quinta-feira, 1 de maio de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa / IX - O homem do guizo

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa

IX - O homem do guizo
     
      Levando na mão o rolo de prata que tinha no bolso do colete, Jean Valjean caminhou direto ao homem que andava no jardim. 
     O homem tinha a cabeça baixa e não o viu aproximar-se. Em poucas passadas, Jean Valjean chegou junto dele e disse em voz alta:

— Cem francos!

      O homem quase deu um salto e ergueu os olhos.

— Ganha cem francos — tornou Jean Valjean — se me der asilo para esta noite!

      O luar iluminava de frente o rosto espantado de Jean Valjean.

— Ora esta! — exclamou o homem. — É o senhor Madelaine.

      Este nome assim pronunciado, a semelhante hora, num lugar desconhecido, por um homem tão desconhecido como ele, fez recuar Jean Valjean.
      Esperava tudo menos semelhante coisa. Aquele que lhe pronunciara o nome era um velho todo curvado, coxo, vestido pouco mais ou menos como um homem do campo e com uma joelheira de coiro no joelho esquerdo, de onde pendia um grande guizo. O rosto não se lhe distinguia na sombra.
     Entretanto, tirara o boné e exclamava todo trémulo:

— Valha-me Deus! Mas como está o senhor aqui, senhor Madelaine? Por onde entrou, Cristo Santo! Só se caiu do céu! Não é isso que me espanta, porque se o senhor alguma vez cair, não pode ser doutra parte. E em que estado está! Sem gravata, sem chapéu nem casaco! Olhe que estava capaz de meter medo a quem não o conhecesse! Em mangas de camisa! Valha-me Nossa Senhora! Poderá ser que os santos também percam o juízo? Mas como foi que entrou aqui?

     O velho falava com uma volubilidade campesina, que não tinha nada de inquietadora. As palavras não esperam umas pelas outras. Tudo isto era dito com a mais ingênua e estupefata bondade.

— Quem é você e que casa é esta? — perguntou Jean Valjean. 
— Essa é que é melhor! — exclamou o velho. — Eu sou aquele que o senhor aqui acomodou, e esta é a casa que o senhor me obteve para servir. O quê? Pois não me conhece! Não se lembra de mim?! 
— Não me lembro — disse Jean Valjean. — Mas como é que você me conhece? 
— Conheço-o porque o senhor me salvou a vida — disse o homem.

    Dizendo isto, voltou-se um pouco, o luar desenhou-lhe o perfil e Jean Valjean reconheceu o velho Fauchelevent.

— Ah! — disse Jean Valjean. — Agora é que o conheço! 
— Com efeito! — disse o velho num certo tom de repreensão. 
— Mas que anda fazendo aqui? — tornou Jean Valjean. 
— Ando a cobrir os meus melões.

     O velho Fauchelevent nha com efeito, na mão, no momento em que Jean Valjean se lhe aproximou, um pedaço de esteira que estava estendendo sobre o meloal. 
     Já assim estendera um certo número doutras desde que chegara ao quintal havia uma hora.
     Fauchelevent continuou:

— Disse comigo: o luar está claro, vai decerto cair geada; se eu fosse cobrir os meus melões com os seus capotes? — E acrescentou, olhando a rir para Jean Valjean: — Com a fortuna! O senhor precisava que lhe fizesse outro tanto. Mas como é que se acha aqui?

    Jean Valjean vendo-se conhecido por aquele homem, pelo menos sob o nome de Madelaine, não avançava senão com a maior precaução, multiplicando cada vez mais as perguntas. Extraordinária coisa! Os papéis estavam invertidos. Era ele, intruso, quem interrogava.

— O que quer dizer esse guizo que trás no joelho? 
— Isto? — respondeu Fauchelevent. — É para que fujam de mim. 
— Para que fujam? Não percebo!

    O velho Fauchelevent piscou um olho com inexplicável expressão.

— Ora! É que nesta casa não há senão mulheres e muitas meninas; pelos modos é perigoso que me encontrem, por isso trago o guizo para as avisar. Quando eu chego vão se elas. 
— Mas que casa é esta? 
— Ora essa! O senhor sabe-o muito bem. 
— Não sei, decerto. 
— Pois se foi o senhor quem aqui me arranjou o lugar de jardineiro? 
— Responda-me como se eu não soubesse nada. 
— Então sempre lhe digo; é o convento do Petit-Picpus.

     Jean Valjean ia reunindo as recordações. O acaso, isto é, a Providência, lançava-o precisamente no convento do bairro de Santo António, onde o velho Fauchelevent, estropiado pela queda da sua carroça, fora admitido como jardineiro por sua recomendação, havia dois anos. Lembrando-se de tudo isto, repetiu como falando consigo mesmo:

— O convento do Petit-Picpus! 
— Mas diga-me — tornou Fauchelevent — como diabo foi que entrou aqui, senhor Madelaine? O senhor é um santo, porque se fosse homem... Aqui não entram homens. 
— Mas você está aqui. 
— Sou o único. 
— Não obstante — tornou Jean Valjean — é indispensável que eu aqui fique. 
— Jesus! Como há de ser isso!? — exclamou Fauchelevent.

     Jean Valjean aproximou-se mais do velho e disse-lhe no tom mais grave:

— Salvei-lhe a vida, senhor Fauchelevent. 
— Fui eu quem me lembrei disso primeiro — respondeu ele. 
— Pois bem, hoje pode prestar-me o mesmo serviço que eu já lhe prestei.

    Fauchelevent tomou em suas velhas mãos encarquilhadas e trémulas as duas mãos robustas e vigorosas de Jean Valjean e ficou por alguns segundos como se não pudesse falar. Por fim, exclamou:

— Seria a bênção de Deus eu pagar-lhe um tal benefício, salvar-lhe a vida! Senhor maire, disponha à sua vontade do pobre velho, e não o poupe!

    O pobre homem parecia transfigurado pela admirável alegria que se lhe via no rosto.

— O que quer que se faça? — continuou ele. 
— Depois lhe explicarei tudo. Diga-me: tem um quarto? 
— Tenho uma barraca isolada, ali por detrás das ruínas do convento velho, num recanto que ninguém vê. Tem três casinhas.

     A barraca estava, com efeito, tão bem oculta pelas ruínas e tão bem disposta para que ninguém a visse, que Jean Valjean não a notara.

— Bem — disse Jean Valjean. — Agora peço-lhe duas coisas. 
— Quais são, senhor maire
— Em primeiro lugar não dizer a ninguém o que sabe a meu respeito; depois não fazer a menor diligência para saber mais do que sabe. 
— Pode estar certo de que farei o que deseja. Sei muito bem que não pode fazer nada que não seja honesto, e que tem sido sempre muito boa pessoa. E depois, foi o senhor quem aqui me acomodou; pode dispor de mim. 
— Então venha comigo. Vamos buscar a criança. 
— Ah! — disse Fauchelevent. — Tem uma criança.

    E, sem acrescentar nem mais uma palavra, seguiu Jean Valjean, qual cão seguindo seu dono.
    Não decorrera ainda meia hora e já Cosette, tendo readquirido a sua cor rosada na frente de um bom lume, dormia na cama do velho jardineiro; Jean Valjean tinha já posto a gravata e vestido a sobrecasaca; enquanto Jean Valjean vestia a sobrecasaca, Fauchelevent rara a joelheira em que estava preso o guizo e pendurara-o num prego que havia na parede, servindo-lhe de ornamento.
     Os dois homens aqueciam-se encostados a uma mesa, sobre a qual Fauchelevent pusera um bocado de queijo, pão negro, uma garrafa de vinho e dois copos. O velho dizia a Jean Valjean, descansando-lhe a mão sobre o joelho: 
 — Ah, senhor Madelaine, não me conheceu logo! Salva-nos a vida e depois esquece-se da gente? É muito mal feito, é ser ingrato! Eu nunca me esqueci do senhor Madelaine!

continua na página 359...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - IX - O homem do guizo
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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