sexta-feira, 2 de maio de 2025

A Montanha Mágica - Liberdade

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

Liberdade

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     Quais eram, afinal, as impressões do jovem Hans Castorp? Parecia-lhe que as sete semanas que ele, comprovada e indubitavelmente, acabava de passar ali em cima não eram mais que sete dias? Ou parecia-lhe, pelo contrário, que já vivia nesse lugar havia muito, mas muito mais tempo do que em realidade se passara? Ele mesmo ventilava esse problema, tanto de si para si, como também interpelando Joachim, sem, no entanto, chegar a resolver a questão. Uma coisa e outra, provavelmente, eram verdade: ao seu olhar retrospectivo, o tempo ali passado afigurava-se tanto excessivamente longo como excessivamente breve. Um único aspecto desse tempo, entretanto, escapava-lhe sempre: sua duração real – admitindo-se ser o tempo um fenômeno natural e ser lícito relacionar com ele o conceito da realidade. 
     Fosse como fosse, o mês de outubro estava prestes a começar; podia chegar a qualquer instante. Era fácil para Hans Castorp fazer as contas; além do mais, as conversas dos seus companheiros de enfermidade, que escutava por acaso, chamavam-lhe a atenção sobre esse fato. – Vocês sabem que daqui a cinco dias será novamente o fim do mês? – ouviu Hermine Kleefeld dizer, dirigindo-se a dois rapazes da sua turma, o estudante Rasmussen e aquele indivíduo beiçudo, de nome Gänser. Estavam tagarelando depois da refeição principal, entre as mesas, por cima das quais pairava um cheiro de comida. Ainda hesitavam em se recolher e em começar o repouso. – Primeiro de outubro – continuou a moça. – Eu mesma vi na folhinha do escritório. É o segundo da mesma espécie que passo neste oásis de prazer. Bem, acabou-se o verão, se é que tivemos verão. A gente sente-se roubada, como nos roubaram a vida, sob todos os pontos de vista. – E soltou um suspiro do seu meio pulmão, sacudindo a cabeça e fitando o teto com os olhos velados pela estupidez. – Ânimo, Rasmussen! – acrescentou, dando uma palmada no ombro caído do companheiro. – Conte-nos algumas anedotas! 

- Sei muito poucas – replicou Rasmussen, com as mãos pendentes como barbatanas, à altura do peito. – E não consigo contá-las bem, estou sempre muito cansado.  
– Nem um cachorro – murmurou Gänser entre dentes – gostaria de viver assim, ou de um modo semelhante, por muito tempo. – E todos riram, dando de ombros. 

     Também Settembrini, com seu palito entre os lábios, andava por perto, e ao saírem disse a Hans Castorp:

– Não lhes dê crédito, engenheiro. Nunca lhes dê crédito quando resmungam. Todos o fazem, sem exceção, se bem que se sintam aqui como em casa, mais do que em casa, mais do que lhes convém. Levam uma vida de vadios e ainda exigem compaixão. Julgam-se com o direito de serem amargos, irônicos, cínicos. “Neste oásis de prazer!” Acaso não é isto um oásis de prazer? A mim, parece-me que é, e isso no sentido mais equívoco da palavra. “Roubada”, disse essa fêmea, “roubaram-me a vida neste oásis de prazer!” Mas dê-lhe alta e mande-a para a planície, e a vida que ela levará lá embaixo manifestará apenas uma única coisa: seu ardente desejo de voltar para cá o mais depressa possível. Sim, senhor, a ironia! Acautele-se com o tipo de ironia que cultivam aqui, meu caro engenheiro! Acautele-se, em geral, com essa atitude de espírito! Onde ela não é um meio correto e clássico da eloquência, perfeitamente compreensível a qualquer intelecto sadio, chega a ser licenciosidade, torna-se um obstáculo à civilização, um namorico escabroso com a estagnação, com o vício, com o oposto do espírito. Uma vez que a atmosfera em que vivemos favorece altamente o desenvolvimento dessa flor dos pântanos, posso esperar ou devo até temer que o senhor me compreenda. 

     Com efeito, as palavras do italiano eram de tal gênero que, se Hans Castorp as tivesse ouvido seis semanas antes na “planície”, teriam representado para ele sons vazios de significado. Mas a permanência ali em cima fizera-lhe o espírito mais receptivo; receptivo no sentido de uma compreensão intelectual, sem implicar ao mesmo tempo o da simpatia, o que talvez seja ainda mais significativo. Sentia-se intimamente satisfeito, porque Settembrini, depois de tudo o que acontecera, ainda continuava falando com ele à sua maneira, continuava dando-lhe instruções e advertências e procurava influenciá-lo; e todavia a sua receptividade intelectual se refinara de tal modo, que era capaz de formar uma opinião acerca das palavras do italiano e negar-lhes, pelo menos até certo ponto, a sua aprovação. “Imaginem”, disse de si para si, “ele fala da ironia quase da mesma forma como da música. Só falta que a chame de ‘politicamente suspeita’, a partir do momento em que ela deixe de ser ‘um meio de ensino correto e clássico’. Mas uma ironia que em nenhum instante desse lugar e equívocos – que ironia seria essa? – pergunto eu, uma vez que se trata de dar a minha opinião. Seria árida e cheiraria a mestre-escola!” Eis a ingratidão da juventude em formação! Aceita presentes, para logo criticar-lhes os defeitos.
     No entanto, achava muito arriscado expressar essas suas ideias recalcitrantes. Limitou suas objeções ao juízo que o Sr. Settembrini fizera de Hermine Kleefeld, juízo que lhe parecia injusto ou que, por certos motivos, queria que fosse tal.

– Mas essa moça está enferma – disse –, está, realmente e fora de dúvida, muito doente e tem toda a razão de se desesperar. Que quer o senhor que ela faça? 
– A doença e o desespero – retrucou Settembrini – são muitas vezes apenas formas da licenciosidade.

“E Leopardi?”, pensou Hans Castorp. “Ele desesperou abertamente da ciência e do progresso. E o nosso próprio mestre-escola? Não está também enfermo e volta para cá uma e outra vez? Carducci gostaria muito pouco da vida que ele leva.” Em voz alta, porém, disse:

– Essa é boa! Qualquer dia destes aquela moça pode bater as botas, e o senhor fala de licenciosidade! Precisa me explicar isso um pouco mais claramente! Se o senhor afirmasse que a doença é às vezes uma consequência da licenciosidade, seria plausível... 
– Muito plausível – aparteou Settembrini. – Ora bolas! Será que o senhor se daria por satisfeito se eu não fosse além dessa afirmação? 
– ...ou se dissesse que a doença muitas vezes serve de pretexto à licenciosidade, eu aceitaria também isso. 
Grazie tanto
– Mas a doença como forma da licenciosidade? Quer dizer que ela não é um produto da licenciosidade, mas é, ela própria, licenciosidade? Isso me parece paradoxal 
– Por favor, engenheiro, nada de imputações levianas! Desprezo os paradoxos, detesto os! Tome nota de que tudo quanto lhe disse sobre a ironia se aplica também ao paradoxo, e ainda outras coisas mais! O paradoxo é a erva venenosa do quietismo, a irisação do espírito apodrecido, a maior licenciosidade de todas! Verifico, aliás, que o senhor volta a defender a enfermidade... 
– Não, o que o senhor diz me interessa muito. Está me trazendo à memória certas ideias que o Dr. Krokowski explana nas suas conferências de segunda-feira. Ele também considera a doença orgânica um fenômeno secundário. 
– Um idealista pouco limpo. 
– Que tem o senhor contra ele?  
– Justamente isto.
– O senhor não gosta da análise? 
– Depende. Gosto dela muito ou pouco, alternadamente, meu caro engenheiro. 
– Como devo compreender o que o senhor disse agora? 
– A análise é boa como instrumento do esclarecimento e da civilização; é boa, quando abala convicções estúpidas, dissipa preconceitos naturais e solapa a autoridade; é boa, em outros termos, enquanto liberta, refina, humaniza e prepara os escravos para a liberdade. É má, muito má mesmo, quando estorva a ação, quando prejudica as raízes da vida e se mostra incapaz de lhe dar forma. A análise pode ser uma coisa pouco apetitosa, repugnante como a morte, à qual talvez pertença, afinal de contas, sendo afim do túmulo e da sua anatomia mal afamada... 

“Bem urrado, Leão!”, não pôde Hans Castorp deixar de pensar, como sempre quando o Sr. Settembrini explanava um assunto pedagógico. Mas limitou-se a dizer: 

– Recentemente estudamos anatomia de raios, lá no subsolo. É o termo que Behrens empregou, quando fez a nossa radioscopia. 
– Ah, o senhor já passou por essa etapa também? E então? 
– Vi o esqueleto de minha mão – disse Hans Castorp, procurando evocar as sensações que lhe despertara aquele espetáculo. – O senhor também pediu que lhe mostrassem a sua? 
– Não, senhor. Não me interessa nem um pouquinho ver o meu esqueleto. E qual é o diagnóstico médico? 
– Ele encontrou cordões. Cordões com pequenos nós. 
– Que sujeito diabólico! 
– Não é a primeira vez que o senhor chama assim o Dr. Behrens. Que quer dizer com isso? 
– Fique certo que se trata de um termo eufemístico. 
– Não, Sr. Settembrini, o senhor é injusto. Admito que o homem tenha seus defeitos. Sua maneira de falar, com o tempo, foi se tornando desagradável para mim. Tem qualquer coisa de forçado, principalmente para quem se recorda de que ele teve aqui o grande desgosto de perder sua mulher. Mas, afinal de contas, o Dr. Behrens é homem de méritos e digno de respeito. Trata se de um benfeitor da humanidade sofredora! Faz poucos dias encontrei-o, quando ele acabava de operar; vinha de uma ressecção de costelas, uma intervenção durante a qual a vida do enfermo estava por um fio. Causou-me profunda impressão vê-lo voltar do seu trabalho complicado e útil, de que entende com tanta perfeição. Parecia ainda muito excitado, e como prêmio do seu esforço acendeu um charuto. Tive inveja dele. 
– Muito bonito da sua parte! Mas qual é a pena que impôs ao senhor? 
– Ele não estabeleceu nenhum prazo fixo. 
– Nada mal! Pois então, engenheiro, vamos deitar-nos. Ocupemos os nossos postos. 

     Separaram-se diante do número 34.

– E o senhor sobe ao telhado, Sr. Settembrini? Deve ser mais divertido ficar deitado em companhia do que estar a sós. A gente conversa lá em cima? Há pessoas interessantes entre os seus companheiros de repouso? 
– Oh, há apenas partos e citas. 
– Quer dizer russos? 
– E russas – tornou o Sr. Settembrini, enquanto se entesava uma das comissuras da sua boca. – Adeusinho, engenheiro.

     Indubitavelmente, essas palavras tinham sido ditas de propósito. Hans Castorp estava confuso quando entrou no quarto. Sabia Settembrini o que se passava com ele? Provavelmente o espiara com intenções pedagógicas, e lhe seguira a direção dos olhos. Hans Castorp encolerizava se contra o italiano e contra si próprio, porque, não sabendo dominar-se, provocara a alfinetada. Enquanto procurava pena e papel, a fim de levá-los consigo ao repouso – pois já não era conveniente esperar e tinha de ser escrita uma terceira carta para casa-–, continuava a exasperar se. Murmurou qualquer coisa contra aquele doidivanas e criticastro, que se intrometia no que não era da sua conta, e todavia assobiava, ele mesmo, para as moças na rua. Hans Castorp não se sentia disposto a escrever. Esse tocador de realejo, com suas indiretas, estragara-lhe todo o bom humor. Mas, fosse como fosse, era preciso ter trajes de inverno, dinheiro, roupa-branca, calçados – em suma, tudo o que Hans Castorp teria trazido se tivesse imaginado que passaria ali não somente umas três semanas de pleno verão, mas um prazo... um prazo ainda indeterminado, que, em todo caso, ocuparia boa parte do inverno, ou, tendo-se em conta as ideias que “entre nós, aqui em cima” vigoravam a respeito do tempo, se prolongaria até o seu fim. Era justamente isso que urgia comunicar à família, pelo menos como possibilidade. Era necessário fazer, desta vez, um trabalho completo, dizer ao pessoal de casa a verdade nua e crua, e não manter neles possíveis ilusões...
     Assim disposto, começou a escrever, servindo-se da técnica que diversas vezes vira Joachim empregar: deitado na espreguiçadeira com a caneta-tinteiro na mão e a pasta de viagem sobre os joelhos dobrados. Utilizou uma folha de papel de cartas do estabelecimento, das quais havia uma boa provisão na gaveta da sua mesa. Dirigiu a carta a James Tienappel, que lhe era o mais íntimo dentre os seus três tios. Pediu-lhe informasse o cônsul. Falou de um contratempo desagradável, de receios que se haviam confirmado, da necessidade, verificada pelos médicos, de permanecer ali em cima durante parte do inverno, ou mesmo durante toda a estação fria, visto casos como o seu serem frequentemente mais persistentes do que outros de aparência mais impressionante. Afirmou tratar-se de intervir com energia e precaver-se em tempo. Sob esse ponto de vista – opinou –, era uma verdadeira sorte e um acaso feliz ter ele subido e aproveitado o ensejo de se submeter a um exame; caso contrário, poderia ter acontecido que ignorasse, por muito tempo ainda, o seu estado, e mais tarde, talvez, ficasse sabendo dele de uma forma mais penosa. Quanto à duração provável do tratamento, não seria de estranhar se tivesse de desperdiçar com ele o inverno todo e não voltasse à planície antes de Joachim. Os conceitos de tempo eram ali diferentes dos que se aplicavam à permanência normal numa estação balneária. O mês era, por assim dizer, a menor unidade de tempo, e um só não seria absolutamente levado em conta...
     Fazia frio, e Hans Castorp escrevia agasalhado com o sobretudo e envolto num cobertor. De vez em quando tirava os olhos do papel que se ia enchendo de frases razoáveis e convincentes, e levantava-os para contemplar a paisagem familiar, cuja presença já quase deixara de perceber, aquele vale alongado, com a cordilheira de cumes – nesse dia de uma palidez vítrea – à sua saída, com o fundo claro, salpicado de casas, que às vezes resplandecia ao sol, e com as encostas cobertas de mato ou de pradaria, de onde vinha o tilintar de cincerros de vacas. Hans Castorp escrevia com uma facilidade cada vez maior, e não compreendia como pudera ter receio da redação dessa carta. Enquanto a redigia, persuadia-se a si próprio de que não podia haver coisa mais concludente do que as suas explicações, as quais sem dúvida encontrariam em casa a mais completa aprovação da parte dos seus tios. Jovens da sua classe e da sua situação financeira cuidavam da saúde, quando isso lhes parecia conveniente, e aproveitavam as comodidades especialmente preparadas para pessoas da sua condição. Se tivesse partido para casa, era certo que o teriam mandado de volta, ao ouvirem o que ele tinha que contar. Hans Castorp pediu que lhe enviassem as coisas de que necessitava. Terminou solicitando a remessa regular do dinheiro de que precisava; oitocentos marcos por mês seriam suficientes para cobrir todas as despesas.
     Assinou. Estava feito o trabalho. Essa terceira carta esgotava o assunto e teria um efeito duradouro – não segundo os conceitos de tempo que reinavam lá embaixo, mas segundo os dali de cima. Consolidaria a liberdade de Hans Castorp. Era essa a palavra que ele empregava, não expressamente, e nem sequer formando as sílabas no seu íntimo, mas sentindo-lhe o significado mais amplo, assim como o aprendera ali, significado que pouco tinha que ver com aquele que Settembrini dava à palavra. A isso, uma onda de espanto e de emoção, sentimento já conhecido dele, percorreu-lhe o interior, arrancou-lhe um suspiro e lhe fez estremecer o peito.
     Sentia a cabeça congestionada de tanto escrever, e suas faces ardiam. Tirou o termômetro da mesinha com a lâmpada e mediu a temperatura, como para aproveitar uma ocasião. O mercúrio subia a 37,8.

“Estão vendo?”, pensou Hans Castorp. Acrescentou o seguinte pós-escrito: “Esta carta me cansou. A minha temperatura é 37,8, neste momento. Vejo que, por enquanto, devo levar uma vida muito quieta. Desculpem se escrever só raras vezes!” Feito isso, permaneceu deitado e elevou a mão contra o céu, com a palma para fora, assim como fizera diante do anteparo luminoso. Mas a luz celeste deixou intacto o seu aspecto de vida. Diante da sua clareza, a matéria da mão até se tornou mais opaca e mais escura, e somente os contornos afiguravam-se numa vaga iluminação vermelha. Era a mão viva, que Hans Castorp estava habituado a ver, a lavar, a usar, e não aquela armação estranha com que se defrontara através do anteparo. A cova analítica, que então vira aberta, voltara a se fechar.

continua pág 147...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Liberdade
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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