sábado, 24 de maio de 2025

Massa e Poder - Cristais de Massa

Elias Canetti


CRISTAIS DE MASSA


     Designo cristais de massa grupos pequenos e rígidos de homens, muito bem delimitados e de grande durabilidade, os quais servem para desencadear as massas. É importante que esses grupos sejam avistáveis em seu conjunto, isto é, que se possa abarcá-los com os olhos em sua totalidade. Sua unidade importa muito mais do que seu tamanho. Sua atividade tem de ser conhecida: é necessário que se saiba por que razão estão ali. Qualquer dúvida relacionada a sua função privar-lhes-ia de todo sentido; o melhor é que permaneçam sempre iguais. Não se deve confundi-los. Um uniforme ou um local de atuação é-lhes bastante conveniente.
     O cristal de massa é duradouro. Seu tamanho jamais se altera. Seus membros são treinados em sua atividade ou disposição. É possível que possuam funções distribuídas entre si, qual numa orquestra, mas é importante que se manifestem como um todo. Aquele que os vê ou vivencia tem de sentir, antes de mais nada, que eles jamais se dispersarão. Sua vida fora do cristal não conta. Mesmo quando se trata de uma profissão, como no caso dos músicos de orquestra, jamais se pensará em sua existência privada: eles são a orquestra. Em outros casos, apresentam-se uniformizados, e só assim são vistos reunidos. Tão logo tiram o uniforme, são homens completamente diferentes. Soldados e monges podem ser caracterizados como a forma mais importante assumida por essa espécie. O uniforme exprime aí que os membros de um cristal moram juntos; mesmo quando aparecem individualmente, pensa-se sempre na sólida unidade à qual pertencem — o monastério ou a divisão do exército.
     A clareza, o isolamento e a constância do cristal contrastam enormemente com os acontecimentos agitados que se desenrolam no interior da massa. Não atuam no interior do cristal o processo de crescimento rápido e incontrolável e a ameaça da desagregação que conferem à massa sua inquietude característica. Mesmo no ápice de sua excitação, ele sempre se distingue dela. Qualquer que seja a massa à qual ele dê ensejo — e por mais que, aparentemente, ele se dissolva nela —, o cristal jamais perderá inteiramente o sentimento de sua singularidade, voltando a reunir-se logo após a desagregação da massa.
     A massa fechada difere do cristal não apenas por sua maior amplitude, mas também por um sentimento mais espontâneo de si própria, bem como pela impossibilidade de admitir qualquer distribuição séria de funções. Na realidade, excetuando-se a clara delimitação e a repetição regular, ela tem pouco mais em comum com o cristal. Neste, porém, tudo é fronteira; cada indivíduo que o compõe constitui-se de uma fronteira. Contrariamente a isso, a fronteira da massa fechada é fixada em seu limite exterior — na forma e no tamanho do edifício no qual ela se reúne, por exemplo. Interiormente a essa fronteira — lá, onde cada um de seus participantes comprime-se contra os demais —, ela permanece fluida, razão pela qual as surpresas, como uma súbita e inesperada mudança de comportamento, são sempre possíveis. A massa fechada pode sempre, mesmo nessa sua constituição delimitada, atingir um grau de densidade e intensidade que conduza a sua erupção. O cristal de massa, por outro lado, é invariavelmente estático. Seu tipo de atividade foi-lhe prescrito, e ele tem consciência exata de suas manifestações ou movimentos.
     Espantosa é também a permanência histórica do cristal de massa. Novas formas, é certo, estão sempre se constituindo, mas, em sua obstinação, as antigas seguem existindo paralelamente a elas. É possível que, temporariamente, recuem para um segundo plano e percam algo de sua agudeza e de seu caráter imperioso. As massas a elas pertencentes talvez tenham perecido, ou sido totalmente reprimidas. Mas, na condição de grupos inofensivos, incapazes de produzir qualquer efeito exterior, os cristais seguem existindo por si sós. Pequenos grupos de comunidades religiosas ainda subsistem em países que mudaram inteiramente sua crença. O momento de sua reutilização é tão certo quanto a existência de novas espécies de massa a cuja excitação e desencadeamento elas podem prestar-se. Todos esses grupos enrijecidos em seu repouso podem ser resgatados e reativados. Pode-se reanimá-los e, a partir de insignificantes alterações em sua constituição, reempregá-los como cristais de massa. Praticamente inexiste uma revolução política de maior porte que não se lembre desses grupos antigos e isolados e os tome, galvanize e empregue com tal intensidade que eles figuram então como algo inteiramente novo e perigosamente ativo.
     Mais adiante, ver-se-á em detalhe como funcionam os cristais de massa. De que maneira eles efetivamente desencadeiam massas, tal somente se deixa demonstrar a partir de casos concretos. Os cristais apresentam constituição diversa e, por isso, conduzem também a massas bastante diversas. Quase que imperceptivelmente, tomar-se-á conhecimento de uma série deles no decorrer desta investigação.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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