quarta-feira, 7 de maio de 2025

A Montanha Mágica - Caprichos do mercúrio

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

Caprichos do mercúrio

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     Começou outubro como costumam começar os meses. Sua entrada é, no fundo, bem discreta e completamente silenciosa, sem sinais nem fogueiras; os meses insinuam-se sem fazer ruído, de um modo que facilmente escapa à atenção de quem não esteja muito alerta. Em realidade, o tempo não tem marcas; não há trovões nem trombetas ao início de um novo mês ou de um novo ano; e na própria estreia de um novo século somos unicamente nós, os homens, que soltamos foguetes e repicamos os sinos.
     No caso de Hans Castorp, o primeiro dia de outubro não diferiu em nada do último de setembro. Estava igualmente frio e desabrido, e os dias seguintes passaram-se da mesma forma. No repouso eram necessários o sobretudo de inverno e os cobertores de lã de camelo, não só à noite, mas também durante o dia. Os dedos com que Hans Castorp segurava o livro estavam úmidos e enregelados, se bem que as faces lhe ardessem num calor seco. Joachim sentia-se tentado a recorrer ao saco de peles, mas desistiu, para não se mimar antes do tempo.
     Alguns dias mais tarde, porém, ainda no decorrer da primeira quinzena do mês, mudou tudo e irrompeu um veranico atrasado de tamanho esplendor, que o espanto foi geral. Com muita razão ouvira Hans Castorp elogiar o mês de outubro dessas paragens. Durante duas semanas e meia, aproximadamente, um céu magnífico estendeu-se por cima do vale; cada dia ultrapassava o anterior na pureza do azul, e o sol irradiava com uma intensidade, tão veemente, que todos se viram induzidos a ir buscar os trajes mais leves de verão, já relegados às malas; ressurgiram, pois, os vestidos de musselina e as calças de linho, e nem sequer o grande guarda-sol de lona, que, mediante um engenhoso mecanismo – um sarrafo de diferentes furos –, se fixava no braço da espreguiçadeira, oferecia ao meio-dia um abrigo suficiente contra o astro abrasador. 

– Que sorte eu poder ainda desfrutar este tempo – disse Hans Castorp ao primo. – Tivemos às vezes dias tão ruins! E agora quase parece que o inverno já passou e se aproxima a boa estação. –- Tinha razão. Poucos sinais indicavam a verdadeira época do ano, e também estes eram insignificantes. Excetuando-se alguns bordos plantados em Davos-Platz, onde levavam uma existência penosa, e que fazia muito tempo haviam desoladamente deixado cair as suas folhas, não existiam por ali árvores frondosas, cujo estado imprimisse à paisagem o cunho da estação. Somente o alno alpestre, árvore híbrida, de agulhas macias, que as perde como se fossem folhas, mostrava a calvície outonal. As demais árvores da região, as altas tanto como as mirradas, eram coníferas sempre verdes, resistentes ao inverno, que, na falta de limites distintos, pode distribuir as suas nevadas pelo ano inteiro. Eram apenas os diversos matizes de um vermelho ferrugíneo, nas copas da floresta, que, apesar do ardor estivai do céu, revelavam o declínio do ano. Verdade é que, para o olhar mais atento, havia ainda as flores dos prados a anunciar o mesmo fato, na sua linguagem suave. Já não se viam o salepo, parente das orquídeas, e os arbustos da aquilégia, que na época da chegada do visitante tinham adornado as encostas; também o cravo silvestre desaparecera. Unicamente a genciana e os caules curtos do lírio verde eram visíveis e testemunhavam certa frescura íntima da atmosfera superficialmente aquecida, um frio capaz de penetrar de súbito a própria medula do homem deitado, quase que tostado exteriormente, assaltando-o tal como um calafrio ataca o enfermo abrasado pela febre.

     Quanto a Hans Castorp, não observara interiormente aquela ordem com que o homem, ao lidar com o tempo, controla o seu curso, dividindo, contando e denominando as suas unidades. Não prestara atenção ao silencioso início do décimo mês. Somente o impressionava o que lhe feria os sentidos, o ardor do sol que ocultava uma secreta frescura e lhe causava uma sensação nova na sua intensidade, e que o induzia a uma comparação culinária: fazia-o pensar, conforme disse a Joachim, numa “omelette surprise” que continha quaisquer coisas geladas sob a espuma quente dos ovos. Externava frequentemente ideias desse gênero, falando com rapidez e fluência, numa voz emocionada, como faz quem treme de frio apesar de ter a pele ardente. Verdade é que houve também intervalos durante os quais se mostrava taciturno, para não dizer ensimesmado, pois sua atenção continuava dirigida para fora, concentrada embora num único ponto, ao passo que tudo o mais – pessoas tanto como objetos -se diluía numa espécie de bruma, originária do seu próprio cérebro, e que os doutores Behrens e Krokowski sem dúvida alguma teriam qualificado de “produto de venenos solúveis”, como o jovem repetia a si mesmo, sem que essa percepção lhe proporcionasse a capacidade, e nem sequer o desejo, de se libertar da sua embriaguez.
     Tratava-se de uma ebriedade que tinha o seu objetivo em si mesma e à qual nada se afigurava mais odioso e menos almejável do que o desembriagamento. Esse estado defendia-se também contra quaisquer impressões que lhe pudessem enfraquecer a força; não as admitia, a fim de se conservar intacto. Hans Castorp sabia e mencionara, ele mesmo, em outras ocasiões, que Mme. Chauchat não era favorecida quando vista de perfil. Seu rosto parecia então um tanto rígido e muito menos jovem. E a consequência? Evitava olhá-la de perfil. Cerrava literalmente os olhos, quando, porventura, ela oferecia esse aspecto que o magoava. Por quê? Sua razão deveria ter exultado por ter uma oportunidade para impor-se. Que querem? Hans Castorp empalideceu de encanto quando Clávdia, num desses dias radiosos, na hora do café da manhã, voltou a apresentar-se com seu rolo de rendas, que usava em dias de calor, e no qual ficava extraordinariamente graciosa – quando assim entrou, atrasada, batendo a porta com estrondo, e risonha, com os braços ligeiramente erguidos a alturas desiguais, enfrentou a sala, para se exibir. Mas o que o encantava era menos o fato de ela aparecer tão bonita, do que a sensação de que isso reforçava a doce névoa que pairava na sua cabeça, aquela ebriedade que se bastava a si mesma e desejava ser justificada e alimentada.
     Um perito da mentalidade de Lodovico Settembrini, à vista de tamanha falta de boa vontade, teria talvez falado de licenciosidade, ou de uma de suas formas. Hans Castorp recordava às vezes as ideias literárias que o italiano expressara acerca “da enfermidade e do desespero”, e que ele mesmo achara ou fingira achar incompreensíveis. Contemplava Clávdia Chauchat, a lassidão das suas costas, a posição avançada da sua cabeça; via como ela chegava atrasada à mesa, sem razão nem desculpa, exclusivamente por falta de ordem e de energia civilizada; via como, em virtude dessa mesma falta, batia atrás de si cada porta por que entrava ou saía; via como formava bolinhas de miolo de pão e roia de vez em quando os lados das pontas dos dedos e surgia nele um pressentimento tácito: se ela estava doente – o que ela estava sem dúvida, e quiçá sem esperança, já que se vira forçada a viver ali em cima repetidas vezes e por muito tempo –, sua doença era, senão toda, ao menos em grande parte de natureza moral, e efetivamente, como dissera Settembrini, não se tratava nem da causa nem do efeito da sua “negligência”, senão de uma coisa inerente a ela. Hans Castorp relembrava também o gesto desdenhoso que fizera o humanista ao falar dos “partos e citas”, cuja companhia tinha de suportar durante o repouso; um gesto de desprezo e de repúdio naturais e espontâneos, que não necessitavam de justificativa, e eram muito familiares a Hans Castorp, em outros tempos, quando ele, que à mesa mantinha uma postura bem tesa, odiava as portas fechadas com estrondo, e jamais se sentia tentado a roer as unhas (por dispor, em vez disso, do recurso do Maria Mancini), se escandalizara gravemente com a má educação de Mme. Chauchat e não pudera evitar uma sensação de superioridade, ao ouvir a forasteira de olhos rasgados procurar expressar-se na sua própria língua natal.
     Mas, a essa altura dos acontecimentos, Hans Castorp, devido ao estado íntimo do seu espírito, abandonara quase totalmente esse modo de sentir. Era antes o italiano que o irritava, por ter falado, na sua sobranceria, de “partos e citas”, sem sequer se referir a pessoas da mesa dos “russos ordinários”, onde os estudantes de cabelos extraordinariamente bastos e de roupa-branca invisível discutiam sem cessar no seu idioma exótico, o único evidentemente que conheciam, e cujo caráter desprovido de ossos fazia pensar num tórax sem costelas, como aquele que o Dr. Behrens acabava de descrever. Era inegável que os hábitos dessa gente eram capazes de despertar num humanista vivos sentimentos de distância. Comiam com a faca e sujavam a privada de forma inenarrável. Settembrini afirmava que um dos membros dessa roda, um acadêmico já adiantado no curso de medicina, mostrara-se absolutamente ignorante em matéria de latim; nem soubera, por exemplo, o que era um vacuum. E segundo a própria experiência diária de Hans Castorp, não mentia a Srª. Stöhr quando contava, à mesa, que o casal do número 32 recebia o massagista, quando de manhã este se apresentava para ministrar a fricção, ambos deitados na mesma cama.
     Tudo isso podia ser verdade, e não fora inutilmente que se instituíra a separação manifesta entre os “distintos” e os “ordinários”. Hans Castorp afirmava a si próprio que apenas o fazia dar de ombros aquele propagandista da república e do belo estilo, que altiva e prosaicamente – sobretudo prosaicamente, embora também ele andasse febril e embriagado – abarcava o pessoal das duas mesas sob a denominação de “partos e citas”. O jovem Hans Castorp compreendia muito bem em que sentido Settembrini usara essas palavras. Não começara ele também a compreender a relação existente entre a enfermidade de Mme. Chauchat e a sua “negligência”? Mas dera-se o que ele próprio descrevera, certo dia, a Joachim: no início a gente se escandaliza e experimenta sentimentos de distância, mas de repente “intromete-se qualquer coisa completamente diversa”, que “nada tem que ver com o juízo”, e logo se acaba a indignação moral, a ponto de as pessoas se tornarem quase inacessíveis a influências pedagógicas de natureza republicana ou eloquente. Mas que é isso? – perguntamos, provavelmente de acordo com a mentalidade de Lodovico Settembrini. Qual é essa coisa duvidosa que, intrometendo-se, paralisa e elimina o juízo dos homens, privando-os do direito de o usarem, ou melhor, fazendo com que renunciem ao seu uso com um entusiasmo insensato? Não perguntamos pelo nome dessa coisa, porquanto todos o conhecem. Indagamos acerca da sua índole moral e – confessamo-lo francamente – não esperamos resposta muito otimista. No caso de Hans Castorp, essa índole manifestou-se de tal maneira, que ele não somente deixou de usar o seu juízo, mas também se pôs a experimentar, ele próprio, aquele gênero de vida que o preocupava. Tentou saber que tal era a sensação de quem, à mesa, ficava sentado relaxadamente, com as costas lassas, e verificou que isso constituía grande alívio para os músculos da bacia. Além disso, procurou não fechar, meticulosamente, a porta que atravessava, mas batê-la atrás de si, e também esse método mostrou-se bastante cômodo e adequado, expressando, mais ou menos, a mesma coisa que aquele hábito de dar de ombros que ele notara em Joachim, logo da sua chegada, na estação, e que reencontrara muitas vezes entre as pessoas dali de cima.
     Para empregarmos palavras simples – o nosso herói estava agora apaixonado até a raiz dos cabelos por Clávdia Chauchat. Usamos novamente esse termo, uma vez que pensamos ter feito o necessário para evitar o mal-entendido que ele poderia originar. Não era, portanto, uma melancolia amavelmente sentimental, no sentido da já referida cançãozinha, o que constituía a essência da sua paixão. Era antes uma variante bem perigosa e erradia daquela fascinação, mescla de frio e calor, qual o estado de um homem febril ou um dia de outubro nas regiões elevadas; e o que lhe faltava era precisamente um elemento sentimental que ligasse os componentes extremos. Por um lado, referia-se, com um imediatismo que fazia o jovem empalidecer e lhe crispava as feições, ao joelho de Mme. Chauchat, às suas costas, às vértebras da sua nuca e aos seus braços que comprimiam os pequenos seios – referia-se, numa palavra, ao seu corpo, esse corpo lânguido e intensificado, ao qual a doença dava uma acentuação exagerada, convertendo-o duplamente em corpo. E por outro lado, era essa paixão algo sumamente volátil e vasto, uma ideia, não, um sonho, o sonho temeroso e infinitamente sedutor de um jovem, cujas perguntas precisas, embora não formuladas de maneira consciente, haviam sido respondidas apenas por um silêncio vazio. Como todo mundo, reivindicamos também nós o direito de fazer, no decorrer da presente narrativa, as nossas próprias conjecturas, e chegamos a supor que Hans Castorp não teria ultrapassado o prazo preestabelecido para a sua estadia ali em cima e nem sequer teria alcançado, nesse ambiente, o dia em que paramos, se sua alma singela houvesse encontrado, nas profundezas do tempo, uma informação satisfatória quanto ao sentido e à finalidade desse serviço que é a vida.
     De resto, sua paixão infligia-lhe todas as dores e proporcionava-lhe todas as alegrias que esse estado acarreta em toda parte e em todas as circunstâncias. A dor é pungente; contém um elemento degradante, como toda dor, e representa tamanho abalo do sistema nervoso que embarga a respiração e é capaz de arrancar a um homem adulto lágrimas amargas. Para também fazermos justiça às alegrias – estas eram numerosas e, ainda que nascessem de motivos insignificantes, não menos intensas que as mágoas. Por exemplo: prestes a entrar na sala de refeições, Hans Castorp nota atrás de si o objeto dos seus sonhos. O resultado é conhecido de antemão e de suma simplicidade, mas arrebata-lhe a alma com aquela força que faz brotar as lágrimas. Os olhos encontram-se de perto, os seus próprios e os glaucos olhos dela, cuja forma e posição levemente asiáticas o encantam até a medula. Ele já não tem consciência, mas, mesmo assim, dá um passo para o lado, a fim de deixar livre a passagem pela porta. Com um meio sorriso e um merci pronunciado em voz baixa aceita ela esse seu oferecimento apenas cortês, passa por ele e atravessa o limiar. Ei-lo na aura da personalidade que acaba de roçá-lo, louco da felicidade que lhe causam a coincidência e o fato de uma palavra da sua boca, esse merci, ter-se dirigido direta e pessoalmente a ele. Segue-a; a passo vacilante encaminha-se à direita, para a sua mesa, e enquanto se deixa cair na cadeira pode verificar que Clávdia, sentando-se igualmente, se vira para ele com ar pensativo, motivado, como parece a Hans Castorp, pelo encontro junto à porta. Ó ventura assombrosa! Ó júbilo, triunfo, exultação sem limites! Não, Hans Castorp jamais teria experimentado essa embriaguez de fantástica satisfação, ao receber um olhar de alguma pequena sadia, lá embaixo, na planície, à qual tivesse “dado o seu coração”, num impulso lícito, sossegado e esperançoso em conformidade com aquela cançãozinha. Com uma jovialidade febril cumprimenta a professora, que observou tudo e ficou com a pele veludosa corada; a seguir assalta Miss Robinson, com uma tentativa tão absurda de conversação inglesa que a senhorita, não habituada a êxtases, recua violentamente e o mede com um olhar cheio de temor.
     Outra vez, durante o jantar, os raios de um esplêndido pôr-do-sol caem sobre a mesa dos “russos distintos”. Haviam corrido as cortinas das portas do avarandado e das janelas, mas em alguma parte sobrou uma fresta, através da qual um clarão vermelho, deslumbrante, apesar de frio, abre caminho e fere justamente a cabeça de Mme. Chauchat, de maneira que, na conversa com o compatriota de peito sumido à sua direita, ela tem de resguardar os olhos com a mão. É um incômodo, mas tão pouco grave que ninguém se preocupa. A própria interessada nem sequer parece reparar na pequena contrariedade. Mas Hans Castorp descobre-a através de toda a sala. Observa-a durante alguns instantes, examinando a situação, acompanhando o caminho dos raios e fixando o ponto de onde incidem. É da janela ogival, lá atrás, à direita, no canto entre uma das portas do avarandado e a mesa dos “russos ordinários”, muito distante do lugar de Mme. Chauchat e quase igualmente afastado do de Hans Castorp. E ele toma as suas decisões. Sem proferir nenhuma palavra, levanta-se, passa, com o guardanapo na mão, diagonalmente, por entre as mesas, atravessa a sala, une cuidadosamente as cortinas creme, certifica-se, com um olhar por cima do ombro, de que o clarão vesperal já não pode mais entrar e que Mme. Chauchat está livre daquele inconveniente, e, esforçando-se por parecer indiferente, volta à sua mesa. Um jovem atencioso que faz o necessário, já que mais ninguém se lembra de fazê-lo. Muito poucos notaram a sua intervenção; Mme. Chauchat, porém, sentiu-se imediatamente aliviada e virou-se em direção a ele, conservando essa posição até que Hans Castorp alcançou o seu lugar e, sentando-se, olhou para ela, que, com um sorriso entre amável e surpreendido, agradeceu, avançando um pouco a cabeça, sem propriamente incliná-la. Ele retribuiu com uma mesura correta. Seu coração quedou se imóvel, parecendo ter deixado de pulsar. Somente mais tarde, quando tudo terminara, pôs-se a martelar, e foi então que Hans Castorp percebeu que Joachim tinha os olhos discretamente cravados no prato. Ao mesmo tempo observou que a Srª. Stöhr dava uma cotovelada no Dr. Blumenkohl e, com um risinho afogado, procurava olhares cúmplices em toda parte, na sua própria mesa tanto como nas demais...
     Relatamos um acontecimento cotidiano, mas o cotidiano torna-se estranho quando se desenvolve em terreno estranho. Havia tensões e soluções benéficas entre eles, ou quando não entre eles – pois deixamos em suspenso até que ponto Mme. Chauchat participava delas –, ao menos existiam para a imaginação e para a sensibilidade de Hans Castorp. Naqueles belos dias, muitos pensionistas tinham o costume de ir, depois do almoço, ao avarandado situado à frente da sala de refeições, onde, durante um quarto de hora, permaneciam em grupos, expondo-se ao sol. Aquilo oferecia um aspecto semelhante ao das reuniões dominicais por ocasião do concerto bimensal da charanga. Os jovens absolutamente ociosos, supersaturados de iguarias de carne e de guloseimas, e todos ligeiramente febris, falavam, pilheriavam e trocavam olhares. A Srª. Salomon, de Amsterdam, ia sentar-se rente à balaustrada, enquanto a acossavam com os joelhos o beiçudo Gänser e, do outro lado, o gigante sueco, que, embora totalmente restabelecido, ainda prolongava a sua estadia em prol de uma pequena cura suplementar. A Srª. Iltis parecia ser viúva, pois que, desde há pouco, regozijava-se com a companhia de um “noivo”, aliás de aparência melancólica e subalterna, e cuja presença não a impedia de aceitar, simultaneamente, as homenagens do Capitão Miklosich, homem de nariz adunco, bigode untado de pomada, peito saliente e olhos ameaçadores. Havia lá as damas do alpendre, de diferentes nacionalidades, entre elas algumas figuras novas, aparecidas desde 1.° de outubro, e cujos nomes Hans Castorp ainda ignorava. No meio delas achavam-se cavalheiros da laia do Sr. Albin, jovens de dezessete anos, guarnecidos de monóculo; um rapaz holandês de cara rosada, com óculos e com uma paixão monomaníaca pelo intercâmbio de selos; diversos gregos, de olhos amendoados, recendendo a brilhantina e inclinados a desrespeitar, quando à mesa, os direitos dos comensais; dois peralvilhos inseparáveis, apelidados de “Max” e “Moritz”[1], e que tinham a fama de dar numerosas escapadelas... O mexicano corcunda, cuja ignorância dos idiomas ali representados lhe imprimia expressão de surdo, tirava sem cessar fotografias, arrastando consigo, com uma agilidade engraçada, o tripé de um lado para outro do terraço. Às vezes aparecia também o conselheiro áulico para exibir o truque dos cordões de sapato. Em alguma parte, solitário, o devoto de Mannheim abria caminho por entre a multidão, e seus olhos tristes até o fundo seguiam, para viva repugnância de Hans Castorp, determinados rumos secretos.
     Para nos ocuparmos, uma vez mais, daquelas “tensões e soluções”, podia acontecer numa dessas conjunturas que Hans Castorp, instalado numa cadeira laqueada de jardim, rente ao muro da casa, conversasse animadamente com Joachim, a quem, apesar da sua relutância, obrigara a sair com ele, e visse como à sua frente Mme. Chauchat se mantinha junto à balaustrada, fumando um cigarro em companhia dos seus comensais. E o jovem falava alto para que ela o ouvisse. Mas Mme. Chauchat lhe virava as costas... Como se vê, aludimos agora a um caso determinado. A palestra do primo não bastara para alimentar-lhe a loquacidade afetada, de modo que, intencionalmente, travara conhecimento com uma pessoa estranha. Quem era? Hermine Kleefeld. Como por acaso, Hans Castorp dirigira a palavra à mocinha, apresentando-se formalmente a si mesmo e a Joachim, e puxara uma cadeira laqueada também para ela, a fim de desempenhar papel de destaque numa cena de três. Será que ela se lembrava ainda – perguntou – de que maneira diabólica o assustara naquele dia, quando do seu primeiro encontro, durante o passeio matutino? Sim, fora ele que recebera aquelas boas-vindas cordiais, dadas por meio de um assobio animador. E realmente, ela conseguira o que queria, pois – Hans Castorp confessava-o francamente – ele sentira-se como que fulminado. Que a senhorita perguntasse ao primo se isso não era verdade, Ah, ah! assobiar com o pneumotórax para espantar os transeuntes inofensivos! Isso era um jogo ímpio, um abuso pecaminoso – assim o classificava ele com toda a sinceridade e com justa cólera... E enquanto Joachim, ciente do seu papel de mero instrumento, continuava sentado com os olhos baixos e a Kleefeld também aos poucos chegava a deduzir, dos olhares cegos e erráticos de Hans Castorp, o fato humilhante de que sua pessoa servia apenas de meio para determinado fim, Hans Castorp prosseguia amuando-se, tomando ares afetados, expressando-se em termos rebuscados e procurando dar à sua voz uma bela sonoridade, até que enfim conseguiu que Mme. Chauchat se voltasse para ver quem falava tão espalhafatosamente, e o encarasse, por um instante apenas. Deu-se então o seguinte: seus olhos de quirguiz resvalaram rapidamente pelo corpo de Hans Castorp, que se achava sentado com as pernas cruzadas, e com uma expressão de indiferença proposital, que chegava às raias do desdém – precisamente do desdém! –, fitaram por algum tempo os sapatos amarelos do jovem, antes de se retirar de novo, fleumaticamente, e quiçá ocultando um sorriso encoberto...
     Uma calamidade grave, muito grave! Hans Castorp continuou ainda algum tempo falando febrilmente. Depois, quando no seu foro íntimo se dera conta daquele olhar lançado aos seus sapatos, silenciou, quase no meio da palavra, e entregou-se à sua mágoa. A Kleefeld, aborrecida e melindrada, desapareceu. Com certo agastamento na voz, propôs Joachim que agora bem poderiam recolher-se ao repouso. E um homem prostrado, de lábios pálidos, concordou com ele.
     Durante dois dias, Hans Castorp sofreu amargamente sob os efeitos desse incidente, pois nada ocorreu nesse meio tempo que lhe derramasse algum bálsamo na ferida ardente. Por que o olhara daquele modo? Por que, em nome de Deus e da Trindade, sentia esse desdém para com ele? Considerava-o um palerma sadio lá de baixo, cuja receptividade não ia além do inocente? Um ingênuo da planície, por assim dizer, um tipo vulgar que passeava e ria e enchia a pança e ganhava dinheiro – um aluno modelo que nada entendia da vida a não ser as enfadonhas vantagens da honra? Era ele apenas um fútil visitante, vindo por três semanas, incapaz de participar da sua esfera? Não professara votos em virtude de ter uma região pulmonar úmida? Não fora incluído nas fileiras da Ordem, não fazia parte do “nós aqui em cima”, já com dois meses completos atrás de si? Não subira o mercúrio, ainda ontem, a 37,8?... . Mas era justamente isso o que enchia as medidas do seu sofrimento. O mercúrio deixara de subir! A terrível prostração desses últimos dias esfriara, desembriagara, desentesara a natureza de Hans Castorp – fato esse que, para a sua maior vergonha, se manifestava por temperaturas muito baixas, pouco acima da normal. Era-lhe cruel verificar que sua mágoa e sua contrariedade tinham o único efeito de afastá-lo cada vez mais da existência e dos sentimentos de Clávdia.
     O terceiro dia trouxe a doce redenção; trouxe-a já de manhã. Era um maravilhoso dia de outono, ensolarado e fresquinho, com os prados cobertos de teias prateadas. O sol e a lua minguante achavam-se simultaneamente no céu puro. Os primos tinham-se levantado mais cedo do que de costume, a fim de homenagear o belo dia e prolongar o passeio matinal um pouco além do limite regulamentar, passando pelo banco vizinho ao curso de água e avançando pelo caminho do bosque. Joachim, cuja curva também marcava, por aqueles dias, uma baixa simpática, propusera essa infração refrescante, e Hans Castorp não se opusera. – Somos gente curada – dissera ele –, sem febre e livres de venenos; quase estamos maduros para a planície. Nada nos impede de dar nossas cabriolas. – Caminhavam de cabeça descoberta; pois, desde que “professara”, Hans Castorp adaptara-se, por bem ou por mal, ao costume reinante de andar sem chapéu, não obstante a firmeza com que, no começo, defendera contra esse hábito seu próprio estilo de vida e sua boa educação. Fincavam no chão as suas bengalas. Ainda não haviam vencido a subida do caminho avermelhado e mal tinham alcançado o ponto onde, aquela vez, o grupo dos “pneumáticos” encontrara o novato, quando divisaram, a alguma distância, Mme. Chauchat, que subia devagar – Mme. Chauchat, de suéter branco, saia de flanela branca e sapatos igualmente brancos, com a cabeleira ruiva batida pelo sol da manhã. Para falar com maior precisão: quem a reconheceu foi Hans Castorp. A atenção de Joachim não despertou antes de a sensação desagradável de se ver instigado e aguilhoado indicar-lhe o que se passava. Essa sensação teve a sua origem na marcha acelerada que seu companheiro de súbito acabava de iniciar, após ter antes interrompido, bruscamente, a caminhada e quase parado por alguns instantes. Tal precipitação parecia sumamente prejudicial e irritante a Joachim, que perdeu o fôlego e começou a tossir. Mas Hans Castorp, seguro do seu objetivo, e com os órgãos funcionando às mil maravilhas, pouco se preocupou com isso, e como o primo compreendesse a situação, limitou-se a cerrar o cenho, sem dizer nada, e a acompanhar o passo do companheiro, visto não ser possível que este avançasse sozinho.
     A bela manhã animava o jovem Hans Castorp. Acrescia isso que, durante a depressão, as forças da sua alma haviam descansado furtivamente, e no seu espírito luzia a certeza de que chegara o momento em que se desvaneceria o encantamento que pairara em torno dele. Assim estugou o passo, arrastando consigo Joachim, que ofegava e também por outros motivos se mostrava recalcitrante. Antes da curva, a partir da qual o caminho se tornava plano e corria ao longo do flanco direito do morro coberto de mato, quase alcançaram Mme. Chauchat. Eis que Hans Castorp voltou então a diminuir a velocidade da marcha, para não realizar o seu propósito num estado de respiração curta que revelasse o seu esforço. E pouco além da referida curva, entre a encosta e a parede rochosa, no meio dos pinheiros tingidos de cor de ferrugem, e através de cujos ramos incidiam feixes de raios de sol, ocorreu, sim, realizou-se o fato maravilhoso: que Hans Castorp, caminhando à esquerda de Joachim, alcançasse a graciosa enferma, passasse por ela a passo enérgico e, no momento em que se achava à sua direita, fizesse uma mesura justificada pela falta de um chapéu, cumprimentando-a respeitosamente – afinal de contas, por que respeitosamente? – com um bom-dia pronunciado a meia voz e que obteve resposta. Com uma amável inclinação da cabeça, que revelava pouca surpresa, Mme. Chauchat agradeceu, dizendo igualmente “bom dia” na língua de Hans Castorp, enquanto seus olhos sorriam. Tudo isso constituía coisa muito diferente, profunda e deliciosamente oposta àquele olhar lançado aos seus sapatos; era um acaso feliz, uma modificação do estado das coisas para melhor; um acontecimento sem igual, que quase ultrapassava a capacidade receptiva de Hans Castorp; era a redenção!
     Com pés alados, deslumbrado por uma insensata alegria, graças ao cumprimento, à palavra, ao sorriso, Hans Castorp prosseguiu na sua marcha acelerada ao lado de Joachim, de quem tanto abusara e que em silêncio, contemplava a encosta, mantendo o olhar afastado do primo. Hans Castorp pregara-lhe uma peça bastante forte, que aos olhos de Joachim se afigurava como uma espécie de ardil e de traição, como o jovem muito bem sabia. Não era bem a mesma coisa que se tivesse pedido emprestado um lápis a alguma pessoa completamente desconhecida; pelo contrário, seria quase uma falta de educação passar rigidamente e sem cumprimentar ao lado de uma senhora com quem fazia meses se vivia sob o mesmo teto. Não entabulara Clávdia, dias atrás, na sala de espera, uma conversa com eles? Joachim, por conseguinte, era obrigado a calar se. Mas Hans Castorp compreendia perfeitamente por que outras razões o orgulhoso Joachim permanecia calado e desviara o olhar, ao passo que ele próprio se sentia tão exuberante e frivolamente arrebatado pela manobra bem-sucedida. Não podia ser mais feliz quem, lá na planície, “desse o seu coração”, lícita, esperançosa e, no fundo, alegremente, a qualquer pequena sadia e obtivesse brilhante êxito – não! tal indivíduo jamais podia ser tão feliz como era Hans Castorp, com o pouco que acabava de conseguir e assegurar-se numa hora ditosa... Por isso deu, depois de algum tempo, uma vigorosa palmada no ombro do primo e disse: 

– Escute, que é que você tem? O dia está tão lindo! Que tal lhe parece irmos até a estância balneária? Provavelmente há um concerto lá, não acha? Talvez toquem da Carmem “La fleur que tu m’avais jetée, dans ma prison m’était restée...” Mas que é que há? Será que está com uma pedra no sapato? 
– Não há nada – respondeu Joachim. – Mas você parece tão excitado! Receio que sua baixa de temperatura já tenha terminado.

     Terminara, de fato. A depressão humilhante da natureza de Hans Castorp estava superada, devido ao cumprimento que trocara com Clávdia Chauchat, e propriamente falando, devia-se a sua satisfação à consciência que tinha desse efeito do encontro. Sim, Joachim tinha razão. O mercúrio tornava a subir. Quando consultado por Hans Castorp, após o passeio, subiu aproximadamente a 38 graus.

continua pág 154...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Caprichos do mercúrio
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1] Personagens de Wilhelm Busch (1832-1908), autor de obras infantis muito divulgadas na Alemanha. No Brasil, são conhecidos como ]uca e Chico, na tradução de Olavo Bilac. (N. do E.)

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