sexta-feira, 9 de maio de 2025

Massa e Poder - A Massa (A Massa Dupla: Homens e Mulheres. Os Vivos e os Mortos)

Elias Canetti


A MASSA DUPLA: HOMENS E MULHERES. OS VIVOS E OS MORTOS


     A mais segura e, frequentemente, a única possibilidade de a massa conservar-se reside na existência de uma segunda massa com a qual ela se relacione. Seja porque se enfrentem e se meçam num jogo, seja porque ameacem seriamente uma à outra, o fato é que a visão ou a vigorosa concepção de uma segunda massa não permite que a primeira se desintegre. Enquanto, de um lado, as pernas se apresentam postadas bem juntas umas das outras, os olhos, do outro lado, encontram-se dirigidos para outros olhos à sua frente. Enquanto os braços se movem aqui segundo um ritmo comum, os ouvidos atentam para o grito que aguardam de lá.
     Fisicamente próximas, as pessoas encontram-se reunidas com sua própria gente e agem conjuntamente com ela numa unidade familiar e natural. No entanto, toda curiosidade, expectativa ou todo medo encontra-se voltado para um segundo aglomerado de pessoas, apartado do primeiro por uma clara distância. Se o veem à sua frente, cam fascinados por essa visão; se não o veem, decerto podem ouvi-lo. Tudo quanto eles próprios fazem depende da ação ou da intenção daquele segundo aglomerado. O estar defronte atua sobre o estar junto. A confrontação, demandando de ambas as massas uma atenção especial, altera a natureza da concentração no interior de cada grupo. Enquanto o segundo grupo não se dispersar, o primeiro permanecerá reunido. A tensão entre os dois aglomerados age como uma pressão sobre a gente do primeiro grupo. Quando se trata da tensão de um jogo ritual, tal pressão se manifesta como uma espécie de vergonha: coloca-se todo o empenho em não pôr a nu frente ao adversário o próprio lado em que se está. Mas quando os opositores ameaçam e a vida encontra-se efetivamente em jogo, essa pressão transforma-se na couraça de uma defesa decidida e una.
      Qualquer que seja o caso, uma massa mantém viva a outra, pressupondo-se aí, porém, que sejam mais ou menos equivalentes em tamanho e intensidade. A fim de se prosseguir sendo massa, não se pode ter um adversário demasiado superior — ou, ao menos, não se pode tomá-lo por demasiado superior. Onde viceja o sentimento de que a resistência não é possível, as pessoas procurarão salvar-se mediante a fuga em massa, e se também esta se revela sem esperanças, a massa desintegrar-se-á em pânico, cada um pondo-se em fuga por conta própria. Esse, entretanto, não é o caso que interessa aqui. É próprio da formação do sistema de duas massas — como também se pode chamá-lo — o sentimento de ambas as partes de que suas forças mais ou menos se equivalem.
      Se se deseja compreender como surge um tal sistema, tem-se de partir de três oposições básicas. Estas podem ser encontradas onde quer que haja seres humanos; todas as sociedades conhecidas tiveram consciência delas. A primeira e mais óbvia dessas oposições é aquela entre homens e mulheres; a segunda, a oposição entre os vivos e os mortos; a terceira, que é hoje quase exclusivamente a única em que se pensa quando se fala em duas massas contrapostas, é aquela entre os amigos e os inimigos.
     Contemplando-se a primeira bipartição — aquela entre homens e mulheres —, não será difícil perceber o que ela poderia ter a ver com a formação de massas especiais. Homens e mulheres vivem juntos em famílias. Podem, é certo, propender para atividades diversas, mas mal se pode imaginá-los contrapostos em aglomerados raivosos e apartados. Afim de se obter um quadro diferente da forma que essa oposição assume, tem-se já de recorrer a relatos acerca de modos de vida mais primitivos.
     Em 1557, Jean de Léry, um jovem huguenote francês, testemunhou uma grande festa dos tupinambás no Brasil.

Ordenaram-nos que permanecêssemos na casa onde as mulheres estavam. Não sabíamos ainda o que iriam fazer, quando, de repente, começou uma barulheira na casa onde estavam os homens, distante nem dez passos de nós e das mulheres. O som era semelhante ao murmurar de preces.
Ao ouvi-lo, as mulheres — aproximadamente duzentas — levantaram-se todas de um salto, aguçaram os ouvidos e comprimiram-se num aglomerado, uma bem junto da outra. Pouco depois, os homens ergueram suas vozes. Ouvíamos claramente todos cantando juntos e, a m de estimularem-se uns aos outros, repetindo seguidamente um grito: “He, he, he, he!”. Ficamos espantadíssimos quando, em resposta, as mulheres passaram a emitir o mesmo grito: “He, he, he, he!”. Por mais de quinze minutos gritaram e berraram tão alto que não sabíamos que cara fazer diante daquilo.
Gritando ainda, saltavam com grande ímpeto para o ar; seus peitos tremiam e uma espuma evolvia-lhes a boca. Algumas caíram inconscientes no chão, feito sofressem de epilepsia. Para mim, era como se o diabo as tivesse possuído, deixando-as loucas.
Bem perto de nós, numa sala só para elas, ouvíamos as crianças sacudindo-se e fazendo barulho. Embora eu já estivesse então havia mais de meio ano em contato com os silvícolas, tendo me adaptado bastante bem à vida deles, fiquei — não desejo ocultá-lo — apavorado. Perguntava-me no que iria dar aquilo, e desejava estar já de volta a nosso forte. 

     O pandemônio por fim se acalma, mulheres e crianças se calam, e Jean de Léry ouve os homens cantando em coro tão maravilhosamente que não resiste mais à ânsia de vê-los. As mulheres procuram detê-lo; elas conhecem a proibição e sabem que não lhes é permitido, em hipótese alguma, ir até onde estão os homens. Léry, porém, consegue imiscuir-se furtivamente; nada lhe acontece, e, acompanhado de dois outros franceses, ele assiste à festa.
     Homens e mulheres encontram-se, pois, rigorosamente separados uns dos outros, em casas diferentes, mas próximas. Não podem ver-se; com a maior atenção um grupo põe-se, então, a ouvir o barulho feito pelo outro. Emitem ambos os mesmos gritos e, por meio deles, intensificam o seu estado até o da excitação de massa. Os acontecimentos propriamente ditos desenrolam-se em meio aos homens. As mulheres, porém, participam da excitação da massa. É notável como, aos primeiros sons que ouvem, provenientes da casa onde estão os homens, elas se juntam num denso aglomerado e respondem elas próprias, cada vez mais selvagemente, aos gritos selvagens que logo ouvem de lá. Estão com muito medo; uma vez que estão encerradas ali — não podem sair de maneira alguma —, e considerando-se que não lhes é possível saber o que está se passando entre os homens, sua excitação adquire uma coloração de natureza especial. Saltam para o alto qual saltassem para fora. Os traços histéricos que o observador registra são característicos de uma fuga em massa obstruída. A tendência natural das mulheres seria fugir rumo aos homens; como sobre isso pesa uma severa proibição, fogem, por assim dizer, sem sair do lugar.
     Digno de nota é o que sente o próprio Jean de Léry. Ele compartilha da excitação das mulheres, mas não lhe é possível pertencer efetivamente à massa que compõem. É um estranho e, além disso, um homem. Em meio a elas e, não obstante, delas apartado, ele só pode temer transformar-se na vítima dessa massa.
     Que a participação das mulheres, à sua maneira, não é desimportante, tal é o que se percebe a partir de uma outra passagem do relato. Os feiticeiros da tribo — ou “caraíbas”, como os chama Jean de Léry — proíbem-nas rigorosamente de deixarem a casa. Ordenam-lhes, porém, que prestem cuidadosa atenção ao canto dos homens.
     A influência que mulheres reunidas exercem sobre seus homens pode ser importante mesmo que uma distância bem maior os separe. Por vezes, as mulheres têm sua contribuição a dar ao êxito de expedições bélicas. Seguem-se três exemplos disso, provenientes da Ásia, América e da África — de povos, portanto, que jamais tiveram contato algum entre si, e, certamente, tampouco influência uns sobre os outros.
     Entre os kafirs de Hindu Kush, são as mulheres que executam a dança de guerra, enquanto os homens estão ausentes em expedição. Transmitem, assim, força e coragem aos guerreiros, intensificando lhes a atenção, afim de que não se deixem surpreender por um inimigo astuto.
     Entre os jivaros da América do Sul, enquanto seus homens estão em expedição bélica, as mulheres se reúnem noite após noite numa determinada casa, onde executam uma dança especial. Carregam chocalhos de conchas de caracol pelo corpo e cantam canções de conjuro. Supõe-se que essa dança de guerra das mulheres possua um poder próprio: ela protege seus pais, homens e filhos das lanças e balas do inimigo, além de embalar este último, fazendo-o crer-se seguro, de modo que não perceba o perigo senão tarde demais; e impede-o ainda de vingar-se pela derrota.
      “Mirary” é o nome que se dá em Madagascar a uma antiga dança das mulheres, a qual só pode ser executada no momento da luta. Anunciada uma batalha, mensageiros avisavam as mulheres. Elas, então, soltavam os cabelos, começavam a dança e estabeleciam assim um vínculo com os homens. Quando, em 1914, os alemães marchavam rumo a Paris, as mulheres em Tananarive dançaram o mirary para proteger os soldados franceses. A despeito da grande distância, a dança parece ter surtido efeito.
     Por toda a terra encontram-se festas nas quais mulheres e homens dançam em grupos separados, mas à vista um do outro e, em geral, em direção um ao outro. Não há necessidade de descrevê-las: são conhecidas de todos. Restringi-me cautelosamente a alguns casos mais extremos, nos quais a separação, a distância e também a medida da excitação chamam a atenção. Certamente, pode-se falar aí em uma massa dupla profundamente arraigada. Nesse caso, ambas as massas apresentam-se bem-intencionadas uma em relação à outra. A excitação de uma deve promover o bem-estar e a prosperidade da outra. Homens e mulheres pertencem a um mesmo povo e dependem uns dos outros.
      Nas lendas das amazonas, que absolutamente não se restringem à antiguidade grega, delas havendo exemplos inclusive entre os nativos da América do Sul, as mulheres separam-se para sempre dos homens, contra os quais guerreiam feito um povo contra o outro.
      Mas, antes de nos voltarmos à contemplação da guerra, onde a essência perigosa e aparentemente inescapável da massa dupla encontrou sua expressão mais forte, é conveniente que lancemos um olhar à antiquíssima oposição entre os vivos e os mortos.
     Em tudo quanto se passa entre os moribundos e os mortos é importante a ideia de que, do outro lado, atua uma quantidade muito maior de espíritos aos quais, por fim, juntar-se-á aquele que morre. O lado dos vivos não entrega de bom grado os seus membros. Sua perda os enfraquece, e, em se tratando de um homem na flor da idade, essa perda é sentida com particular dor pelos seus. Resistem a ela o melhor que podem, mas sabem que sua resistência não é de muita utilidade. A massa do outro lado é maior e mais forte, e para lá ele será atraído. O que quer que façam os vivos, fazem-no cientes dessa supremacia. Tem-se de evitar tudo quanto possa irritá-la. Os espíritos exercem influência sobre os vivos e podem prejudicá-los de todas as maneiras. Para muitos povos, a massa dos mortos é o reservatório de onde saem as almas dos recém nascidos. Dela depende, então, se as mulheres terão ou não filhos. Por vezes, os espíritos assumem a forma de nuvens e trazem a chuva. Podem negar aos homens as plantas e os animais de que se alimentam. Podem vir buscar novas vítimas entre os vivos. Na condição de membro do poderoso exército do outro lado, o morto de que somente se abriu mão após dura resistência acalma-se.
     Morrer é, portanto, uma luta — uma luta entre dois inimigos de forças desiguais. Os gritos que as pessoas dão, os ferimentos que se infligem pelo pesar e pelo desespero pretendem ser também, talvez, expressão dessa luta. O morto não deve crer que foi entregue facilmente: por ele debateram-se os vivos.
     É bastante singular essa luta. Trata-se de uma luta que está sempre perdida, não importa quão valentemente se lute. Desde o princípio, está-se a fugir do inimigo; na verdade, confronta-se com ele apenas na aparência, na esperança de que, numa escaramuça de retaguarda, se possa livrar-se dele. A luta é também uma bajulação que se finge para o moribundo, que breve estará em vias de engrossar as fileiras do inimigo. O morto, passando-se para o outro lado, deve ter em boa conta — ou, pelo menos, não em demasiada má conta — aquele que aqui ficou. Afinal, lá chegando furioso, ele poderia incitar os inimigos potenciais a um novo e perigoso saque.
     O fundamental nessa espécie particular de luta entre os vivos e os mortos é seu caráter intermitente. Nunca se sabe quando acontecerá de novo. É possível que, por um bom tempo, nada aconteça. Mas não se pode confiar nessa possibilidade. Cada novo golpe dá-se de repente, provindo da escuridão. Não há uma declaração de guerra. Após uma única morte, é possível que tudo tenha se acabado. Mas pode ser também que o combate se estenda por um longo tempo, como no caso das pestes e epidemias. Está-se sempre em retirada, e a luta nunca tem, de fato, um fim.
     Da relação entre os vivos e os mortos voltar-se-á a tratar aqui. Para o momento, o importante era contemplar ambos como massas duplas cujos componentes relacionam-se continuamente.
     A terceira forma da massa dupla é a de guerra. É a que hoje nos diz respeito mais de perto. Depois de tudo quanto se viveu neste século, muito se daria para compreendê-la e dissolvê-la.

continua página 103...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (A Massa Dupla: Homens e Mulheres. Os Vivos e os Mortos)
____________________


ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________

Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Nenhum comentário:

Postar um comentário