O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
1. Havia uma semana que se dera o encontro daquelas duas personagens da nossa
história no banco verde. E agora, nessa clara manhã, aí pelas dez e meia,
Varvára Ardaliónovna Ptítsina regressava de uma visita a certos amigos, imersa
em sinistra reflexão.
Gente há cujo aspecto característico e típico é difícil descrever integralmente. É
gente habitualmente chamada “comum” ou “maioria” e que efetivamente
compõe a quase totalidade da humanidade. A maior parte dos autores tenta, em
seus contos e novelas, selecionar e apresentar de modo artístico e vivo tipos
raramente encontrados na inteireza de suas vidas imediatas, muito embora
sejam, sem embargo, mais reais do que a vida real mesma. Podkolióssin,
(Podkolióssin: herói da melhor peça de Gógol - O Casamento (1842). De caráter
pouco enérgico, Podkolióssin tem, por vezes, assomos de
independência. E, na hora do casamento, salta pela janela.) como um tipo, talvez
seja
exagerado, mas não é absolutamente irreal.
Quantas pessoas inteligentes, depois
que se puseram em contato com Podkolióssin, através de Gógol, não passaram
logo a descobrir que uma porção, dezenas e centenas, de amigos e conhecidos
seus se pareciam extraordinariamente com ele? Já sabiam, sem ter ainda lido
Gógol, que esses seus amigos eram como Podkolióssin; apenas ignoravam que
nome dar-lhes de fato, na vida real, poucos são os noivos que escapolem pela
janela antes do Casamento, visto como, abstraindo outras considerações, esse
modo de fuga tem seus inconvenientes.
E no entanto, quantos homens, mesmo inteligentes e virtuosos como pessoas, não
se deram conta, bem na véspera de seus casamentos, de que estavam prontos a
reconhecer no fundo de seus corações que eram outros tantos Podkolióssin? Nem
todos os maridos exclamam a todo passo: Tu l’as voulu, George Dandin!
Mas quantos milhões e bilhões de vezes este grito de coração não tem sido
proferido por maridos, por este mundo fora, logo depois de suas luas de mel ou,
quem sabe, no dia seguinte ao do casamento?
Sem entrar em considerações mais
profundas, queremos singelamente mostrar que, na vida de todos os dias, certas
características tidas como típicas estão a ponto de submergir e que os Georges
Dandin e os Podkolióssin existem e se locomovem diante de nós,
quotidianamente, apenas em forma menos concentrada. Com a asseveração de
que Georges Dandin, em sua perfeição total, como Molière o retratou, também
pode ser encontrado na vida real, embora não frequentemente, terminaremos as
nossas reflexões que já estão começando também a invadir a esfera da crítica
jornalística.
Todavia a pergunta fica de pé: que fará um autor com gente comum,
absolutamente “comum”, e como há de colocá-la diante do leitor tornando-a
interessante?
É de todo impossível deixá-la fora da ficção, pois essa gente do
lugar-comum é, a todo momento, o principal e indispensável anel da cadeia dos
negócios humanos. Se os deixarmos de fora perdemos toda a verossimilhança
com a realidade. Encher uma novela completamente só com tipos, ou melhor,
querer torná-la interessante mediante apenas caracteres estranhos e incríveis
será querer torná-la irreal e até mesmo desinteressante.
A nosso ver, um escritor
deve procurar a torto e a direito enredos interessantes e instrutivos mesmo entre
gente vulgar; quando, por exemplo, a natureza mesma de certas pessoas
vulgares reside justamente em sua perpétua e invariável vulgaridade, ou melhor
ainda, quando, apesar de todos os mais estrênuos esforços para fugir à órbita da
mesmice e da rotina, essa gente acaba por se sentir invariavelmente ligada para
sempre a essa mesma rotina, então tal gente adquire um caráter sui generis, todo
seu, o caráter da vulgaridade, desejosa acima de tudo de ser independente e
original sem a menor possibilidade de o conseguir.
A essa classe de gente
“vulgar” ou “comum” pertencem certos personagens da minha narrativa que até
aqui, devo confessar, foram insuficientemente explicados ao leitor.
Tais são
Varvára Ardaliónovna Ptítsina, seu marido o Sr. Ptítsin e seu irmão Gavríl
Ardaliónovitch. Não há, com efeito, nada mais aborrecido do que ser, por
exemplo, rico, de boa família, ter boa aparência, ser bastante esperto e mesmo
sagaz e todavia não
ter talento, nenhuma faculdade especial, nenhuma personalidade mesmo,
nenhuma ideia pessoal, não sendo propriamente mais do que “como todo
mundo”.
Ter fortuna, mas não ter a de Rothschild ; ser de uma família honrada
mas que nunca se distinguiu por qualquer feito; ter uma boa aparência mas,
mesmo com ela, não exprimindo nada de particular; ter inteligência, mas
nenhuma ideia própria; ter bom coração, mas sem nenhuma grandeza de alma;
ter uma boa educação mas nem saber o que fazer com ela etc. etc...
Há uma
extraordinária multidão de gente assim no mundo, muito mais até do que a
muitos possa parecer. Essa multidão pode, como toda a outra gente, ser dividida
em duas classes: os de inteligência limitada e os de alcance mais vasto. Os
primeiros são os mais felizes.
Nada é mais fácil para essa gente “comum”, de
inteligência restrita, do que se imaginar original e mesmo exceção, e folgar com
essa ilusão, nunca chegando a perceber o equívoco. Basta a muitas de nossas
mocinhas cortarem o cabelo de certo modo e usarem óculos azuis e se
cognominarem de niilistas, para ficarem de vez persuadidas de que, com isso só,
obtiveram automaticamente “convicções” próprias. Basta a certos cavalheiros
sentir o mais leve prurido de qualquer erupção bondosa e humanitária para que
imediatamente fiquem persuadidos de que ninguém mais sente o que eles
sentiram, e de que formam a vanguarda da cultura. Basta a certos indivíduos
assimilar uma ideia expressa por outrem, ou ler qualquer página solta, para
imediatamente acreditarem que essa é a sua opinião pessoal espontaneamente
brotada de seu cérebro.
A imprudência da simplicidade é, se assim se pode dizer,
espantosa, em tais casos.
Por mais incrível que pareça, isso existe. Essa
imprudência de simplicidade, essa confiança sem vacilações do homem estúpido
em seus talentos, foi soberbamente pintada por Gógol no espantoso caráter do seu
personagem, o Tenente Pirogóv.
Pirogóv não possuía a menor dúvida de que era
um gênio, superior mesmo a qualquer gênio. Tinha tal certeza disso que jamais
consigo mesmo debateu isso. Aliás nunca, com efeito, debateu coisa alguma. O
grande escritor foi obrigado até, no fim, a castigá-lo, como uma espécie de
satisfação ao ultraje moral sentido pelo leitor. Vendo, porém, que o grande
homem apenas titubeia um pouco, depois do castigo, logo se refazendo ao engolir
um pastel, ele, Gógol, levanta as mãos para o céu, cheio de espanto, e deixa que
o leitor dê cabo dele como quiser.
Nunca me conformei que Gógol tomasse o seu
grande Pirogóv de uma escala tão humilde; era tão senhor de si que nada lhe foi
mais fácil, à medida que suas dragonas aumentavam de espessura e de
torcidinhos, do que se imaginar um extraordinário gênio militar, ou melhor, não
se imaginar, mas ter isso como
certo e líquido. Pois se fora feito general, logicamente que era um gênio militar!
E quantos como ele não fizeram terríveis fiascos, depois, nos campos de batalha?
E quantos Pirogóv não tem havido entre os nossos escritores, sábios e
propagandistas!
Digo “tem havido”, mas naturalmente que ainda os há!
Gavríl
Ardaliónovitch Ivólguin enquadrava-se na segunda categoria. Pertencia à classe
dos “mais dotados”, embora o enfatuasse, da cabeça aos pés, o desejo da
originalidade. Mas tal classe, como já observamos acima, é bem menos feliz do
que a primeira: pois o homem vulgar “esperto”, mesmo se se considera
ocasionalmente, ou sempre, homem de gênio ou de originalidade, conserva o
verme da dúvida enquistado em seu coração, o que, em muitos casos, arrasta o
nosso homem sagaz ao extremo desespero. Mesmo quando se submete, o faz
completamente envenenado, visto seu Intimo ser dirigido por sua vaidade.
Mas o
exemplo que tomamos foi extremo. Para a grande maioria dessa gente hábil as
coisas não terminam assim tão tragicamente. O mais que acontece a tais pessoas
é ficarem com o fígado afetado na velhice. Mas antes de desistirem e se
humilharem, esses homens não raro fazem papéis de malucos; e tudo só pelo
desejo de originalidade.
E realmente há estranhos exemplos desta asserção; um
homem direito, às vezes, por querer ser original, é capaz de cometer uma
baixeza. Acontece comumente que um desses desprotegidos da sorte não só é
honesto como bom; é o anjo da guarda da família e mantém, por meio do seu
trabalho, não apenas os seus, mas também os estranhos. Mesmo assim não
consegue descanso em toda a sua vida! O pensamento de que preencheu tão bem
a sua vida, em vez de lhe dar conforto e consolo, muito pelo contrário, o irrita.
“Foi apenas nisto que consumi toda a minha vida?”, diz ele.
“Foi nisto que me
atolei dos pés à cabeça? Foi pois nisto que malbaratei minhas energias, o que me
impediu de fazer algo de grande? Se não tivesse perdido tempo nisso eu teria, na
certa, descoberto a pólvora ou a América, ou qualquer outra coisa, não sei
precisamente qual, mas que teria descoberto, lá isso teria!”
O que é mais
característico nesses indivíduos é que nunca chegam a saber direito que coisa
lhes foi destinada a descobrir e dentro de que são eles uns ases em descobertas. E
todavia seus sofrimentos, suas ânsias pelo que deveriam ter descoberto, seriam
bastantes para um Colombo ou um Galileu.
Gavril Ardaliónovitch tinha dado o
primeiro passo nessa estrada, mas estava apenas em seu começo. Dispunha
ainda, diante de si, de muito tempo para representar de maluco. Uma profunda e
contínua consciência da sua falta de talento e, ao mesmo tempo, o obsedante
desejo de mostrar a si mesmo que era um homem de grande independência, se
lhe agarrara ao coração quase que
desde a infância. Era um rapaz de apetites violentos e de zelosas sofreguidões
mas que, positivamente, já nascera com os nervos extenuados. Tornou a
violência dos seus desejos como força. A sua sôfrega paixão em querer se
distinguir o levou muitas vezes à beira das mais insensatas ações, mas o nosso
herói sempre, no último momento, fraquejava, sem coragem para o arremesso.
Isso levava-o ao desespero. Para conseguir aquilo que sonhava era capaz de
arquitetar fosse o que fosse de extremamente vil. Mas como quem dispõe é o
destino, ele sempre acabava parecendo demasiado honesto para qualquer grande
ruindade. (Mas para as ruindades pequeninas estava sempre mais do que
preparado.) Considerava com repugnância e cólera a pobreza de sua família.
Tratava até a própria mãe com altivez e desprezo, muito embora estivesse farto
de saber que a reputação e o caráter dessa mulher eram o eixo sobre o qual o seu
futuro repousava.
Ao entrar a serviço do General Epantchín dissera a si mesmo, imediatamente:
“Já que tenho de ser ruim, hei de o ser totalmente, a ver se ganho ao menos a
minha partida”.
E, ainda assim, nem ruim completamente conseguiu ser. E por
que imaginaria ele que precisaria de fato de ser ruim? Naquela ocasião, quanto a
Agláia, simplesmente a temeu, mas se conservou de atalaia, à espreita de uma
oportunidade, muito embora nunca tivesse acreditado, seriamente, que ela se
valesse dele. E depois, ao tempo do seu caso com Nastássia Filíppovna, deu-lhe
no bestunto imaginar que o dinheiro lhe seria o meio de conseguir tudo. “Se há de
ser ruim, sejamo-lo com toda a perfeição”, incentivava-se continuamente.
“Gente vulgar tem medo disso, mas eu não tenho.”
Havendo fracassado quanto a Agláia, e esmagado pelas circunstâncias, perdeu
toda a coragem e imediatamente levou a Míchkin o dinheiro que uma louca lhe
arremessara à cara depois de o receber, por sua vez, de um louco. Milhares de
vezes, depois disso, se arrependera de ter devolvido aquele dinheiro, embora
continuamente se estivesse jactando de o ter feito. E efetivamente derramara
lágrimas, durante três dias, enquanto o príncipe fora a Moscou. E, naqueles três
dias, o seu ódio para com o príncipe se multiplicara, só por este último o olhar
com demasiada piedade embora “nem todo o mundo tivesse tido força” para um
ato como esse de devolver o dinheiro. Mas a franca confissão que a si mesmo
fazia, de que a sua miséria não era devida senão à contínua mortificação sofrida
pela sua vaidade, o afligia horrivelmente.
Foi só muito depois que viu e compreendeu que fim bem diferente
poderia ter tido o seu caso com uma criatura tão estranha e inocente como
Agláia. Os remorsos quase deram cabo dele. Largara o emprego e caíra em
desespero e desânimo. Fora obrigado a viver com o pai e a mãe em casa de
Ptítsin, a expensas deste último, a quem abertamente desprezava, apesar de lhe
seguir os conselhos e mesmo os pedir.
Gavríl Ardaliónovitch estava aborrecido,
por exemplo, com Ptítsin, por este não aspirar a tornar-se um Rothschild:
“Já que
você enveredou pela agiotagem adentro, faça-o de modo absoluto: procure
extorquir todo o mundo, amoede o dinheiro dos outros, mostre resolução, torne-se
um rei entre os judeus.”
Mas Ptítsin era modesto e sem ambições, e apenas
sorriu a isto. Mas, certa vez, viu ser necessário ter uma explicação a sério com o
cunhado, desincumbindo-se dela com dignidade. Provou a Gánia que não agia
desonestamente e que não admitia que o tratasse de judeu usurário; que não era
sua a culpa do dinheiro ser considerado de tamanho valor; que agia estritamente
com decência, não passando, na realidade, de mero intermediário em tais
negócios, e que devia justamente à inteireza de sua atitude, nos negócios, ser
considerado favoravelmente entre gente de bem, e estar obtendo lucros.
“Nunca
serei um Rothschilt e nem me passa pela cabeça tal ambição” - dissera, já a
sorrir. - “Mas terei a minha casa, embora pequena, na Litéinaia, talvez mesmo duas, e
então farei ponto final”. “E, quem sabe, talvez mesmo três”, pensara mais de
uma vez, sem porém pronunciar isso alto, sonhando escondido esse sonho de
“meio-dia”.
continua página 419...
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Segunda Parte
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (1a) - Havia uma semana que se dera o encontro
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