a multiplicidade de cada uma, a riqueza de linhas de seu rosto e de seu corpo, linhas das
quais tão pouco voltamos a encontrar, logo que não estamos mais perto da pessoa, na
simplicidade arbitrária de nossa lembrança-como a memória escolheu determinada particularidade
que nos impressionou, isolou-a, exagerou-a, fazendo de uma mulher que nos pareceu alta um
estudo onde o comprimento do seu talhe é desmesurado, ou de uma mulher que nos pareceu
loura e rosada uma pura "Harmonia em rosa e ouro", no momento em que essa mulher está de
novo perto de nós, todas as outras qualidades esquecidas que lhe dão equilíbrio nos assaltam,
em sua complexidade confusa, diminuindo a altura, afogando o tom róseo, e substituindo o que
viemos buscar com exclusividade por outras particularidades que não nos lembrávamos de ter
notado da primeira vez e que não compreendemos que contássemos tão pouco com revê-las.
Lembramo-nos: íamos ao encontro de um pavão e encontramos uma peônia. E esse espanto
inevitável não e o único; pois junto dele há um outro, nascido da diferença não mais entre as
estilizações da lembrança e da realidade, mas entre a criatura que vimos pela última vez e a que
nos surge hoje sob outro ângulo, mostrando-nos um novo aspecto. O rosto humano é
verdadeiramente como o do deus de uma teogonia oriental, todo um cacho de fisionomias
justapostas nos planos diferentes que não vemos ao mesmo tempo.
Mas, em grande parte, o nosso espanto provém sobretudo de que a criatura também nos
apresenta uma mesma face. Ser-nos-ia necessário um tão grande esforço para recriar tudo o que
nos foi proporcionado por algo que não é nós próprios ainda que seja o sabor de uma fruta-que
mal recebemos a impressão descemos insensivelmente o declive da lembrança e, sem dar por
isso, em pouco tempo estamos muito longe daquilo que sentimos. De modo que todo novo
encontro é uma espécie de correção que nos reconduz ao que muito bem tínhamos visto. Já não
nos lembrávamos mais, de tal modo o que se denomina lembrar uma criatura é na verdade
esquecê-la. Mas, enquanto ainda sabemos ver, no momento em que o traço esquecido aparece
nós o reconhecemos, somos obrigados a retificar a linha que se desviou e, assim, a perpétua e
fecunda surpresa que fazia tão saudáveis e suavizadores para mim esses encontros diários com
as bonitas moças à beira-mar, era feita de partes iguais de descobertas e reminiscências.
Acrescentando-se a isto a agitação despertada pelo que elas representavam para mim, que
jamais era inteiramente aquilo que eu julgara, o que fazia que a esperança do próximo encontro
não mais fosse idêntica à precedente e sim à lembrança ainda vibrante do último encontro,
compreender-se-á que cada passeio dava a meus pensamentos uma violenta mudança de rumo,
e não na direção que eu traçara a sós no meu quarto, com a cabeça descansada. E essa direção
ficava esquecida, anulada, quando eu voltava, vibrando como uma colmeia, com as frases que me
haviam perturbado, e que ressoavam dentro de mim por muito tempo. Cada criatura é destruída
quando a deixamos de ver; depois, o seu aparecimento seguinte é uma nova criação, diversa da
que a precedeu imediatamente, senão de todas. Pois o mínimo de variedades que possa reinar
em tais criações é representado pelo número dois.
Se lembramos um olhar enérgico, um jeito atrevido, o próximo encontro inevitavelmente
nos deixará espantados, ou seja, quase exclusivamente impressionados com um lânguido perfil,
por uma espécie de doçura sonhadora, coisas que havíamos negligenciado na recordação
anterior. No confronto entre a nossa lembrança e a nova realidade, é isso que marcará a nossa
decepção ou nossa surpresa, e agora nos parece o retoque da realidade advertindo-nos de que
nossa recordação era falha; por seu turno, o aspecto fisionômico negligenciado da última vez e,
por isso mesmo, mais sedutor agora, mais real e corrigido, se transformará em matéria de
recordações e devaneios. É um perfil suave, langoroso, uma expressão sonhadora e doce, o que
desejamos rever. E então, da próxima vez, o que houver de voluntário no olhar penetrante, no
nariz pontudo, nos lábios cerrados, virá corrigir a defasagem entre o nosso desejo e o objeto que
julgava corresponder-lhe. Fica bem entendido que essa fidelidade às impressões primeiras,
puramente físicas, reencontradas sempre junto de minhas amigas, não se referia somente às
suas feições, pois já vimos que eu também era sensível às suas vozes, talvez mais inquietantes
(pois elas não oferecem apenas as mesmas superfícies singulares e sensuais das feições, mas
fazem parte do abismo inacessível que dá a vertigem dos beijos sem esperança), vozes
semelhantes ao som único de um pequeno instrumento onde cada uma punha inteira a sua alma
e que era exclusivamente seu. Traçada por uma inflexão, a linha profunda de uma dessas vozes
espantava-me sempre que a reconhecia depois de a ter esquecido. Tanto que as retificações que
eu era obrigado a fazer a cada novo encontro, para voltar ao tom exato, eram tão adequadas a
um afinador ou a um professor de canto, como a um desenhista.
Quanto à harmoniosa coesão em que se neutralizavam já algum tempo, pela resistência
que cada uma opunha à expansão das demais, as diversas ondas de sentimento propagadas em
mim por essas moças, tudo se rompeu em favor de Albertine, numa tarde em que brincávamos de
passar anel. Era num pequeno bosque sobre a falésia. Colocado entre duas jovens estranhas ao
pequeno grupo e que minhas amigas haviam trazido porque nesse dia deveríamos ser bem
numerosos, eu olhava com inveja o vizinho de Albertine, um rapaz, dizendo comigo que, se
estivesse no seu lugar, poderia tocar as mãos da minha amiga naqueles minutos inesperadas que
talvez jamais voltassem e que tão longe poderiam me levar. Já o simples contato das mãos de
Albertine, e até sem pensar nas consequências que daí adviriam, me parecia delicioso. Não que
eu nunca tivesse visto mãos mais lindas que as suas. Até no grupo de suas amigas, as de Andrée,
delgadas e bem mais finas, tinham como que uma vida particular, dócil ao comando da moça, mas
independente, e muitas vezes se alongavam diante dela como nobres lebreus, com atitudes de
preguiça, de sonho profundo, e estiramentos bruscos de uma falange, devido aos quais Elstir
havia feito vários estudos dessas mãos. Num deles, via-se Andrée aquecendo-as ao fogo e,
diante da luz, elas mostravam a diafaneidade dourada de duas folhas de outono. Porém mais
grossas, as mãos de Albertine cediam um instante e depois resistiam à pressão da mão que as
apertava, transmitindo uma sensação toda particular. A pressão da mão de Albertine era dotada
de uma doçura sem igual bem em harmonia com a coloração rósea, ligeiramente malva, de sua
pele. Com essa pressão, parecia que a gente penetrava na moça, na profundidade de seus
sentidos, assim como na sonoridade do seu riso, indecente como um barulho sensual ou como
certos gritos. Era uma dessas mulheres a quem temos tão grande prazer em apertar a mão que
ficamos gratos à civilização por ter feito do shake-hand um ato permitido entre rapazes e moças
que se encontram. Se os costumes arbitrários de cortesia tivessem substituído esse aperto de
mãos por outro gesto, eu teria contemplado todos os dias as mãos intangíveis de Albertine, tão
ardentemente curioso de conhecer o seu contato, como o era de saber o gosto de suas faces.
Mas, no prazer de ter por muito tempo suas mãos entre as minhas, se tivesse sido o seu
vizinho no jogo do anel, eu tinha como objetivo um pouco mais que esse prazer: quantas
confissões, quantas declarações até hoje caladas por timidez, eu teria podido confiar a certas
pressões da mão; de sua parte, como lhe teria sido fácil demonstrar, com outras pressões de
mão, que me aceitava; que cumplicidade, que princípio de volúpia! Meu amor podia progredir mais
em alguns minutos assim passados ao lado dela do que desde que a conhecia. E não me
aguentava no lugar, pois via que aqueles minutos não durariam muito, estariam em breve
chegando ao fim, pois aquele joguinho certamente não continuaria por muito tempo, e tão logo
acabasse seria tarde demais. Deixei que me pegassem o anel de propósito e, uma vez no meio
da roda, fingia que não o via passar e o seguia com os olhos esperando o momento em que
chegasse às mãos do vizinho de Albertine; esta, rindo loucamente, estava toda cor-de-rosa na
animação e alegria do jogo.
- Estamos justamente no bosque bonito - disse-me Andrée, designando as árvores que nos
rodeavam, com um sorriso no olhar que era só para mim e parecia passar por cima dos jogadores
como se só nós dois fôssemos bastante inteligentes para nos desdobrarmos e fazer, a respeito do
jogo, uma observação de caráter poético. E ela chegou até a levar a delicadeza de espírito a
ponto de cantar, sem vontade, o "Ele passou por aqui, o furão do bosque, senhoras, passou por
aqui o furão do bosque bonito", como essas pessoas que não podem ir ao Trianon sem dar uma
festa estilo Luís XVI, ou que muitas vezes se divertem mandando cantar uma canção no mesmo
ambiente para o qual foi escrita. E ao contrário, sem dúvida, eu teria ficado triste por não achar
qualquer encanto na comparação proposta por Andrée, se tivesse tempo para pensar naquilo.
Mas estava bem longe o meu espírito. Jogadores e jogadoras começavam a se espantar com a
minha estupidez, e porque não pegava o anel. Eu contemplava Albertine tão bela, tão indiferente,
tão alegre que, sem o prever, ia ser minha vizinha, quando enfim pegasse o anel nas mãos
designadas, graças a uma manobra de que ela não suspeitava e que, se soubesse, muito a
irritaria. Na febre do jogo, os longos cabelos de Albertine tinham-se desfeito um pouco e, em
mechas encaracoladas, caíam-lhe pelo rosto, cuja rósea carnação ainda mais ressaltavam pela
sua negra secura.
- Você tem as tranças de Laura Dianti, de Éléonore de Guyenne e de sua descendente, tão
amada por Chateaubriand. Deveria usar sempre os cabelos meio caídos. - disse-lhe ao ouvido
para me aproximar dela.
De repente, o anel passou para o vizinho de Albertine. Imediatamente me lancei sobre ele,
brutalmente abri suas mãos, e peguei o anel; ele foi obrigado a ocupar meu posto no meio do
círculo e eu tomei o seu ao lado de Albertine. Poucos minutos antes, invejava o rapaz ao ver suas
mãos deslizando pelo barbante e encontrando a todo momento as de Albertine. Agora que
chegara a minha vez, muito tímido para procurar esse contato, muito emocionado para poder
desfrutá-lo, só conseguia sentir as batidas rápidas e dolorosas do coração. Num dado instante,
Albertine se inclinou para mim com um ar de inteligência, o rosto cheio e rosado, fingindo assim
que estava com o anel, a fim de enganar o furão e evitar que ele olhasse para o lado onde o anel
estava sendo passado. Compreendi logo que os subentendidos expressos no olhar de Albertine
se referiam àquela artimanha, mas perturbei-me ao ver assim passar em seus olhos a imagem,
puramente simulada para os propósitos do jogo, de um segredo, de uma combinação que não
existia entre nós dois, mas que desde então me pareceram possíveis e me seriam divinamente
gratificantes. Como esse pensamento me exaltasse, senti uma leve pressão da mão de Albertine
contra a minha, e seu dedo caricioso que deslizava por baixo do meu e vi que, ao mesmo tempo,
ela me piscava o olho, procurando fazê-lo imperceptivelmente. De súbito, uma multidão de
esperanças, até então invisíveis para mim mesmo, se cristalizaram:
"Ela aproveita o jogo para me demonstrar que me ama muito", pensei no auge de uma
alegria, da qual imediatamente despenquei ao ouvir Albertine me dizer com raiva:
- Mas pegue logo o anel, seu burro, faz uma hora que estou lhe passando.
Aturdido pela dor, larguei o barbante; o furão percebeu o anel, se atirou sobre ele e tive de voltar para o meio do círculo, desesperado, olhando a ronda desenfreada que continuava a meu redor, interpelado pelos gracejos de todas as jogadoras, obrigado, para lhes responder, a rir também quando tinha tão pouca vontade disso, enquanto Albertine não parava de dizer:
Aturdido pela dor, larguei o barbante; o furão percebeu o anel, se atirou sobre ele e tive de voltar para o meio do círculo, desesperado, olhando a ronda desenfreada que continuava a meu redor, interpelado pelos gracejos de todas as jogadoras, obrigado, para lhes responder, a rir também quando tinha tão pouca vontade disso, enquanto Albertine não parava de dizer:
- Não se deve jogar quando não se pode prestar atenção, para não fazer os outros
perderem. Ou a gente não o convida nos dias em que formos jogar, Andrée, ou sou eu que não
venho mais.
Andrée, superior ao jogo e que continuava cantando o seu "Bosque bonito", que
Rosemonde por espírito de imitação repetia sem qualquer convicção, quis desviar as censuras de
Albertine e me disse:
- Estamos a dois passos dos Creuniers que você tanto gostaria de ver. Venha, vou levá-lo
até lá por um belo caminho enquanto essas doidas bancam crianças de oito anos.
Como Andrée era extremamente gentil comigo, pelo caminho lhe fui dizendo de Albertine
tudo o que me parecia próprio para que esta me amasse. Andrée me respondeu que também
gostava muito dela, achava-a encantadora; entretanto, meus elogios à sua amiga davam-me a
impressão de não lhe causar nenhum prazer. De súbito, ao pequeno caminho vazio, parei, tocado
no coração por uma doce lembrança da meninice: acabava de reconhecer, nas folhas recortadas
e brilhantes que avançavam para a entrada dos Creuniers, uma moita de espinheiros-rosa sem
flor, infelizmente, desde o fim da primavera. Em torno a mim flutuava uma atmosfera de antigos
meses de Maria, de tardes de domingo, de crenças, de erros esquecidos. Desejaria apreendê-la.
Parei por um segundo e Andrée, com adivinhação encantadora, deixou-me conversar por um
instante com as folhas do arbusto. Pedi-lhe notícias das flores, aquelas flores de espinheiro-rosa
semelhantes a alegres moças estouvadas, coquetes e piedosas.
- Essas senhoritas já se foram há muito tempo. - diziam-me as folhas.
E talvez pensassem que, para o grande amigo delas que eu pretendia ser, não parecia de
modo algum informado sobre seus hábitos. Um grande amigo, mas que não as revia desde muitos
anos, apesar de suas promessas. E, no entanto, como Gilberte fora o meu primeiro amor por uma
menina, elas tinham sido o meu primeiro amor por uma flor.
- Sim, eu sei, elas vão embora em meados de junho. respondi -, mas tenho muito prazer
em ver o local onde elas moravam aqui. Foram me ver em Combray, no meu quarto, trazidas por
minha mãe quando eu estava doente. E nos encontrávamos aos sábados de tarde, no mês de
Maria. Aqui elas podem ir às novenas?
- Oh, naturalmente! Aliás gostam muito dessas senhoritas na igreja de Saint-Denis-du
Désert, que é a paróquia mais próxima.
- E como fazer agora para vê-las?
- Ora, não antes do mês de maio do ano que vem.
- Mas posso estar certo de que elas estarão lá?
- Regularmente todos os anos.
- Só não sei se encontrarei o lugar.
- Como não!? Essas senhoritas são tão alegres; elas só param de rir para entoar cânticos,
de modo que não é possível a gente se enganar e, na beira do caminho, você reconhecerá o seu
aroma.
Voltei para junto de Andrée e recomecei a lhe fazer elogios acerca de Albertine. Parecia
me impossível que ela não os fosse transmitir a Albertine, tamanha era a minha insistência. E, no
entanto, jamais soube que Albertine tomasse conhecimento deles. Todavia, Andrée possuía mais
conhecimento em assuntos do coração do que ela, e maior refinamento na gentileza; descobrir o
olhar, a palavra, a ação que mais engenhosamente pudessem dar prazer, calar uma reflexão que
arriscasse magoar, fazer o sacrifício (e sem parecer que era um sacrifício) de uma hora de jogo, e
até de uma reunião matinal, de um garden-party, para ficar junto de um amigo ou de uma amiga
triste e lhe mostrar assim que preferia sua simples companhia a prazeres frívolos, tais eram as
suas delicadezas habituais. Mas, depois que a gente a conhecia um pouco melhor, dir-se-ia que
com ela se dava o mesmo que ocorria com esses covardes heroicos que não querem ter medo e
cuja bravura é particularmente meritória; dir-se-ia que, no fundo de sua natureza, não havia nada
daquela bondade que ela manifestava a todo instante por distinção moral, por sensibilidade, por
vontade nobre de se mostrar boa amiga. Ao ouvir as coisas encantadoras que ela me dizia acerca
de uma possível afeição entre mim e Albertine, parecia que ela iria trabalhar com todas as suas
forças para realizá-la. Ora, talvez por acaso, nunca se utilizou do menor dos nadas de que
dispunha e que poderiam unir-me a Albertine, e eu não juraria que meus esforços para ser amado
por Albertine não tenham provocado, de sua amiga, manobras secretas destinadas a contrariá-los,
mas despertado nela uma cólera aliás bem oculta e contra a qual talvez lutasse ela própria por
delicadeza. Albertine seria incapaz dos mil refinamentos de bondade de Andrée, e no entanto eu
não estava certo da bondade profunda desta última como o fiquei mais tarde da bondade da
primeira. Sempre se mostrando indulgente para com a exuberante frivolidade de Albertine, Andrée
tinha para ela palavras e sorrisos que eram de amiga, e mais, agia como amiga. Eu a vi, dia após
dia, para fazê-la aproveitar o seu luxo, tornar feliz essa amiga pobre, ter, sem nenhum interesse,
mais trabalho que um cortesão que deseja captar o favor do soberano. Era encantadora de
doçura, de palavras tristes e carinhosas, quando lamentavam diante dela a pobreza de Albertine,
e esforçava-se mil vezes mais por ela do que o faria por uma amiga rica. Mas, se alguém
suspeitasse que Albertine não era tão pobre como diziam, uma nuvem mal perceptível velava
afronte e os olhos de Andrée; ela parecia de mau humor. E se iam ao ponto de dizer que afinal
não tivesse tanta dificuldade de casar como pensavam, Andrée protestava com veemência e
repetia quase com raiva:
-Oh, ela não poderá casar, bem sei. E isso me dá muita pena!
Mesmo no que me dizia respeito, ela era a única das moças que jamais me repetiria algo
desagradável que tivessem dito de mim; mais ainda, se era eu mesmo quem o contasse a ela,
dava a impressão de não acreditar ou vinha com uma explicação que tornava inofensiva a frase. É
o conjunto dessas qualidades a que se denomina tato. É o apanágio das pessoas que, se vamos
ao campo da honra, nos felicitam e acrescentam que não havia razão para um duelo, a fim de
aumentar ainda mais aos nossos olhos a coragem de que demos prova, sem a isso ser
constrangidos. São o oposto das pessoas que, nas mesmas circunstâncias, afirmam:
- Deve ser bastante aborrecido para você bater-se em duelo, mas por outro lado você não
podia engolir essa afronta, não podia proceder de outra maneira.
Mas, como em tudo há prós e contras, se o prazer ou pelo menos a indiferença de nossos
amigos em nos repetir algo de ofensivo que foi dito a nosso respeito prova que absolutamente não
se colocam na nossa pele no momento em que nos falam, e enfiam-lhe o alfinete ou a faca como
numa bexiga, a arte de nos ocultar sempre o que pode ser desagradável no que ouviram dizer de
nossos atos ou da opinião que estes lhes inspiraram, pode provar, em outra categoria de amigos,
a dos amigos cheios de tato, uma forte dose de dissimulação. Não há inconveniente se, de fato,
não podem pensar mal de nós e se o que lhes é dito os faz apenas sofrer, como a nós mesmos.
Achava que este era o caso de Andrée, sem contudo estar absolutamente certo disso.
Deixáramos o bosquezinho e seguíamos por um emaranhado de veredas muito pouco
freqüentadas que Andrée conhecia perfeitamente bem.
- Olhe - disse ela de repente, eis os seus famosos Creuniers. E você ainda tem muita sorte,
pois estão exatamente na hora e na luz em que Elstir os pintou.
Mas eu ainda estava muito triste por haver caído, no jogo do anel, de tão alto apogeu de
esperanças. Portanto, não foi com o prazer que certamente teria sentido em outras circunstâncias
que pude distinguir de súbito a meus pés, agachadas contra as rochas onde se protegiam do
calor, as Deusas marinhas que Elstir espiara e surpreendera, sob uma sombria transparência tão
bela como o teria sido a um Leonardo, as maravilhosas Sombras escondidas e furtivas, ágeis e
silenciosas, prestes a escorregar pelas pedras ao primeiro remoinho de luz, a se ocultar num
buraco e prontas, passada a ameaça do raio luminoso, a voltar para junto do rochedo ou da alga,
sob o sol esfarelador das falésias e do Oceano descolorido, cuja modorra parecem velar, guardiãs
imóveis e leves, deixando aparecer à flor d'água o seu corpo viscoso e o olhar atento dos olhos
fundos.
continua na página 218...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - x)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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