em busca do tempo perdido
volume III
O Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
Até as diminuições que caracterizam o sono se refletiam no meu, mas de forma simbólica: eu não podia distinguir, na obscuridade, os rostos dos amigos que ali estavam, pois a gente dorme de olhos fechados; eu, que fazia incessantemente raciocínios verbais ao sonhar, logo que desejava falar a esses amigos sentia o som deter-se em minha garganta, pois a gente não fala distintamente no sono; queria ir-lhes ao encontro e não podia mover as pernas, pois a gente também não caminha no sonho; e, de repente, envergonhava-me de aparecer diante deles, pois a gente dorme despido. Assim, de olhos cegos, lábios selados, pernas pregadas, corpo nu, a figura do sono que meu próprio sono projetava dava a impressão dessas grandes figuras alegóricas em que Giotto representou a Inveja com uma serpente na boca, e que Swann me oferecera.
Saint-Loup veio a Paris somente por algumas horas. Conquanto me assegurasse que não
tivera ocasião de falar à prima a meu respeito:
- Ela não é nada amável, Oriane. - disse, traindo-se ingenuamente -; não é mais a minha
Oriane de outrora, mudaram-na. Juro-te que já não vale a pena que te ocupes dela. Fazes-lhe
muita honra. Não queres que te apresente à minha prima Poictiers? - acrescentou sem se dar
conta de que aquilo não me traria nenhum prazer. - Eis uma moça inteligente e que vai te agradar.
Casou-se com meu primo, o duque de Poictiers, que é um bom rapaz, mas um tanto simplório
para ela. Falei-lhe de ti. Pediu-me que te levasse para visitá-la; é bem mais bonita que Oriane, e
mais jovem. É bastante gentil, sabes? É o que há de distinto.
Eram expressões há pouco e ardentemente adotadas por Saint-Loup e que significavam
que a prima possuía uma natureza delicada:
- Não digo que seja dreyfusista, é necessário levar em conta o seu ambiente, mas enfim
ela diz: "Se ele era inocente, que horror seria que fosse para a Ilha do Diabo!" Compreendes, não
é? E depois, afinal, é uma pessoa que faz muito por suas antigas governantas; proibiu que as
mandassem subir pela escada de serviço. Asseguro-te, é uma pessoa muito distinta. No fundo,
Oriane não gosta dela porque sente que ela é mais inteligente.
Embora absorvida pela piedade que lhe causava um lacaio dos Guermantes o qual não
podia ir ver a noiva mesmo quando a duquesa estava fora, pois aquilo seria logo denunciado pelo
porteiro -, Françoise ficou aflita por não se achar presente no momento da visita de Saint-Loup,
mas é que agora também andava em visitas. Saía infalivelmente nos dias em que eu tinha
necessidade dela. Era sempre para ir ver o irmão, a sobrinha, e sobretudo a própria filha, chegada
de pouco a Paris. Já a natureza familiar dessas visitas de Françoise aumentava a minha irritação
de ser privado de seus serviços, pois previa que ela haveria de falar de cada visita como de uma
dessas coisas que e impossível dispensar, segundo as leis ensinadas em Saint-André-des
Champs. Assim, não ouvia nunca as suas desculpas sem um mau humor bastante injusto, que era
levado ao auge pela maneira não como Françoise dizia: "Fui ver o meu irmão, fui ver minha
sobrinha", mas sim: "Fui ver meu irmão, entrei correndo cumprimentar a sobrinha" (ou "minha
sobrinha a açougueira"). Quanto à filha, Françoise gostaria que voltasse a Combray. Mas a nova
parisiense, usando, como uma elegante, abreviaturas, porém vulgares, dizia que a semana que
devesse passar em Combray lhe pareceria bem comprida sem ao menos ler o 'lntran.' Muito
menos ainda queria ir à casa da irmã de Françoise nada têm de "Interessante", dando à palavra
interessante um sentido novo e horrível. Não podia decidir-se a voltar para Méséglise onde "todos
são tão idiotas", onde, no mercado, as comadres, as pétrousses, descobririam um parentesco
com ela e diriam: "Vejam, não é a filha do defunto Bazireau.'' Preferia morrer a voltar a se fixar
naquela terra, "agora que provara o gostinho da vida em Paris", e Françoise, tradicionalista, sorria
entretanto com indulgência ao espírito de inovação que a nova "parisiense" encarnava quando
dizia: "Muito bem, mãe, se não tiveres saída, é só mandar-me um ''pneu." O tempo voltara a
esfriar. - Sair? Para quê? Para acabar morrendo. - dizia Françoise que preferia ficar em casa
durante a semana em que a filha, a irmã e a açougueira tinham ido a Combray. Além disso, última
sectária em quem sobreviveu obscuramente a doutrina da minha tia Léonie no tocante à física,
Françoise acrescentava ao falar desse tempo fora de estação:
- É o restante da cólera de Deus! -
Mas eu só respondia às suas queixas com um sorriso cheio de langor, tanto mais
indiferente a essas predições, visto que, de qualquer modo, o tempo seria bom para mim; já via
brilhar o sol da manhã sobre a colina de Fiesole, aquecia-me a seus raios; sua intensidade me
obrigava a abrir e fechar as pálpebras sorrindo e, como lamparinas de alabastro, elas se enchiam
de um clarão róseo. Não eram só os sinos que voltavam da Itália, a Itália voltava com eles. Não
faltariam flores às minhas mãos fiéis para honrar o aniversário da viagem que eu tivera de fazer
outrora, pois, desde que o tempo voltava a ser frio em Paris, como em outro ano por ocasião dos
nossos preparativos para partir pelo fim da quaresma, no ar líquido e glacial que banhava os
castanheiros, os plátanos dos bulevares e a árvore do pátio da nossa casa, os narcisos, os
junquilhos e as anêmonas de Ponte-Vecchio já entreabriam as suas folhas, como numa taça de
água pura.
Meu pai nos contara que agora sabia, por meio de A. J., para onde ia o Sr. de Norpois
quando o encontrava.
- Vai à casa da Sra. de Villeparisis, são muito conhecidos, e eu não sabia de nada. Parece
que se trata de uma pessoa deliciosa, uma mulher superior. Devias ir vê-la. - disse-me. - Aliás,
fiquei muito espantado. Ele me falou do Sr. de Guermantes como de um homem muito distinto; eu
sempre o julgara um cretino. Parece que sabe uma infinidade de coisas, e tem um gosto perfeito;
apenas é muito soberbo pelo seu nome e por seus parentes. Ademais, segundo Norpois, sua
fortuna é imensa, não só aqui mas em toda a Europa. Parece que o imperador da Áustria e o da
Rússia o tratam como a um igual. O pai Norpois me disse que a Sra. de Villeparisis gostava muito
de ti e que, no seu salão, irias conhecer pessoas interessantes. Ele me fez um grande elogio de ti;
tu o encontrarás em casa dela, e ele poderia ser um bom conselheiro, mesmo se deves escrever.
Pois vejo que não farás outra coisa. Podem achar isso uma boa carreira; quanto a mim, não é a
que teria preferido para ti, mas em breve serás um homem, não estaremos sempre a teu lado, e
não devemos impedir que sigas a tua vocação.
Se ao menos eu tivesse podido começar a escrever! Mas fossem quais fossem as
condições em que abordasse esse projeto (assim como, pobre de mim, o de não mais beber
álcool, o de deitar cedo, dormir, passar bem de saúde), desde que fosse com exaltação, com
método, com prazer, privando-me de um passeio, adiando-o e reservando-o como uma
recompensa, aproveitando uma hora de boa saúde, utilizando para tanto a inação forçada de um
dia de doença, o que acabava sempre por sair de meus esforços era uma página em branco,
virgem de toda escrita, inelutável como a carta obrigatória que em certos lances acabamos
fatalmente por tirar, de qualquer modo que se tenha antecipadamente embaralhado as cartas. Eu
não passava do instrumento dos hábitos de não trabalhar, de não me deitar, de não dormir, que
deviam realizar-se custasse o que custasse; se não lhes resistia, se me contentava com o
pretexto que extraíam da primeira circunstância que lhes proporcionava aquele dia para deixá-los
agir à sua vontade, eu me livrava da questão sem maiores perigos, não deixava de repousar
algumas horas no fim da noite, lia um pouco, não fazia muitos excessos, mas, se queria contrariá-los, se pretendia ir mais cedo para a cama, beber somente água, eles se irritavam, dispunham de
grandes meios de que se valiam para me deixar bem doente, e eu era obrigado a duplicar a dose
de álcool, passava dois dias sem ir para a cama, e nem sequer podia ler, prometendo a mim
mesmo ser mais razoável de outra vez, isto é, ser menos sábio, como uma vítima que se deixa
roubar de medo de ser assassinada, caso resista.
Nesse meio tempo, meu pai se encontrara uma ou duas vezes com o Sr, de Guermantes,
e agora que o Sr. de Norpois lhe dissera que o duque era um homem notável, ele prestava mais
atenção a suas palavras. No pátio, falavam justamente da Sra. de Villeparisis.
- Ele me disse que era a sua tia; ele pronuncia Viparisi. Disse que ela era
extraordinariamente inteligente. Chegou mesmo a acrescentar que ela possuía um "balcão de
espírito". - concluiu meu pai, impressionado com a vaguidão desse termo, que lera já algumas
vezes em memórias, mas ao qual não atribuía um sentido preciso. Minha mãe tinha tanto respeito
por ele que, vendo-o não julgar indiferente que a Sra. de Villeparisis mantivesse balcão de
espírito, achou que esse fato seria de alguma significação. Conquanto sempre tivesse sabido,
pela minha avó, o que valia a marquesa, imediatamente fez, a respeito dela, uma ideia mais
vantajosa. Minha avó, que estava um pouco adoentada, a princípio não foi favorável à visita. E
depois se desinteressou. Desde que ocupávamos o nosso novo apartamento, a Sra. de
Villeparisis lhe pedira várias vezes que a fosse ver, e minha avó sempre respondera que não
vinha saindo ultimamente, numa dessas cartas que, por um hábito novo e que não
compreendíamos, ela nunca fechava, deixando a Françoise o cuidado de fazê-lo. Quanto a mim,
sem me afigurar muito bem esse "balcão de espírito", não ficaria muito espantado se visse a velha
senhora de Balbec instalada diante de um balcão, o que, aliás, aconteceu.
Além disso, meu pai também gostaria de saber se o apoio do embaixador lhe valeria
muitos votos no Instituto, onde contava se apresentar como membro independente. A falar a
verdade, sem ousar duvidar do apoio do Sr. de Norpois, não tinha certeza dele, entretanto; julgara
estar tratando com más línguas quando lhe haviam dito no ministério que o Sr. de Norpois,
desejando apresentar-se sozinho ao Instituto, levantaria todos os obstáculos possíveis a uma
candidatura que, aliás, o incomodaria particularmente naquela ocasião em que estava apoiando
outra. No entanto, quando o Sr. Leroy-Beaulieu o aconselhara a se apresentar e havia calculado
as suas chances, ficara impressionado ao ver que, entre os colegas com que podia contar em tais
circunstâncias, o eminente economista não citara o Sr. de Norpois. Meu pai não se atrevia a
apresentar a questão diretamente ao antigo embaixador, mas esperava que eu voltasse da casa
da Sra. de Villeparisis com sua eleição decidida. Tal visita era iminente. A propaganda do Sr. de
Norpois, capaz de fato de garantir a meu pai dois terços da Academia, lhe parecia além do mais
bem provável, visto que era proverbial a obsequiosidade do embaixador, e as pessoas que menos
o estimavam reconheciam que ninguém apreciava tanto prestar serviços. Por outro lado, sua
proteção, no ministério, estendia-se sobre meu pai de uma forma muito mais acentuada que sobre
qualquer outro funcionário.
Meu pai teve um outro encontro, mas este primeiro lhe causou um espanto e depois uma
indignação extremas. Passou na rua pela Sra. Sazerat, cuja relativa pobreza reduzia sua vida em
Paris a raras temporadas em casa de uma amiga. Ninguém aborrecia tanto meu pai como a Sra.
Sazerat, a ponto que mamãe era obrigada a lhe dizer, uma vez por ano, com voz doce e
implorativa: "Meu amigo, é necessário que eu convide ao menos uma vez a Sra. Sazerat, ela não
vai ficar muito tempo" e até: "Escuta, meu amigo, vou te pedir um grande sacrifício, vou fazer uma
visitinha à Sra. Sazerat. Sabes que não gosto de te aborrecer, mas seria gentil da tua parte." Ele
ria, zangava-se um pouco, e ia fazer a tal visita. Portanto, embora a Sra. Sazerat não o divertisse
em nada, ao encontrá-la foi em sua direção, tirando o chapéu; mas, para sua grande surpresa, a
Sra. Sazerat se contentou com um cumprimento frio, forçado pela cortesia relativamente a alguém
que é culpado de má ação ou condenado a viver daí em diante em um hemisfério diferente. Meu
pai voltou zangado para casa, estupefato. No dia seguinte, minha mãe encontrou a Sra. Sazerat
em um salão. Esta não lhe estendeu a mão, e lhe sorriu com um ar distante e triste como a uma
pessoa com quem tivesse brincado na infância, mas com a qual há muito deixasse de ter
quaisquer relações porque tem levado uma vida desregrada, casou com um presidiário ou, o que
é pior, é um homem divorciado. Ora, meus pais haviam concedido e inspirado sempre à Sra.
Sazerat a mais profunda estima. Porém (o que minha mãe ignorava), a Sra. Sazerat, única de sua
espécie em Combray, era dreyfusista. Meu pai, amigo do Sr. Méline, estava convencido da
culpabilidade de Dreyfus. Mandara passear, com mau humor, alguns colegas que lhe haviam
pedido que assinasse uma moção revisionista. Não me falou durante oito dias quando soube que
eu seguira uma linha diversa de comportamento. Suas opiniões eram conhecidas. Não estavam
longe de considerá-lo nacionalista. Quanto à minha avó, a única da família a quem parecia
inflamar uma dúvida generosa, cada vez que lhe falavam da inocência possível de Dreyfus,
sacudia a cabeça num movimento de que então não percebíamos o sentido, e que era
semelhante ao de uma pessoa a quem acabam de perturbar em pensamentos mais sérios. Minha
mãe, dividida entre o amor a meu pai e a esperança de que eu fosse inteligente, mantinha uma
indecisão que traduzia pelo silêncio. Enfim, meu avô, adorando o exército (conquanto suas
obrigações de guarda nacional tivessem sido o pesadelo de sua maturidade), nunca via, em
Combray, um regimento desfilar diante da grade sem tirar o chapéu quando passavam o coronel e
a bandeira. Tudo isso era bastante para que a Sra. Sazerat, que conhecia a fundo a vida de
desinteresse e de honra de meu pai e de meu avô, os considerasse cúmplices da Injustiça.
Perdoam-se os crimes individuais, mas não a participação num crime coletivo. Quando soube que
meu pai era antidreyfusista, colocou, entre ela e ele, continentes e séculos. O que explicava que,
a uma tal distância no tempo e no espaço, seu cumprimento haja parecido imperceptível a meu
pai e que ela não tenha pensado em um aperto de mão ou em palavras, que não poderiam
transpor os mundos que os separavam.
Devendo Saint-Loup vir a Paris, prometera-me levar à casa da Sra. de Villeparisis, onde eu
esperava, sem lhe ter dito, que encontraríamos a Sra. de Guermantes. Pediu-me que fosse jantar
no restaurante com ele e a amante, a quem levaríamos a seguir a um ensaio. Devíamos ir buscá-la de manhã, nos arredores de Paris, onde morava.
Pedira a Saint-Loup que o restaurante aonde íamos jantar (na vida dos jovens aristocratas
que gastam dinheiro, o restaurante desempenha um papel tão importante como as arcas de
tecidos nos contos árabes) fosse, de preferência, o que Aimé me anunciara como sendo aquele
para o qual devia trabalhar como mordomo, enquanto esperava a temporada de Balbec. Era um
grande encanto para mim, que sonhava com tantas viagens e tão poucas fazia, rever alguém que
tomava parte, mais que de minhas lembranças de Balbec, da própria Balbec, que ia lá todos os
anos, que, quando o cansaço ou os estudos me forçavam a permanecer em Paris, nem por isso
deixava de contemplar, nos longos fins de tarde de julho, esperando que os hóspedes chegassem
para jantar, o sol descer e se pôr no mar, através das vidraças da ampla sala de jantar, por trás
das quais, à hora em que ele desaparecia, as asas imóveis dos barcos distantes e azulados
pareciam borboletas exóticas e noturnas em uma vitrine. Ele próprio magnetizado pelo seu
contato com o potente ímã de Balbec, aquele mordomo, por sua vez, transformava-se num ímã
para mim. Conversando com ele, eu esperava já estar em comunicação com Balbec, e perceber,
no mesmo local, um pouco do encanto da viagem.
Saí cedinho de casa, onde deixei Françoise gemendo porque o lacaio noivo não pudera,
mais uma vez, na véspera à noite, ir ver sua prometida. Françoise o encontrara aos prantos, ele
estivera a ponto de ir esbofetear o porteiro, mas se contivera, pois queria manter o emprego.
Antes de chegar à casa de Saint-Loup, que devia esperar-me à porta, encontrei Legrandin,
que havíamos perdido de vista desde Combray e que, bem grisalho agora, conservara o ar
ingênuo e jovem. Deteve-se.
- Ah, eis você, feito homem chique - disse-me ele -, e ainda por cima de sobrecasaca! Eis
uma libré à qual não se adequaria a minha independência. É verdade que você deve ser
mundano, fazer visitas! Para ir sonhar como o faço, diante de alguma sepultura meio destruída,
minha lavalliere e minha jaqueta não estão deslocadas. Você sabe que aprecio a bela qualidade
de seu espírito; é o mesmo que dizer o quanto lamento que vá renegá-la entre os Gentios. Sendo
capaz de permanecer por um instante na atmosfera nauseabunda dos salões, irrespirável para
mim, lança contra o seu próprio futuro a condenação, a maldição do Profeta. Daqui vejo isso, você
frequenta os "corações levianos", a sociedade dos castelos; tal é o vício da burguesia
contemporânea. Ah, os aristocratas, o Terror foi bastante culpado de não ter degolado a todos.
São todos crápulas sinistros, quando não simplesmente sombrios idiotas. Enfim, meu pobre rapaz,
se isso lhe agrada! Enquanto você vai a algum Eive o'clock, seu velho amigo será mais feliz que
você, pois, sozinho num subúrbio, verá subir no céu violáceo a lua cor-de-rosa. A verdade é que
quase não pertenço a esta Terra onde me sinto de tal modo exilado; é necessária toda a força da
lei da gravidade para me manter aqui e evitar que eu fuja para uma outra esfera. Sou de outro
planeta. Adeus, não leve a mal a velha franqueza do camponês do Vivonne que também
permaneceu camponês do Danúbio. Para lhe provar que me importo com você, vou enviar-lhe o
meu último romance. Mas você não vai gostar; não é bastante degenerado, bastante fim de século
para você; é muito franco, muito honesto. O que lhe serve é Bergotte, você mesmo já o
confessou, é faisandé para o paladar estragado de degustadores requintados. No seu grupo, devo
ser considerado um velho pretensioso; cometi o erro de pôr o meu coração no que escrevo, isto já
passou da moda; e depois, a vida do povo não é distinta o suficiente para interessar as suas
snobinettes. Vamos, procure se lembrar de vez em quando das palavras de Cristo: "Fazei isto e
vivereis." Adeus, amigo.
Não foi de muito mau humor contra Legrandin que o deixei. Algumas lembranças são como
amigos comuns, sabem fazer reconciliações; lançada no meio dos campos semeados de botões
de-ouro, onde se acumulavam ruínas feudais, a pontezinha de madeira nos una, a mim e a
Legrandin, como as duas margens do Vivonne.
Tendo deixado Paris, onde, apesar da primavera que principiava, as árvores dos bulevares
mal estavam carregadas das primeiras folhas, o trem circular nos deixou, a Saint-Loup e a mim,
na aldeia dos arredores em que morava a amante dele. Foi uma verdadeira maravilha ver cada
jardinzinho adornado dos imensos altares brancos das árvores frutíferas em flor. Era como uma
dessas festas singulares, poéticas, efêmeras e locais que a gente vem contemplar de muito longe
em datas fixas, mas esta era dada pela natureza. As flores das cerejeiras são tão estreitamente
unidas aos ramos como um envoltório branco, que de longe, entre as árvores que não estavam
nem floridas nem cobertas de folhas, poderíamos julgar, pelo dia de sol ainda tão frio, que era a
neve, aliás derretida, que ainda permanecia junto aos arbustos. Mas as grandes pereiras
envolviam cada casa, cada pátio modesto, com uma brancura mais vasta, mais unida, mais
deslumbrante, como se todas as residências, todas as cercas do povoado estivessem fazendo na
mesma data a sua primeira comunhão.
Essas aldeias dos arredores de Paris conservam ainda, às suas portas, parques dos
séculos XVII e XVIII que foram as "loucuras" dos intendentes e das favoritas. Um horticultor
utilizara um deles, situado em nível inferior à estrada, para a cultura de árvores frutíferas (ou
talvez tivesse apenas conservado o delineamento de um imenso pomar daquela época).
Cultivadas em quincôncios, essas pereiras, mais espaçadas, menos avançadas do que as que
havia eu visto, formavam grandes quadriláteros separados por cercas baixas de flores brancas, a
cada lado dos quais a luz vinha pintar-se de maneira diversa, embora todos esses quartos sem
teto e ao ar livre parecessem ser os do Palácio do Sol, exatamente como poderia ser descoberto
em alguma Creta; e também lembravam as câmaras de um reservatório ou as partes de mar que
o homem subdivide para alguma pesca ou ostreicultura, quando se via, conforme a exposição, a
luz vir brincar nas latadas, como nas águas primaveris, e fazer quebrar-se aqui e ali, cintilando
pela treliça cheia do azul dos ramos, a espuma alvejante de uma flor musgosa e ensolarada.
continua na página 68...
________________
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Até as diminuições que caracterizam o sono)
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Ao comer, ela se atrapalhava com as mãos)
Volume 4
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário