sexta-feira, 9 de maio de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - y)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(y)

continuando...

      Fomos ao encontro das outras para voltar. Agora eu sabia que amava Albertine; mas infelizmente não me preocupava em confessar-lhe o meu amor. É que, desde o tempo em que brincava nos Champs-Élysées, minha concepção de amor tomara-se muito diversa, enquanto as criaturas a que sucessivamente se prendia o meu amor permaneciam quase idênticas. Por um lado, a confissão, a declaração do meu afeto àquela a quem amava já não me parecia uma das cenas capitais e necessárias do amor; e nem este seria uma realidade exterior, mas simplesmente um prazer subjetivo. E esse prazer, eu sentia que Albertine tanto mais faria o que fosse necessário para alimentá-lo quanto ignorasse que eu o experimentava.
     Durante todo o caminho de volta, a imagem de Albertine, afogada na luz que emanava das outras, não foi a única a existir para mim. Mas como a lua, que durante o dia não passa de uma pequena nuvem branca de uma forma mais caracterizada e mais fixa, assume toda a sua força quando o dia se esvai, assim, logo que entrei no hotel, foi somente a imagem de Albertine que se ergueu do meu coração e se pôs a brilhar.
     De súbito, meu quarto parecia novo. Claro, havia muito que já não era o aposento inimigo do primeiro dia. Modificamos sem cessar a nossa morada ao nosso redor; e, à medida que o hábito nos dispensa de sentir, suprimimos os elementos nocivos de cor, de dimensão e de cheiro que causavam nosso mal-estar. Não era mais o quarto, bastante poderoso ainda sobre a minha sensibilidade, certamente não para me fazer sofrer, mas para me proporcionar alegria, a bacia dos belos dias, semelhante a uma piscina pela metade, de que eles faziam resplandecer um azul úmido de luz, a que recobria por um instante, impalpável e branca feito uma emanação de calor, uma vela refletida e fugitiva; nem o quarto puramente estético das noites pictóricas; era o quarto em que estava há tantos dias que já não o via. Ora, eis que eu principiava a abrir os olhos para ele, mas desta vez da perspectiva egoísta que é a do amor. Imaginava que o belo espelho oblíquo, as elegantes estantes envidraçadas dariam a Albertine, se viesse me visitar, uma boa ideia a meu respeito. Em vez de um lugar de transição onde eu passasse por um momento antes de fugir para a praia ou para Rivebelle, meu quarto se tornaria real e querido para mim, renovando-se, pois eu olharia e apreciaria cada móvel com os olhos de Albertine.
     Alguns dias após o jogo do anel, tendo-nos distanciado demais num passeio e como ficássemos bem contentes por encontrar em Maineville dois pequenos tonneaux de dois lugares, que nos permitiriam voltar à hora do jantar, a vivacidade já bastante acentuada do meu amor por Albertine teve como efeito que fosse sucessivamente a Rosemonde e a Andrée que eu propusesse subissem comigo, e nem uma só vez a Albertine; a seguir, sempre convidando de preferência Andrée ou Rosemonde, levei todo o mundo, por motivos secundários de hora, caminho ou de capas, a decidir, como contra a minha vontade, que o mais prático seria levar comigo Albertine, a cuja companhia eu fingia me resignar mais ou menos. Infelizmente o amor, tendendo à assimilação completa de um ser, e como nenhum é comestível só pela conversação, Albertine, por mais que se mostrasse gentil durante esse retorno em que a levei para casa, deixou-me feliz, porém ainda mais esfomeado por ela do que estava ao partir, e contando os momentos que acabávamos de passar juntos apenas como um prelúdio, sem muita importância em si mesmo, dos que se seguiriam. Entretanto, possuía esse primeiro encanto que jamais se volta a encontrar. Ainda não pedira coisa alguma a Albertine. Ela podia imaginar o que eu desejava, mas, não tendo certeza, supor também que me inclinava a relações sem um fim determinado, nas quais devia a minha amiga achar esse vago delicioso, rico em surpresas esperadas, que é o romanesco.
     Na semana seguinte, quase não tentei ver Albertine. Fingia preferir Andrée. O amor se inicia, e desejaríamos continuar para aquela a quem ama o desconhecido que ela pode amar, mas temos necessidade dela, temos necessidade de tocar menos o seu corpo que sua atenção, seu coração. Insinuamos numa carta uma maldade que obrigará a indiferente a nos pedir um favor, e o amor, segundo uma técnica infalível, aperta para nós, num movimento alternado, a engrenagem na qual não se pode mais amar nem ser amado. Consagrava a Andrée as horas em que as outras iam a alguma reunião matinal que eu sabia que Andrée sacrificaria por mim com prazer, e que mesmo com tédio teria sacrificado, por elegância moral, para não dar às outras, nem a si mesma, a ideia de que atribuía valor a um prazer relativamente mundano. Assim, eu dispunha de modo a tê-la todas as noites só para mim, não pensando em fazer ciúmes em Albertine mas aumentar a seus olhos o meu prestígio ou, pelo menos, não perdê-lo revelando-lhe que era a ela e não a Andrée quem eu amava. Tampouco o dizia a Andrée, receando que ela o fosse contar a Albertine. Quando falava de Albertine a Andrée, afetava uma frieza pela qual esta foi talvez menos enganada do que eu com sua aparente credulidade. Fingia acreditar em minha indiferença por Albertine e desejar a união mais completa possível entre mim e Albertine. É provável que, pelo contrário, ela não acreditasse na primeira nem desejasse a segunda. Enquanto lhe dizia que pouco me importava com sua amiga, eu só pensava em uma coisa: tentar travar relações com a Sra. Bontemps, que estava por algum tempo nas vizinhanças de Balbec e com quem Albertine devia ir passar em breve três dias. Naturalmente não deixei transparecer esse desejo a Andrée e, quando lhe falei da família de Albertine, assumi um ar bastante distraído.
     As respostas explícitas de Andrée não pareciam pôr em dúvida a minha sinceridade. Por que então ocorreu-lhe num daqueles dias comentar comigo: 

- Justamente acabei de ver a tia de Albertine"? 

     Certamente não me dissera: 

"Percebi muito bem pelas suas palavras, lançadas como que ao acaso, que você só pensava em travar relações com a tia de Albertine."

     Mas era bem à presença, no espírito de Andrée, de semelhante ideia que ela achava mais bonito me ocultar, que parecia referir-se a palavra "justamente". Era da família de certos olhares, de certos gestos, que, embora não tenham uma forma lógica, racional, diretamente elaborada pela inteligência de quem a escuta, lhe chegam todavia com seu significado verdadeiro, assim como a palavra humana, mudada em eletricidade no telefone, se refaz palavra para ser ouvida. A fim de apagar do espírito de Andrée a ideia de que me interessava pela Sra. Bontemps, não falei mais dela apenas distraído, mas com malquerença; disse ter encontrado antigamente essa espécie de louca e esperava que isso nunca mais ocorresse. Ora, ao contrário, eu procurava encontrá-la de qualquer modo.
     Tentei obter de Elstir, mas sem dizer a ninguém que o havia solicitado, que lhe falasse de mim e me reunisse a ela. Ele prometeu-me fazer conhecê-la, espantando-se contudo de que eu o desejasse, pois julgava-a uma mulher desprezível, intrigante e tão desinteressante como interesseira. Pensando que, se visse a Sra. Bontemps, Andrée o saberia mais cedo ou mais tarde, julguei que era melhor avisá-la.

- As coisas de que a gente mais procura fugir são as que chegam sem que possamos evitá-las. - disse-lhe. - Nada no mundo pode me aborrecer tanto como encontrar a Sra. Bontemps e, no entanto, não tenho como lhe escapar; Elstir deve me convidar com ela. 
- Nunca duvidei um só instante - exclamou Andrée num tom amargo, enquanto seu olhar, engrandecido e alterado pelo descontentamento, fixava-se em alguma coisa invisível. 

     Estas palavras de Andrée não constituíam a mais ordenada exposição de um pensamento que assim pode resumir-se: 

"Sei muito bem que você ama Albertine e que faz de tudo para se aproximar de sua família."

     Mas eram as ruínas informes e reconstituíveis desse pensamento o que eu fizera explodir, ao me chocar com ele, apesar de Andrée. Assim como o "justamente", essas palavras só tinham significado em grau secundário. Isto é, eram dessas que, ao contrário das afirmações diretas, nos inspiram estima ou desconfiança para com alguém, ou nos fazem brigar com ele.
     Visto que Andrée não me acreditara quando lhe dizia que a família de Albertine me era indiferente, é que ela pensava que eu amava Albertine. E provavelmente não se sentia feliz com isso. Em geral, ela bancava o terceiro em meus encontros com sua amiga. Entretanto, havia dias em que eu devia ver Albertine sozinha, dias que esperava em febre, que passavam sem nada me trazer de decisivo, sem terem sido esse dia crucial cujo papel eu confiava imediatamente ao dia seguinte, que igualmente não o sustentaria; escoavam-se desse modo, sucessivamente como ondas, esses cumes logo substituídos por outros.
      Cerca de um mês depois do dia em que tínhamos brincado o jogo do anel, disseram-me que Albertine devia partir na manhã seguinte para ir passar 48 horas na casa da Sra. Bontemps, e, obrigada a tomar o trem muito cedo, viria dormir na véspera no Grande Hotel, de onde, de ônibus, poderia, sem incomodar as amigas em cuja casa habitava, tomar o primeiro trem. Falei sobre isso a Andrée.

- Não creio de jeito nenhum. - disse Andrée com ar descontente.- Aliás, isso não lhe adiantaria nada, pois tenho certeza que Albertine não vai querer vê-lo, caso for sozinha ao hotel. Não seria protocolar - acrescentou, empregando um adjetivo de que muito gostava, desde pouco, no sentido de "aquilo que se faz". Digo isto porque sei das ideias de Albertine. A mim, que me importa que você a veja ou não? Tanto faz.

      Reuniu-se a nós Octave, que não pôs obstáculos em dizer a Andrée o número de pontos que obtivera no golfe, na véspera, e depois Albertine, que passeava jogando o seu diabolô, como uma freira empunha o seu rosário. Graças a tal jogo ela podia ficar horas sozinha sem se aborrecer. Logo que se ajuntou a nós, surgiu-me a ponta rebelde de seu nariz, que eu havia omitido ao pensar nela nos últimos dias debaixo de seus cabelos pretos, a verticalidade da testa se opunha, e não pela primeira vez, à imagem indecisa que dela guardara, ao passo que, com sua brancura, mordiscava fortemente o meu olhar; saindo da poeira das lembranças, Albertine se reconstruía à minha frente. O golfe dá o hábito dos prazeres solitários. Aquele proporcionado pelo diabolô certamente o é. No entanto, depois de se reunir conosco, Albertine continuou a jogá-lo, sempre conversando com a gente, como uma dama a quem as amigas vieram visitar nem por isso pára de fazer crochê. 

- Parece que a Sra. de Villeparisis - disse ela a Octave - fez uma reclamação ao senhor seu pai - (Eu ouvi, por detrás da palavra "parece", uma dessas notas que eram bem de Albertine; cada vez que percebia tê-las esquecido, lembrava-me, ao mesmo tempo, de já ter entrevisto atrás delas a fisionomia decidida e francesa de Albertine. Poderia ser cego e conhecer muito bem algumas das qualidades alertas e um tanto provincianas dessas notas e da ponta do seu nariz. Umas e outro se equivaliam e teriam podido substituir-se, e sua voz era como o que dizem há de realizar o fototelefone do futuro: no som se recortava com nitidez a imagem visual). -Aliás, ela não escreveu apenas ao senhor seu pai, mas, ao mesmo tempo, ao prefeito de Balbec, para que não joguem mais diabolô no molhe. Atiraram-lhe uma bola à cara.

- Sim, eu o ouvi falar dessa reclamação. É ridícula. Já não há tantas distrações por aqui. 

     Andrée não se imiscuiu na conversação. Não conhecia, como tampouco Albertine e Octave, a Sra. de Villeparisis. 

- Não sei por que essa senhora criou tamanho caso. - disse ela no entanto. - A velha Sra. de Cambremer também levou uma bolada mas não se queixou.
- Vou lhe explicar a diferença - respondeu gravemente Octave, riscando um fósforo. -É que, na minha opinião, a Sra. de Cambremer é uma dama da sociedade e a Sra. de Villeparisis é uma arrivista. Vocês vão ao golfe esta tarde? 

     E nos deixou, bem como Andrée. Fiquei sozinho com Albertine. 

- Olhe. - disse ela -, eu agora arrumo os cabelos do jeito que você gosta; veja a minha mecha. Todo mundo zomba disso e ninguém sabe por quem me arrumo assim. Minha tia também vai rir de mim. Tampouco lhe direi o motivo. 

     Eu via de lado as faces de Albertine que muitas vezes pareciam pálidas; porém assim, banhadas por um sangue claro que as iluminava, adquiriam esse brilho que têm certas manhãs de inverno em que as pedras, parcialmente ensolaradas, parecem granito róseo e desprendem alegria. A que me dava naquele instante a vista das faces de Albertine era bem viva, mas levava a um outro desejo que não era o de passear, e sim o de beijar. Perguntei-lhe se eram verdadeiros os projetos que lhe atribuíam.

-Sim - disse ela -,vou passar esta noite no seu hotel e até vou deitar antes do jantar, pois estou um pouco resfriada. Você poderá vir assistir ao meu jantar, ao lado da cama, e depois poderemos jogar o que você quiser. Ficaria contente se for à estação amanhã de manhã, mas tenho medo que isso pareça meio estranho, não digo a Andrée, que é inteligente, mas às outras que lá estarão; iria provocar histórias se o repetissem à minha tia; mas poderíamos passar juntos o serão. Minha tia não saberá nada disso. Vou me despedir de Andrée. Então, até logo mais. Venha cedo para que tenhamos boas horas a nosso dispor - acrescentou sorrindo.

     A essas palavras, fui mais além do que nos tempos em que amava Gilberte, àqueles em que o amor me parecia uma entidade não só exterior, mas realizável. Ao passo que a Gilberte que eu via nos Champs-Élysées era uma outra diversa da que eu encontrava em mim desde que estava sozinho, de súbito, na Albertine real, a que eu via diariamente, que eu julgava cheia de preconceitos pequeno-burgueses e tão franca com a tia, vinha encarnar-se a Albertine imaginária, aquela por quem, quando não a conhecia ainda, me avaliara furtivamente molhado no molhe, a que parecia voltar a contragosto enquanto via que me afastava.
      Fui jantar com minha avó; sentia em mim um segredo que ela não conhecia. Do mesmo modo, quanto a Albertine, amanhã suas amigas estariam com ela sem saber o que havia de novo entre nós dois e, ao beijar a sobrinha na testa, a Sra. Bontemps ignoraria que eu estava entre ambas, naquele arranjo de cabelos que tinha por objetivo, oculto a todos, ser agradável a mim, a mim que até então tanto invejara a Sra. Bontemps porque, aparentada às mesmas pessoas que a sobrinha, precisava usar os mesmos lutos, fazer as mesmas visitas de família; ora, acontecia que eu era para Albertine mais do que a sua própria tia. Junto desta, era em mim que ela pensaria.
     Não sabia muito bem o que se passaria dali a pouco. Em todo o caso, o Grande Hotel e o serão já não me pareceriam vazios; continha a minha felicidade. Chamei o elevador para subir ao quarto que Albertine ocupava, que dava para o vale. Os menores movimentos, como sentar-me na banqueta do ascensorista, eram-me suaves, pois tinham relação imediata com meu coração; eu não via, nas cordas que faziam o aparelho subir, nos poucos degraus que me restava galgar, senão as rodas, os degraus materializados da minha alegria. Bastavam-me dois ou três passos a dar no corredor antes de chegar àquele quarto onde estava encerrada a preciosa substância daquele corpo rosado-esse quarto que, mesmo que ali se devessem desenrolar atos deliciosos, conservava aquela permanência, aquele ar de ser, para um transeunte não informado, semelhante a todos os outros, que fazem das coisas as testemunhas obstinadamente mudas, os escrupulosos confidentes, os depositários invioláveis do prazer.
     Esses poucos passos do patamar ao quarto de Albertine, esses passos que ninguém mais podia interromper, transpu-los com delícias, com prudência, como que mergulhado num elemento novo, como se, avançando, eu estivesse lentamente deslocando felicidade e, ao mesmo tempo, com um sentimento desconhecido de onipotência, e de entrar enfim de posse de uma herança que me pertencera o tempo todo. Depois, de súbito, pensei que errara em manter dúvidas; ela me dissera que fosse quando estivesse deitada.
     Era evidente: eu sapateava de alegria; quase atirei Françoise no chão porque estava no meu caminho; corria, os olhos cintilantes, para o quarto da minha amiga. Encontrei Albertine na cama. Descobrindo-lhe o pescoço, a camisola branca mudava as proporções do seu rosto, o qual, congestionado pela cama, pela gripe, ou pelo jantar, parecia mais róseo; pensei nas cores que tivera algumas horas antes, a meu lado, no molhe, e das quais iria enfim saber o gosto; a face estava atravessada, de alto a baixo, por uma de suas tranças negras e encaracoladas, que, para me agradar, desfizera completamente. Olhava-me sorrindo. A seu lado, na janela, o vale estava iluminado pelo luar. A visão do pescoço despido de Albertine, daquelas faces muito rosadas, me deu tal embriaguez (ou seja, pusera para mim a realidade do mundo não mais na natureza, mas na torrente de sensações que eu mal podia conter) que rompeu o equilíbrio entre a vida imensa, indestrutível, que rolava no meu ser, e a vida do universo, comparativamente tão mesquinha. O mar, que eu percebia perto do vale, na janela, os seios arqueados dos primeiros rochedos de Maineville, o céu onde a lua ainda não alcançara o zênite, tudo isso parecia mais leve de carregar do que plumas para os globos de minhas pupilas que, entre as pálpebras, eu sentia dilatadas, resistentes, prontas para erguer muitos outros fardos, todas as montanhas do mundo, sobre sua superfície delicada. Seu orbe já não se encontrava bastante preenchido pela própria esfera do horizonte. E tudo o que a natureza pudesse me trazer de vida teria me parecido bem pouco, os sopros marinhos me pareceriam curtos demais para a imensa aspiração que soerguia o meu peito. Inclinei-me para Albertine a fim de beijá-la. Ainda que a morte devesse me tocar naquele momento, isso me pareceria indiferente, ou melhor, impossível, pois a vida não estava fora de mim, estava em mim; eu teria sorrido com pena se um filósofo me externasse a ideia de que um dia, mesmo afastado, eu teria de morrer, que as forças eternas da natureza me sobreviveriam, as forças dessa natureza sob cujos pés divinos eu não passava de um grão de poeira; que, depois de mim, haveria ainda aquelas falésias arredondadas e arqueadas, aquele mar, aquele luar, aquele céu! Como seria possível isto, como poderia o mundo existir mais que eu, visto que eu não estava perdido nele, mas ele é que estava contido em mim, em mim que ele estava longe de preencher, em mim, onde, sentindo lugar para acumular tantos outros tesouros, eu jogava desdenhosamente para um canto, céu, mar e rochedos?

- Acabe com isso, ou eu toco a campainha - exclamou Albertine, vendo que me lançava sobre ela para beijá-la. Mas eu dizia comigo que não era para ficar sem fazer coisa alguma que uma moça convidava um rapaz para entrar às escondidas no seu quarto, manobrando para que sua tia não soubesse de nada, e que além disso a audácia é proveitosa para quem sabe desfrutar as ocasiões; no estado de exaltação em que me encontrava, o rosto redondo de Albertine, iluminado por um fogo interior como por uma lamparina, assumia para mim um tal relevo que, imitando a rotação de uma esfera ardente, parecia-me girar como as figuras de Michelangelo que um imóvel e vertiginoso turbilhão arrasta. Eu ia conhecer o aroma, o sabor desse desconhecido fruto róseo. Ouvi um som precipitado, prolongado e estridente. Albertine tocara a campainha com todas as forças.

      Julgara que o amor que sentia por Albertine não se baseava na esperança da posse física. Entretanto, quando me pareceu resultar da experiência daquela noite que essa posse era impossível e que, depois de não ter duvidado, no primeiro dia, na praia, que Albertine fosse uma sem-vergonha, e de ter passado depois por suposições intermediárias, pareceu-me certo, em definitivo, que ela era absolutamente virtuosa; quando, ao voltar da casa da tia, oito dias mais tarde, disse-me com frieza:

- Perdoo-o; lamento até lhe ter causado desgosto, mas não recomece nunca mais, ao contrário do que ocorrera quando Bloch me havia dito que eu poderia possuir todas as mulheres, e como se, ao invés de uma moça real, eu tivesse conhecido uma boneca de cera, deu-se que pouco a pouco se foi destacando dela o meu desejo de penetrar em sua vida, de acompanhá-la nas terras onde passara a infância, de ser iniciado por ela numa vida desportiva; e minha curiosidade intelectual sobre o que ela pensava acerca de tal ou qual assunto não sobreviveu à crença de que poderia beijá-la. Meus sonhos a abandonaram desde que deixaram de ser alimentados pela esperança de uma posse, da qual os julgara independentes. Desde então viram se livres para se referir - conforme o encanto que lhes achasse um certo dia, sobretudo conforme a possibilidade e as chances que entrevia de ser amado por elas - a esta ou aquela das amigas de Albertine, principalmente Andrée. No entanto, se Albertine não tivesse existido, talvez eu não tivesse sentido o prazer que principiei a sentir cada vez mais, nos dias seguintes, diante da gentileza que me testemunhava Andrée. Albertine não contara a ninguém o fracasso que eu experimentara com ela.

     Era uma dessas moças bonitas que, desde a extrema juventude, por sua beleza, mas principalmente por um atrativo, um encanto que permanece bem misterioso e que tem suas origens talvez nas reservas de vitalidade onde os menos favorecidos pela natureza vêm se saciar, sempre - em sua família, no meio das amigas, na sociedade - agradaram mais que outras mais belas, mais ricas; era dessas criaturas a quem, antes da idade do amor e bem mais ainda quando ele chega, se pede mais do que elas pedem e até mais do que podem dar. Desde a infância, Albertine tivera sempre em admiração a seu redor quatro ou cinco amiguinhas, entre as quais Andrée, que lhe era tão superior e o sabia (e talvez essa atração exercida por Albertine tão involuntariamente estivesse na origem, tivesse servido para a fundação do pequeno grupo). Essa atração se exercia mesmo bem longe, nos ambientes relativamente mais brilhantes onde, se houvesse uma pavana para dançar, Albertine era solicitada de preferência a uma jovem mais bem-nascida. O resultado era que, não tendo um tostão de dote, vivendo bastante mal, aliás, a cargo do Sr. Bontemps, que diziam ser corrupto e desejar livrar-se dela, ela era no entanto convidada não só para jantar mas para morar em casa de pessoas que, aos olhos de Saint-Loup, não teriam qualquer elegância, mas que, para a mãe de Rosemonde ou para a mãe de Andrée, mulheres muito ricas mas que não conheciam tais pessoas, representavam algo enorme. Assim, Albertine passava, todos os anos, algumas semanas com a família de um diretor do Banco da França, presidente do Conselho de administração de uma grande companhia de estradas de ferro. A mulher desse financista recebia personagens importantes e jamais cumprimentara a mãe de Andrée, a qual achava descortês essa dama, mas nem por isso se sentia menos prodigiosamente interessada por tudo o que se passava na casa dela. Assim, todos os anos exortava Andrée a convidar Albertine para a sua vivenda, porque, dizia, era uma boa obra oferecer uma temporada à beira-mar a uma menina que não tinha nada de seu para viajar e com quem a tia praticamente não se importava; a mãe de Andrée provavelmente não era movida pela esperança de que o diretor do Banco e sua esposa, sabendo que Albertine era mimada por ela e sua filha, formassem uma melhor opinião sobre ambas; com muito maior razão, não esperava que Albertine, contudo tão boa e hábil, soubesse fazê-la ser convidada, ou, pelo menos, que conseguisse convidar Andrée para os garden-party do financista. Mas todas as noites, ao jantar, sempre assumindo um ar de indiferença e desdém, ela ficava encantada ao ouvir Albertine lhe contar o que se passara no castelo durante a sua permanência, as pessoas que ali tinham sido recebidas, quase todas conhecidas dela de vista ou pelo nome. Mesmo a ideia de que ela não os conhecia senão desse modo, ou seja, simplesmente não os conhecia (ela chamava a isto conhecer as pessoas "desde sempre") conferia uma ponta de melancolia à mãe de Andrée, enquanto fazia a Albertine perguntas sobre eles com ar altivo e distraído, com a extremidade dos lábios, e que poderia deixá-la inquieta e insegura quanto à importância de sua própria condição, caso não se tranquilizasse a si mesma e se recolocasse na "realidade da vida" dizendo ao mordomo: 

- Diga ao chefe que suas ervilhas não estão bem cozidas.

     Recuperava então a sua serenidade. E estava mesmo disposta a que Andrée só se casasse com um homem, de excelente família, é claro, mas suficientemente rico para que ela também pudesse ter um chefe de cozinha e dois cocheiros. Era isso o positivo, a verdade efetiva de uma situação social. Mas que Albertine houvesse jantado no castelo do diretor do Banco com essa ou aquela dama, que essa dama chegasse mesmo a convidá-la para o inverno seguinte, isso não deixava de trazer à moça, no modo de ver da mãe de Andrée, uma espécie de consideração particular que se casava muito bem à piedade e até ao desprezo excitados pelo seu infortúnio, desprezo aumentado pelo fato de o Sr. Bontemps haver traído a sua bandeira aliando se ao governo e até mesmo vagamente panamista, ao que diziam. O que, aliás, não impedia que a mãe de Andrée, por amor à verdade, fulminasse com seu desprezo as pessoas que davam a impressão de crer que Albertine fosse de baixa extração.

- Como, é o que há de melhor, são Simonets com um só.

      Certamente, devido ao meio em que tudo isso ia evoluindo, em que o dinheiro desempenha tal papel, e onde a elegância faz com que nos convidem mas não com que nos desposem, nenhum casamento "aceitável" poderia ser, para Albertine, a consequência útil da consideração tão distinta de que ela gozava e que não teriam julgado compensadora de sua pobreza. Mas só por si mesmos, e sem trazer esperança de uma consequência matrimonial, tais "sucessos" excitavam a inveja de certas mães maldosas, que se encolerizavam por ver Albertine ser recebida como "filha da casa" pela mulher do diretor do Banco, e até pela mãe de Andrée, a quem mal conheciam. Assim, diziam a amigos comuns a elas e a essas duas damas, que estas ficariam indignadas se soubessem a verdade, isto é, que Albertine contava na casa de uma (e vice-versa) tudo o que a intimidade em que a admitiam imprudentemente lhe permitia descobrir sobre a outra, mil pequenos segredos que seria infinitamente desagradável à interessada ver desvendados. Tais mulheres invejosas diziam isto para que se espalhasse e para que Albertine fosse mal vista pelos seus protetores. Mas semelhante política, como ocorre muitas vezes, não alcançava nenhum êxito. Sentia-se demais a maldade que a inspirava, e isto só fazia desprezar ainda mais aquelas que tinham tomado tal iniciativa. A mãe de Andrée estava bem determinada a respeito de Albertine para que mudasse de opinião. Considerava-a uma "infeliz", mas de índole excelente, e que não sabia o que mais inventar para agradar.
     Se essa espécie de fama que obtivera Albertine não parecia comportar nenhum resultado prático, ela imprimira à amiga de Andrée o caráter distintivo das criaturas que, sempre solicitadas, jamais têm necessidade de se oferecer (caráter que também se encontra, por motivos análogos, num outro extremo da sociedade, nas mulheres de grande elegância) e que é não exibirem o sucesso que obtêm, mas antes ocultá-lo. Ela nunca dizia de alguém:

"Ele tem vontade de me ver", falava de todos com grande benevolência e como se fosse ela quem corresse atrás, procurasse os outros. Se falavam de um rapaz que minutos antes lhe havia feito pessoalmente as mais amargas censuras, porque ela lhe recusara um encontro, bem longe de se gabar publicamente ou de lhe querer mal, Albertine o elogiava:

- É um excelente rapaz. 

     Ficava mesmo muito aborrecida que se agradassem tanto dela, pois aquilo a obrigava a causar mágoa, ao passo que, por sua natureza, gostava de causar prazer. Gostava mesmo de causar prazer ao ponto de ter dito uma mentira especial a certas pessoas utilitárias, a certos homens vitoriosos. Existindo, aliás, em estado embrionário, em um número enorme de pessoas, esse tipo de insinceridade consiste em não saber se contentar com um único ato, em causar prazer, graças a este, a uma só pessoa. Por exemplo, se a tia de Albertine desejava que a sobrinha a acompanhasse a uma reunião matinal pouco divertida, Albertine, comparecendo, poderia achar suficiente o proveito moral de ter dado prazer à tia. Mas, acolhida gentilmente pelos donos da casa, preferia lhes dizer que desejava há muito visitá-los e que escolhera aquela ocasião e solicitara a permissão da tia. Isto ainda não era bastante: naquela matinê se achava presente uma das amigas de Albertine que tivera um grande desgosto. Albertine lhe dizia: 

- Não quis te deixar sozinha, julguei que te faria bem que eu estivesse junto de ti. Se queres que deixemos a matinê, vamos a outro lugar; farei o que quiseres, pois acima de tudo desejo te ver menos triste - (o que aliás também era verdade).

      Às vezes, no entanto, ocorria que o objetivo fictício destruía a finalidade real. Assim, tendo Albertine um serviço a pedir para uma das amigas, ia por esse motivo visitar uma certa dama. Mas, logo ao chegar à casa dessa dama bondosa e simpática, ela, obedecendo sem querer ao princípio de utilização múltipla de uma única ação, achava mais afetuoso dar a impressão de ter vindo apenas devido ao prazer que sentia que iria experimentar ao rever aquela dama. Esta ficava muito sensibilizada pelo fato de Albertine ter percorrido um longo trajeto por pura amizade.
     Vendo a dama quase comovida, Albertine gostava ainda mais dela. Unicamente, acontecia o seguinte: experimentava tão vivamente o prazer da amizade pelo qual mentirosamente pretendia ter vindo, que temia que a senhora duvidasse dos sentimentos, na verdade sinceros, se ela lhe pedisse o obséquio para a amiga. A dama julgaria que Albertine a fora visitar para aquilo, o que era verdadeiro, mas concluiria que Albertine não sentia prazer desinteressado em vê-la, o que era falso. De modo que Albertine voltava sem lhe ter pedido o obséquio, como os homens que foram tão bons com uma mulher na esperança de obter os seus favores, que não se declaram a elas para que essa bondade mantenha um caráter de nobreza. Em outros casos, não se pode dizer que o objetivo verdadeiro fosse sacrificado ao objetivo acessório e imaginado posteriormente, mas o primeiro era de tal modo oposto ao segundo que, se a pessoa que Albertine comovia ao lhe declarar um ficasse conhecendo o outro, seu prazer logo se transformaria no desgosto mais profundo. A sequência da narrativa fará melhor compreender, bem mais adiante, esse gênero de contradições. Digamos, com um exemplo tirado a uma ordem de fatos muito diversos, que são muito frequentes nas mais variadas situações que a vida oferece.
     Um marido instalou sua amante na cidade em cujo quartel está servindo. Sua mulher, que ficou em Paris e está relativamente a par da verdade, mostra-se desolada, escrevendo ao marido cartas cheias de ciúme. Ora, a amante é obrigada a vir passar um dia em Paris. O marido não pode resistir a seus pedidos de acompanhá-la e obtém uma licença de 24 horas. Mas, como é uma boa pessoa e sofre por causar desgosto à esposa, chega em casa e lhe diz, derramando algumas lágrimas sinceras, que, transtornado pelas cartas dela, arranjou um meio de a vir consolar e abraçar. Assim, achou um meio de dar, com uma só viagem, uma prova de amor ao mesmo tempo à esposa e à amante. Mas, se a esposa soubesse o motivo pelo qual o marido tinha vindo a Paris, sua alegria se iria mudar sem dúvida em desgosto, a não ser que visse que o ingrato a tornava, apesar de tudo, mais feliz do que infeliz com suas mentiras. Entre os homens que me pareceram praticar mais assiduamente o sistema de fins múltiplos está o Sr. de Norpois. Às vezes aceitava ser o intermediário entre dois amigos brigados, e isto fazia com que o chamassem o mais obsequioso dos homens. Mas não lhe bastava dar a impressão de prestar um serviço a quem o solicitara; apresentava ao outro as negociações que fazia junto a ele como empreendidas, não a pedido do primeiro, mas no interesse do segundo, o que persuadia facilmente um interlocutor sugestionado de antemão pela ideia de que tinha à sua frente "o mais serviçal dos homens". Dessa forma, jogando em dois tabuleiros, fazendo o que em linguagem de teatro se chama contraparte, jamais deixava que sua influência corresse qualquer risco, e os serviços que prestava não constituíam uma alienação e sim uma frutificação de uma parte do seu crédito. Por outro lado, todo serviço prestado, parecendo duplamente retribuído, aumentava ainda mais a sua reputação de amigo serviçal, e serviçal com eficiência, que não faz esforços inúteis, cujos passos dão sempre bom resultado, o que era demonstrado pelo reconhecimento dos dois interessados. Essa duplicidade no obséquio era, e com desmentidos como em toda criatura humana, uma parte importante do caráter do Sr. de Norpois. E muitas vezes, no Ministério, servia se de meu pai, que era bastante ingênuo, fazendo-o crer que o estava servindo.
     Agradando mais do que desejava e não tendo necessidade de alardear o seu sucesso, Albertine guardou silêncio sobre a cena que tivera comigo ao lado da cama, e que uma moça feia gostaria de ter dado ciência ao universo inteiro. Além disso, eu não conseguia me explicar sua atitude naquela cena. Pelo que respeita à hipótese de uma virtude absoluta (hipótese que a princípio atribuíra à violência com que Albertine recusara se deixar beijar e agarrar por mim e que, de resto, não era de modo algum indispensável à minha concepção da bondade, da honestidade essencial da minha amiga), não deixei de examiná-la por diversas vezes. Essa hipótese era bem o contrário da que eu levantara no primeiro dia em que vira Albertine. Depois, tantos atos diferentes, todos de gentileza para comigo (uma gentileza carinhosa, às vezes inquieta, alarmada, ciumenta de minha predileção por Andrée), banhavam por todos os lados o gesto rude com o qual, para fugir de mim, ela tocara a campainha. Por que então me pedira para vir passar o serão junto de sua cama? Por que falava o tempo todo a linguagem da ternura? Sobre o que repousa o desejo de ver um amigo, de temer que ele lhe prefira a sua amiga, de tentar agradá-lo, de lhe dizer romanescamente que as outras não saberão que passou o serão com ela, se lhe recusa um prazer tão simples e que não é um prazer para ela? Da mesma forma, não podia acreditar que a virtude de Albertine fosse até esse ponto e chegava a me perguntar se não houvera, para sua violência, um motivo de coqueteria, por exemplo, um aroma desagradável que julgasse ter em si e com o qual temera me incomodar, ou de pusilanimidade, se, por exemplo, julgasse, em sua ignorância das realidades do amor, que meu estado de fraqueza nervosa podia ter algo de contagioso através do beijo.
      Certamente ficou desolada por não ter podido me dar prazer e me ofereceu um pequeno lápis de ouro, devido a essa virtuosa perversidade das pessoas que, enternecidas com a nossa gentileza e não concordando em nos conceder o que ela reclama, querem todavia fazer outra coisa em nosso favor: o crítico, cujo artigo lisonjearia o romancista, em vez disso o convida para jantar; a duquesa não leva o esnobe consigo ao teatro, mas manda-lhe o seu camarote para uma noite em que ela não irá. Tanto aqueles que fazem o mínimo e poderiam não fazer nada são levados pelo escrúpulo a fazer algo! Disse a Albertine que, dando-me o lápis, ela me proporcionava um grande prazer, todavia menor do que eu teria se, na noite em que ela dormira no hotel, tivesse permitido que a beijasse. 

- Isto me faria tão feliz! E o que é que lhe podia acontecer? Estou surpreso que me tenha repelido. 
- O que me espanta. - respondeu ela - é que você ache isso espantoso. Pergunto a mim mesma que tipo de moças poderá ter conhecido para que minha conduta lhe cause surpresa. 
- Estou desolado por tê-la aborrecido, mas, mesmo agora, não posso lhe dizer que considero ter procedido mal. Minha opinião é que se trata de coisas sem importância, e não compreendo que uma moça que tão facilmente pode causar prazer não consinta nisso. Entendamo-nos. - acrescentei, para dar uma meia-satisfação às suas ideias morais, lembrando-me como ela e suas amigas tinham difamado a amiga da atriz Léa -, não quero dizer que uma moça possa fazer tudo e que não existe nada que seja imoral. Assim, olhe, essas relações de que você falava outro dia a respeito de uma menina que mora em Balbec e que existiria entre ela e uma atriz, acho isso ignóbil, tão ignóbil que penso que são os inimigos dessa moça que inventaram tudo isso e que nada do que foi contado é verdade. Isto me parece improvável, impossível. Porém deixar-se beijar, e ainda mais por um amigo, já que você diz que sou seu amigo... 
- É meu amigo, mas tive outros antes de você; conheci rapazes que, asseguro-lhe, tinham por mim amizade igual. Muito bem, nenhum deles teria ousado fazer coisa semelhante. Bem sabiam o par de tapas que teriam levado. Aliás, nem pensavam nisso; a gente se apertava as mãos com toda a franqueza, como amigos, como bons camaradas; jamais nos falaríamos em beijar e não éramos menos amigos por isso. Vamos, se faz questão da minha amizade, pode ficar contente, pois é preciso que eu goste muito de você para perdoá-lo. Mas estou certa de que pouco liga para mim. Confesse que gosta mesmo é de Andrée. No fundo você tem razão; ela é muito mais amável que eu, e é deslumbrante! Ah! Os homens!

     Apesar da minha decepção recente, essas palavras de tanta franqueza, dando-me uma grande estima por Albertine, causaram-me uma doce impressão. E talvez essa impressão tivesse para mim grandes e lastimáveis consequências, pois foi por ela que principiou a se formar aquele sentimento quase familiar, aquele núcleo moral que sempre devia subsistir no meio do meu amor por Albertine. Um tal sentimento pode ser a causa de mágoas maiores. Pois, para sofrer verdadeiramente por uma mulher, é preciso ter acreditado totalmente nela. Naquele momento, esse embrião de estima moral, de amizade, permanecia no meio da minha alma como pedra de espera. Não teria podido nada, sozinho, contra a minha felicidade se tivesse continuado assim, sem aumentar, numa inércia que deveria conservar no ano seguinte e, com muito mais razão ainda, durante as últimas semanas de minha primeira temporada em Balbec. Estava em mim como um desses hóspedes que, apesar de tudo, seria mais prudente expulsar, mas que deixam que permaneça sem inquietá-lo, de tanto que os tornam provisoriamente inofensivos sua fraqueza e seu isolamento no meio de uma alma estranha.

continua na página 226...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - y)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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