sexta-feira, 2 de maio de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - w)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(w)

continuando...

      Citei as sombrinhas de várias mulheres, mas não era nada disso. Elstir achava horríveis tais sombrinhas. Homem de gosto difícil e requintado, fazia consistirem um nada, que era tudo, a diferença entre o que usavam três quartas partes das mulheres, e que lhe causava horror, e uma coisa linda que o deslumbrava; e ao contrário do que sucedia comigo, para, quem todo luxo era esterilizante, aquilo lhe exaltava o desejo de pintar, "para tentar fazer coisas tão bonitas".

-Olhe, aí está uma menina que já compreendeu como eram o chapéu e a sombrinha. Disse-me Elstir indicando Albertine, cujos olhos brilhavam de cobiça. 
- Como gostaria de ser rica para ter um iate! - disse ela ao pintor. - Eu lhe pediria conselhos para arrumá-lo. Que belas viagens poderia fazer! E como seria lindo ir às regatas de Cowes! E um automóvel! Não acha lindas as modas femininas para automóveis? 
- Não. - respondeu Elstir - mas um dia serão. Aliás, há poucos costureiros, um ou dois; Callot, embora abuse um pouco das rendas, Doucet, Cheruit, às vezes Paquin. Os restantes são uns horrores. 
- Mas então, há uma enorme diferença entre uma toalete de Callot e a de um costureiro qualquer? - perguntei à Albertine. 
- Mas imensa, seu bobo. - respondeu ela. - Oh, perdão. Infelizmente, aquilo que custa trezentos francos em qualquer outro lugar, custa dois mil francos no estabelecimento deles. Mas nem há comparação; só parecem idênticos para quem não entende do riscado.
- Perfeitamente. - concordou Elstir - sem que se possa dizer, entretanto, que a diferença seja tão profunda como a que existe entre uma estátua da catedral de Reims e da igreja de Saint Augustin. Olhe, a propósito de catedrais - disse ele dirigindo-se especialmente a mim, pois aquilo se referia a uma conversa da qual as moças não tinham participado e que, de resto, não as teria interessado de forma alguma -, outro dia eu lhe falava da igreja de Balbec como de uma grande falésia, um grande montão de pedras da região, mais inversamente - disse ele, mostrando-me uma aquarela-; olhe estes rochedos (era um esboço feito muito perto daqui, nos Creuniers) -, olhe como estas rochas, delicadas e poderosamente recortadas, fazem pensar numa catedral. - De fato, dir-se-iam imensos arcos de abóbada cor-de-rosa. Mas pintados num dia tórrido, pareciam reduzidos a pó, volatilizados pelo calor, o qual havia bebido a meio o mar, que quase passara, em toda a extensão da tela, ao estado gasoso.

     Naquele dia, em que a luz como que destruíra a realidade, esta se concentrara em criaturas sombrias e transparentes que, por contraste, davam uma impressão mais próxima e mais impressionante de vida: as sombras. Sequiosas de frescor, a maior parte desertando o largo inflamado, se haviam refugiado ao sopé dos rochedos, ao abrigo do sol; outras, nadando devagar nas águas como golfinhos, se chegavam aos flancos dos barcos em passeio, cujos cascos alargavam, sobre a água pálida, com seu corpo brunido e azul. Era talvez a avidez do frescor comunicada por elas o que mais contribuía para a sensação de calor desse dia e que me fez exclamar o quanto lamentava não conhecer os Creuniers. Albertine e Andrée asseguraram que eu deveria ter ido ali umas cem vezes. Nesse caso, era sem o saber, sem desconfiar que um dia a sua vista poderia me inspirar uma tal sede de beleza, não propriamente natural, como a que eu havia procurado até aqui nas falésias de Balbec, mas sim arquitetônica. Sobretudo eu que, tendo partido para ver o reino das tempestades, nunca achava, nos meus passeios com a Sra. Villeparisis onde muitas vezes só o víamos de longe, pintado no intervalo das árvores, bastante real o oceano, suficientemente líquido, vivo, que desse forte impressão de lançar suas massas de água, e que só gostaria de ver imóvel sob um lençol invernal de bruma não poderia de jeito nenhum acreditar que sonhasse agora com um mar que não passava de um vapor esbranquiçado e que perdera a consistência e a cor. Mas este mar, Elstir, como os que sonhavam nesses barcos entorpecidos pelo calor, lhe havia provado a tamanha profundidade o encantamento que soubera transportar, fixar na tela o imperceptível refluxo da água, a pulsação de um minuto feliz; e de súbito a gente ficava de tal forma enamorado, ao ver o quadro mágico, que não tinha pensamento senão para correr mundo, a fim de encontrar aquele dia que se fora, com toda sua graça instantânea e sossegada.
      De modo que, se antes dessas visitas à casa de Elstir, antes de ter visto uma tal marinha dele em que uma jovem com vestido de cambraia ou barege, num iate que arvorava a bandeira americana, punha o "duplo" espiritual de um vestido branco de cambraia e de uma bandeira na minha imaginação que, imediatamente, foi movida por um desejo insaciável de ver logo vestidos brancos de cambraia e bandeiras junto ao mar, como se aquilo nunca me houvesse ocorrido antes eu sempre me esforçara, diante do mar, para expulsar do campo da minha visão os banhistas do primeiro plano, os iates de velas demasiado brancas como um traje de banho, tudo o que me impedia de me convencer que contemplava a onda imemorial que já desdobrava sua vida misteriosa mesmo antes do aparecimento da espécie humana; e até os dias radiosos que me pareciam revestir do aspecto banal do verão universal essa costa de brumas e de tempestades, eram apenas um simples tempo de repouso, o que em música se denomina compasso de espera, enquanto, agora, era o mau tempo que se me afigurava tornar-se um acidente funesto, não mais podendo encontrar espaço no mundo da beleza; vivamente desejava ir achar na realidade aquilo que me exaltava com tanta força e esperava que o tempo seria suficientemente favorável para ver, do alto do rochedo, as mesmas sombras azuis que havia no quadro de Elstir.
     Ao longo da estrada, já não protegia a vista com as mãos como naqueles dias em que, concebendo a natureza como animada de uma vida anterior ao aparecimento do homem e em oposição a todos os aborrecidos aperfeiçoamentos da indústria, que até agora me haviam feito bocejar de tédio nas exposições universais ou nas lojas das modistas; em que tentava ver do mar apenas a seção em que não houvesse barcos a vapor, de maneira a me representá-lo como se fosse imemorial, ainda contemporâneo das eras em que fora separado da terra, pelo menos contemporâneo dos primeiros séculos da Grécia, o que me permitia repetir com veracidade os versos do "pai Leconte", tão caros a Bloch:

''Partiram já os reis das naves agressivas, 
Levando, é pena, pelo mar tempestuoso, 
Da heróica Hélade os homens cabeludos.''

      Eu não podia mais desprezar as modistas, visto que Elstir me dissera que o gesto delicado com que fazem a última prega, uma suprema carícia aos nós ou às plumas de um chapéu já acabado, lhe interessaria tanto desenhá-lo como as posturas do jóqueis (o que deixou Albertine encantada). Mas, no que dizia respeito às modistas, era forçoso esperar o meu regresso a Paris, e quanto às corridas e às regatas, a minha volta a Balbec no ano seguinte. Até mesmo um iate que levasse mulheres vestidas de alva cambraia era inencontrável.
      Muitas vezes encontrávamos as irmãs de Bloch, que eu era obrigado a cumprimentar desde que jantara em casa de seus pais. Minhas amigas não as conheciam.

- Não tenho permissão para brincar com israelitas. - dizia Albertine.

     O modo como ela pronunciava a palavra, "issraelita" em vez de "izraelita", teria bastado para indicar, mesmo que não se ouvisse o começo da frase a seguir, que não eram sentimentos de simpatia em relação ao povo eleito o que animava essas jovens burguesas, de famílias devotas, e que deviam facilmente acreditar que os judeus degolavam as crianças cristãs.

- Além disso, que gente suja essas suas amigas. - dizia Andrée com um sorriso que significava que sabia muito bem que não eram minhas amigas. 
- Como tudo o que se refere à tribo - retrucava Albertine, no tom sentencioso de uma pessoa experiente.

     Para falar a verdade, as irmãs de Bloch, ao mesmo tempo muito vestidas e meio nuas, de ar lânguido, aspecto atrevido, faustoso e imundo, não produziam propriamente uma boa impressão. E uma de suas primas, de quinze anos apenas, escandalizava o cassino pela admiração que mostrava pela Srta. Léa, cujo talento de atriz Bloch pai prezava muito, embora não se pudesse censurá-lo como à sobrinha, pois não era tido por inclinar-se de preferência pelos homens.
      Em certos dias merendávamos em alguma das granjas-restaurantes que havia pelas redondezas. Eram estabelecimentos chamados de Ecorres, Maria-Thérese, Croix-d'Heuland, Bagatelle, Californie, Marie-Antoinette. Esta última é que fora adotada pelo pequeno grupo das moças.
     Porém às vezes, em lugar de ir para uma granja, subíamos até o alto da falésia e, logo ao chegar, sentados na grama, desfazíamos os embrulhos de sanduíches e de doces. Minhas amigas preferiam os sanduíches e se espantavam de me ver comer somente um doce de chocolate, goticamente enfeitado de açúcar, ou uma torta de damasco.
     É que eu não tinha nada a dizer aos sanduíches de queijo e de salada, iguaria nova e ignorante. Mas os doces eram instruídos, as tortas tagarelas. Nos primeiros havia velhos sabores de creme, e nas segundas frescores de frutas que muito sabiam acerca de Combray, de Gilberte, não só sobre a Gilberte de Combray, mas sobre a de Paris, em cujos lanches eu as havia encontrado. Elas me relembravam os pratos de sobremesa com bolinhos, das Mil e Uma Noites, que tanto distraíam a tia Léonie com seus "assuntos", quando Françoise lhe levava um dia, Aladim ou a Lâmpada Maravilhosa, outro dia, Ali Babá, o Dorminhoco Acordado, ou Simbad, o marujo embarcando em Baçorá com todas as suas riquezas. Muito me alegraria revê-los, mas minha avó não sabia aonde tinham ido parar e, aliás, imaginava que fossem pratos vulgares comprados na região. Não importa; na melancólica e champanhesa Combray as suas vinhetas se engastavam, multicores, como na escura igreja os vitrais de pedrarias cambiantes, como no crepúsculo do meu quarto as projeções da lanterna mágica, como diante da estação e da estrada de ferro do departamento os botões de ouro da Índia e os lilases da Pérsia, como a coleção de porcelanas chinesas antigas da minha tia em sua casa sombria de velha dama provinciana.
      Estendido sobre o rochedo, só via diante de mim alguns prados e, acima deles, não os sete céus da física cristã, mas a superposição de apenas dois: um mais carregado - o mar- e, ao alto, outro mais pálido. Comíamos e, se eu também tivesse trazido, para dar de presente, uma lembrancinha que agradasse a uma ou outra de minhas amigas, a alegria ocupava com tamanha e súbita violência o seu rosto translúcido, que num instante se fazia vermelho, que sua boca não a podia conter e para deixá-la sair, rebentava em riso. Estavam juntas a meu redor e, entre seus rostos, pouco afastados uns dos outros, o ar que as separava abria caminhos de azul como que traçados por um jardineiro que quisesse obter um pouco de espaço para ele próprio circular no meio de um bosque de rosas.  
     Esgotadas nossas provisões, brincávamos de jogos que até ali me haviam parecido tediosos, às vezes tão infantis como "a torre de guarda" ou "aquele que rir primeiro", mas dos quais agora não abriria mão nem por um império; a aurora da juventude, que ainda coloria o rosto dessas moças, e que já não me atingia na minha idade, iluminava tudo diante delas e, como a pintura fluida de certos primitivos, fazia ressaltar os mais insignificantes detalhes de suas vidas sobre um fundo de ouro. Em sua maioria, os rostos das jovens estavam confundidos naquele arreboi indeciso da aurora, de onde ainda não tinham surgido suas verdadeiras feições. Só se via uma cor admirável sob a qual não se discernia o que deveria ser o perfil dentro de alguns anos. O de hoje não apresentava nada de definitivo e bem podia ser apenas uma semelhança momentânea com um membro defunto da família, a quem a natureza quisera prestar essa cortesia comemorativa. Vem tão depressa o momento em que já não temos o que esperar, em que o corpo se fixa numa imobilidade que não promete mais surpresas, quando se perde toda a esperança ao ver, como as folhas já mortas nas árvores em pleno verão, como caem ou embranquecem os cabelos em pessoas ainda jovens; é tão curta essa manhã radiosa que acabamos por amar somente as mocinhas muito jovens, essas em quem a carne, como uma pasta preciosa, encontra-se ainda em pleno desenvolvimento. Elas não passam de uma onda de matéria dúctil, a todo instante trabalhada pela impressão passageira que as domina. Dir-se-ia que cada uma é sucessivamente uma estatueta da alegria, da seriedade juvenil, da carícia, do espanto, modelada por uma expressão franca, repleta, fugitiva. Essa plasticidade confere muita variedade e encanto aos cuidados gentis que uma adolescente mostra para conosco. Certo, são também indispensáveis na mulher adulta, e aquela a quem não agradamos, ou que não nos deixa ver que a agradamos, assume a nossos olhos algo de tediosamente uniforme. Mas tais atenções, a partir de uma certa idade, já não trazem suaves flutuações a um rosto que as lutas da existência endureceram e tomaram para sempre militante ou estático. Um pela força contínua da obediência que submete a esposa a seu marido parece, antes que de uma mulher, o rosto de um soldado; o outro, esculpido pelos sacrifícios que dia após dia fez a mãe pelos filhos, é o de um apóstolo; ainda outro é, depois de anos de reveses e tempestades, o de um velho lobo-do-mar, numa mulher de quem somente as roupas revelam o sexo.
     E, decerto, as atenções que uma mulher tem para conosco podem ainda, quando a amamos, encher de encantos novos as horas que passamos junto dela. Mas ela não é para nós, sucessivamente, uma mulher diversa. Sua alegria permanece exterior a um rosto imutável. Mas a adolescência é anterior à consolidação completa, e daí decorre que a gente experimenta, ao lado das mocinhas, esse refrigério que inspira o espetáculo das formas em constante mutação, brincando numa oposição instável que lembra a perpétua recriação de elementos primordiais da natureza que contemplamos diante do mar.
      Não era apenas uma reunião social matutina, um passeio com a Sra. de Villeparisis o que eu teria sacrificado ao "jogo do anel" ou às "adivinhas" das minhas amigas.
     Saint-Loup me mandara dizer várias vezes que, já que não ia visitá-lo em Doncieres, pedira uma licença de 24 horas e iria passá-la em Balbec. E eu lhe escrevia sempre que não viesse, dando como pretexto o fato de ser obrigado a me ausentar, justo naquele dia, para cumprir uma visita de obrigação de família com minha avó. Sem dúvida pensou muito mal de mim ao saber pela tia em que consistia o tal dever de família e quais as pessoas que, no caso, faziam o papel de minha avó. E, todavia, eu talvez não agisse mal em sacrificar não só os prazeres do mundanismo, mas até da amizade, ao de passar o dia inteiro naquele jardim.
     As criaturas que têm a possibilidade de viver para si mesmas- é verdade que se trata de artistas, e eu, há muito, estava convencido de que nunca o seria - têm igualmente o dever de viver por si mesmas; ora, a amizade significa para elas uma dispensa desse dever, uma abdicação de si próprias. Até a conversação, que é a forma de expressão da amizade, não passa de uma divagação superficial, que não nos faz adquirir coisa alguma. Podemos conversar durante a vida inteira sem dizer nada senão repetir indefinidamente o vazio de um minuto, ao passo que a marcha do pensamento no trabalho solitário de criação artística se faz no sentido da profundidade, a única direção que não nos é fechada, onde poderíamos progredir, claro que com mais sofrimento, para obter uma verdade. E a amizade não é apenas destituída de virtudes, como a conversa; ela é, ademais, funesta. Pois a impressão de tédio que não podem deixar de sentir junto do amigo, isto é, de permanecer na superfície de si mesmos em vez de prosseguir sua viagem de descobertas nas profundezas, aqueles em que a lei de desenvolvimento é puramente interna, essa impressão de tédio a amizade nos persuade a retificá-la quando nos achamos a sós, a recordar com emoção as palavras que o nosso amigo pronunciou, a considerá-las um dom precioso, já que não somos feito construções às quais se pode ajuntar pedras de fora, e sim feito árvores que extraem da própria seiva o nó seguinte do seu caule, o estádio superior de sua fronte. Estava mentindo a mim mesmo, interrompia o crescimento no sentido em que podia de fato crescer de verdade e ser feliz, quando me congratulava de ser estimado e admirado por uma criatura tão boa, tão inteligente, tão solicitada como Saint-Loup, quando adaptava minha inteligência, não às minhas próprias impressões obscuras, que seria obrigação minha destrinçar, mas às palavras de meu amigo, pois repetindo-as; fazendo com que me fossem repetidas por esse outro eu que vive em nós e no qual descarregamos com alívio o encargo de pensar esforçava-me por achar uma beleza, bem diversa da que perseguia em silêncio quando estava efetivamente só, mas que conferiria mais mérito a Robert, a mim mesmo, à minha vida. Na vida que um tal amigo me proporcionava, eu surgia a mim mesmo como cuidadosamente preservado da solidão, nobremente desejoso de me sacrificar por ele; em suma, incapaz de me realizar. Ao contrário, junto dessas moças, se o prazer de que desfrutava era egoísta, ao menos não se baseava na mentira que busca nos fazer acreditar que não estamos irremediavelmente sós e que, quando conversamos com outros, nos impede de reconhecer que já não somos nós que falamos, que então nos modelamos à semelhança dos estranhos e não de um eu que difere deles. As palavras trocadas entre mim e as moças do pequeno grupo eram de escasso interesse, aliás raras, cortadas de minha parte por longos silêncios.
     Isto não me impedia de sentir, quando me falavam, tanto prazer em escutá-las como de as contemplar, descobrir na voz de cada uma um quadro vivamente colorido. Era deliciado que escutava o seu gorjeio. Amar auxilia a discernir, a diferenciar. Num bosque, o amador de pássaros distingue logo esse chilrear privativo de cada ave, que o vulgo confunde. O amador de moças sabe que as vozes humanas são ainda bem mais variadas. Cada uma possui mais notas que o mais rico instrumento. E as combinações segundo as quais ele as agrupa são tão inesgotáveis quanto a variedade infinita das personalidades. Quando conversava com uma de minhas amigas, percebia que o quadro original, único, de sua individualidade era-me engenhosamente desenhado, tiranicamente imposto, tanto pelas reflexões de sua voz como pelas de seu rosto, formando dois espetáculos que traduziam, cada qual em seu plano, a mesma realidade singular. Sem dúvida, as linhas da voz, como as da fisionomia, ainda não estavam fixadas em definitivo; a primeira ainda mudaria bem como mudaria a segunda. Assim como as crianças possuem uma glândula cujo líqüido as ajuda a digerir o leite, e que deixa de existir no adulto, havia no chilreio dessas jovens, certas notas que as mulheres não têm mais. E, nesse instrumento mais variado, elas tocavam com os lábios, com aquela aplicação, aquele ardor dos anjinhos músicos de Bellini, os quais também são um apanágio exclusivo da juventude. Mais tarde, essas jovens perderiam esse acento de convicção entusiasta que dava encanto às coisas mais simples, fosse porque Albertine, num tom autoritário, fizesse trocadilhos que as mais jovens escutavam com admiração até que o riso louco tomasse conta delas com a violência irresistível de um espirro, fosse porque Andrée se pusesse a falar de seus trabalhos escolares, mais infantis ainda que seus jogos, com uma gravidade essencialmente pueril; e as palavras delas ressoavam, semelhantes a essas estrofes dos tempos antigos onde a poesia, ainda pouco diferenciada da música, se declamava em notas diferentes. Apesar de tudo, a voz dessas moças acusava já, com nitidez, a maneira que cada uma tinha de encarar a vida, tão individual que seria generalizar demais dizer de uma: 

"ela leva tudo na brincadeira", ou de outra: 
"ela vai de afirmação em afirmação"; e de uma terceira: 
"ela se detém numa dúvida expectante". 

     Os traços do nosso rosto são quase só gestos tornados definitivos pelo hábito. A natureza, como a catástrofe de Pompéia, como uma metamorfose de ninfa, nos imobilizou no movimento de costume. Da mesma forma, nossas entonações contêm nossa filosofia de vida, aquilo que a pessoa diz a si mesma a todo instante acerca das coisas. É claro que esses traços não eram somente das moças. Pertenciam a seus pais. O indivíduo banha-se em algo mais geral que ele próprio. Desse modo, os pais não fornecem apenas esse gesto habitual que são os traços do rosto e da voz, mas também certas maneiras de falar, certas frases consagradas, que, quase tão inconscientes quanto uma entonação, quase tão profundas, indicam, como ela, uma forma de encarar a vida. É verdade que, quanto às moças, há determinadas expressões que seus pais não lhes dão antes de uma certa idade, em geral não antes que se tornem mulheres. São guardadas em reserva. Assim, por exemplo, se o assunto eram os quadros de um amigo de Elstir, Andrée, que ainda usava cabelos soltos nas costas, não podia fazer pessoalmente uso da expressão empregada por sua mãe e sua irmã casada:

"Parece que o homem é encantador."

     Mas isto acabaria acontecendo com a permissão para ir ao Palais-Royal. E, já desde a primeira comunhão, Albertine dizia, como uma amiga de sua tia:

"Isso me pareceria atroz."

     Tinham-lhe dado também de presente o costume de repetir o que lhe diziam, a fim de dar a impressão de que se interessava e que procurava formar opinião própria. Se diziam que a pintura de um artista era boa ou que sua casa era linda:

"Ah, é boa a pintura?" "Ah, é linda a casa?"

     Enfim, mais geral ainda que o legado familiar, era a matéria saborosa imposta pela província de origem, de onde elas tiravam a sua voz, e a mesma a que se ligavam as suas entonações. Quando Andrée extraía secamente uma nota grave, não podia fazer com que a nota perigordense do seu instrumento vocal desse um forte som cantante, aliás muito em harmonia com a pureza meridional de suas feições; e às perpétuas gaiatices de Rosemonde respondiam a qualidade de sua fisionomia e as inflexões de sua voz do Norte com o sotaque de sua província. Entre essa província e o temperamento da moça, que ditava as inflexões, eu percebia um belo diálogo. Diálogo, não discórdia. Ninguém teria sido capaz de separar a moça de sua terra natal. Uma era a outra, ainda. De resto, tal reação dos materiais locais sobre o engenho que os utiliza e ao qual emprestam mais verdor, não torna menos individual a obra, e, seja a de um arquiteto, de um ebanista ou de um músico, não reflete com menor minúcia os traços mais sutis da personalidade do artista, porque este foi obrigado a trabalhar na pedra molar de Senlis ou na greda vermelha de Estrasburgo, mesmo que respeite os nós peculiares do freixo, ou que tenha considerado, na escrita, os recursos e os limites da sonoridade, as possibilidades da flauta ou da violeta.
      Tudo isto eu percebia e, no entanto, conversávamos tão pouco! Ao passo que, com a Sra. de Villeparisis ou com Saint-Loup, teria demonstrado por minhas palavras muito mais prazer do que de fato sentia, pois, ao deixá-los, estava fatigado; ao contrário, deitado entre essas moças, a plenitude do que eu sentia em muito ultrapassava a pobreza e a escassez de nossas frases e transbordava dos limites da minha imobilidade e do meu silêncio em ondas de ventura, cujo marulhar vinha morrer aos pés daquelas jovens rosas.
      Para um convalescente que repousa o dia inteiro num jardim ou num pomar, um aroma de flores e de frutos não impregna mais profundamente as mil e uma ninharias de que se compõe o seu farniente do que, para mim, aquela cor, aquele aroma que meus olhos iam buscar nessas jovens e cuja doçura acabava por se incorporar a mim. Assim as uvas se adoçam ao sol. E, por sua lenta continuidade, aqueles jogos tão simples também tinham determinado em mim, como ocorre com as pessoas que não fazem outra coisa senão ficar estendidas à beira-mar, respirando o sal e bronzeando-se, um alívio, um sorriso beatífico, um vago deslumbramento que me chegara até os olhos.
     Às vezes uma gentileza desta ou daquela despertava em mim amplas vibrações que afastavam por algum tempo o desejo pelas outras. Assim, um dia, Albertine indagara:

- Quem tem um lápis? 

     Andrée dera-o, Rosemonde forneceu o papel, Albertine lhes dissera: 

- Meninas, é proibido ver o que estou escrevendo. 

     E, depois de cuidar muito em fazer a letra clara, com o papel apoiado nos joelhos, ela o passara a mim, dizendo:

- Cuidado para que ninguém veja.

     Então o desdobrei e li as palavras que me escrevera: 

- Amo-te muito. 

     Mas, em vez de escrever asneiras gritou, voltando-se com ar subitamente impetuoso e grave para Andrée e Rosemonde.

- É preciso que lhes mostre a carta que Gisele me escreveu esta manhã. Estou doida; tenho a carta aqui no bolso, e dizer que isto nos poderá ser útil!  
 
continua na página 212...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - w)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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