sábado, 10 de maio de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - z)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(z)

continuando...

      Agora, meus sonhos voltavam a ser livres para se reportar a esta ou àquela das amigas de Albertine e, em primeiro lugar, a Andrée, cujas amabilidades talvez me tivessem tocado menos se não tivesse certeza de que seriam conhecidas de Albertine. É claro que a preferência que há muito eu vinha fingindo por Andrée me fornecera em hábitos de conversas, de declarações de carinho como que a matéria de um amor já inteiramente pronto para ela, ao qual até então não faltara mais que um sentimento sincero a acrescentar-lhe, e que agora o meu coração livre de novo, poderia proporcionar. Mas Andrée era muito intelectual, muito nervosa, muito doentia, muito parecida comigo para que a amasse de verdade. Se agora Albertine se me afigurava oca, Andrée estava repleta de algo que eu já conhecia de sobra. No primeiro dia pensara ver na praia a amante de um corredor, embriagada de amor pelo esporte, e Andrée me dizia que havia principiado a praticar esportes a conselho do médico, a fim de curar a neurastenia e as perturbações de nutrição.
      Mas seus melhores momentos eram aqueles em que traduzia um romance de George Eliot. Minha decepção, fruto de um erro inicial sobre o que seria Andrée, não teve, de fato, nenhuma importância para mim. Mas o erro era do tipo desses que, se permitem que o amor nasça e só são reconhecidos como erros quando a situação já não pode ser mudada, tornam-se motivo de sofrimento. Tais erros-que podem ser diferentes dos que havia cometido em relação a Andrée, e até mesmo opostos provêm muitas vezes, como em particular no caso dela, do fato de que assumimos demais o aspecto e as maneiras daquilo que não somos mas desejaríamos ser, para iludir à primeira vista. A aparência exterior, à afetação, à imitação e ao desejo de ser admirado, seja pelos bons, seja pelos maus, acrescenta-se o falso aspecto das palavras e dos gestos. Há cinismos e crueldades que não resistem à prova mais que certas bondades, certas generosidades. Do mesmo modo que muitas vezes se descobre um avaro vaidoso em um homem conhecido por sua caridade, a jactância do vício nos faz supor uma Messalina em uma moça honesta cheia de preconceitos. Eu julgara encontrar em Andrée uma criatura saudável e primitiva, quando não passava de alguém que buscava saúde, como o eram talvez muitos daqueles em que ela pensava encontrá-la, e que na verdade não a possuíam, assim como um homem gordo e artrítico, de rosto vermelho e vestido de flanela branca, não é forçosamente um Hércules. Ora, há circunstâncias em que não é indiferente para a felicidade que a pessoa a quem se amou pelo que parecia ter de saudável na realidade não passasse de um desses enfermos que só recebem sua saúde de outros, como os planetas tomam emprestada a sua luz, como certos corpos se limitam a deixar passar a eletricidade.
     Não importa; Andrée, como Rosemonde e Gisele, e até mais do que elas, era em última análise uma amiga de Albertine, que compartilhava a sua vida e imitava as suas maneiras a ponto de que no primeiro dia eu a princípio não as distinguira uma da outra. Entre essas moças, caules de rosas, cujo encanto principal era se destacarem sobre o mar, reinava a mesma indivisão que no tempo em que não as conhecia e quando o aparecimento de qualquer uma me causava tanta emoção por me anunciar que o pequeno grupo não estava longe. Ainda agora, a vista de uma me proporcionava um prazer onde entrava, numa percentagem que eu não saberia avaliar, a possibilidade de ver as outras a segui-la mais tarde, e, ainda que não viessem naquele dia, a oportunidade de falar a respeito delas e de saber que lhes seria dito que eu estivera na praia.
     Não era mais a atração dos primeiros dias; era uma genuína veleidade de amar que hesitava entre todas, de tal forma cada uma era a substituta natural da outra. Minha maior tristeza não teria sido o fato de ser abandonado por aquela que eu preferia entre todas; mas logo preferiria, porque nela fixara a soma de tristeza e de sonho que flutuava entre elas, aquela que me tivesse abandonado. Ainda nesse caso, era a todas as suas amigas, a cujos olhos eu em breve perderia todo o prestígio, que eu teria inconscientemente lamentado naquela, tendo lhes confessado essa espécie de amor coletivo que o político ou o ator dedicam ao público pelo qual não se consolam de ser abandonados depois de ter recebido todos os seus favores. Mesmo os favores que não pudera obter de Albertine, esperava por eles, de repente, de uma ou outra que me dissera uma palavra ou lançara um olhar ambíguo, ao me deixar à noite, devido aos quais era para essa última que se voltava o meu desejo por um dia inteiro.
      E o meu desejo errava ainda mais sensualmente entre os seus rostos móveis, porque uma fixação relativa das feições já estava bastante iniciada para que se pudesse distinguir, mesmo que mudasse ainda, a efígie maleável e flutuante. Às diferenças existentes entre esses rostos estavam, sem dúvida, muito longe de corresponder as diferenças idênticas no comprimento e largura das feições, as quais, de uma a outra das moças, e por mais dissemelhantes que parecessem, talvez pudessem ser quase superpostas. Mas o nosso conhecimento dos rostos não é matemático.
     Primeiro, não começa por medir as partes, mas tem como ponto de partida uma expressão, um conjunto. Em Andrée, por exemplo, a finura dos olhos doces parecia juntar-se ao nariz estreito, tão delgado como uma simples curva, que tivesse sido traçada para que fosse possível prosseguir numa só linha a intenção de delicadeza divisada anteriormente no duplo sorriso dos olhares gêmeos. Uma linha da mesma finura lhe riscava os cabelos, ágil e profunda como a que o vento traça na areia. E essa linha devia ser hereditária, pois os cabelos inteiramente brancos da mãe de Andrée eram dispostos da mesma maneira, aqui formando um tufo, ali uma depressão, como a neve que se ergue ou se afunda de acordo com as desigualdades do terreno. É evidente que, comparado à fina delineação do de Andrée, o nariz de Rosemonde parecia oferecer amplas superfícies, como uma torre alta assentada numa base poderosa. Ainda que a expressão seja bastante para fazer crer em diferenças enormes entre coisas separadas por algo infinitamente pequeno, e ainda que o infinitamente pequeno possa por si só criar uma expressão absolutamente particular, uma individualidade, o fato é que nem o infinitamente pequeno de uma linha nem a originalidade da expressão faziam com que esses rostos aparecessem irredutíveis uns aos outros. Entre os de minhas amigas, a coloração abria uma separação ainda mais profunda, não tanto pela variada beleza dos tons que lhes proporcionava, tão opostas que eu sentia diante de Rosemonde- inundada de um róseo sulfurino sobre o qual reagia ainda a luz esverdeada dos olhos -e diante de Andrée-cujas faces brancas recebiam tanto da austera distinção de seus cabelos negros o mesmo tipo de prazer como se olhasse alternadamente um gerânio à beira do mar ensolarado e uma camélia à noite; mas sobretudo porque as diferenças infinitamente pequenas das linhas se achavam desmesuradamente aumentadas, assim como as proporções entre as superfícies eram inteiramente mudadas por esse elemento novo da cor, o qual, assim como é um dispensador de matizes; e funciona também como grande regenerador ou, pelo menos, modificador de dimensões. De maneira que as fisionomias, construídas talvez de modo pouco diverso, conforme sejam iluminadas pelo fogo de uma cabeleira ruiva ou de uma pele rosada, ou pela branca luz de um pálido fosco, encompridavam-se ou se ampliavam, tornando-se uma coisa diferente, como esses acessórios dos balés russos, que consistem às vezes, se são vistos em plena luz do dia, numa simples rodela de papel e que o gênio de um Bakst, segundo a iluminação vermelho-pálida ou lunar em que mergulha o cenário, faz incrustar-se duramente neste, como uma turquesa na fachada de um palácio, ou desabrochar molemente, rosa de bengala no meio de um jardim. Assim, ao tomar conhecimento dos rostos, nós os medimos realmente, mas como pintores e não como agrimensores.
     Dava-se o mesmo com Albertine que com suas amigas. Em certos dias, delgada, pálida, aborrecida, uma transparência violácea descendo obliquamente no fundo de seus olhos, como ocorre algumas vezes no mar, ela parecia sentir uma tristeza de exilada. Em outros, seu rosto mais liso atraía os desejos à sua superfície envernizada e os impedia de irem mais além; a menos que eu não a visse de súbito de lado, pois suas faces foscas feito uma cera branca eram, na superfície, rosadas por transparência, o que dava tanta vontade de as beijar, de tocar aquela pele diferente que se esquivava. De outras vezes, a felicidade banhava suas faces de uma claridade tão móvel que a pele, tornada vaga e fluida, deixava passar como que olhares subjacentes que a faziam parecer de uma outra cor, mas não de matéria diferente da dos olhos; às vezes, sem querer, ao olhar para seu rosto matizado de pontinhos castanhos e onde flutuavam apenas duas manchas mais azuis, lembrava um ovo de pintassilgo, e muitas vezes era como uma ágata opalina, trabalhada e polida somente em dois lugares, onde, no meio da pedra escura, luzissem como asas transparentes de uma borboleta azul, os olhos, em que a carne se torna espelho e nos dá a ilusão de deixar, mais que em outras partes do corpo, que nos aproximemos da alma. Porém, com mais freqüência, tinha boa cor e se mostrava mais animada; umas vezes só era cor-de-rosa, em seu rosto branco, a ponta do nariz, fino como o de uma gatinha sorrateira, com a qual se tivesse vontade de brincar; às vezes suas faces eram tão polidas que o olhar deslizava como pelas de uma miniatura, sobre o seu esmalte rosado, ainda mais delicado e interior devido à tampa entreaberta e superposta de seus cabelos negros; ocorria que a pele de suas faces chegava ao rosa violáceo do ciclâmen, e às vezes até, quando ela estava congestionada ou febril, e dando então a ideia de uma compleição doentia que rebaixava o meu desejo a qualquer coisa de mais sensual e fazia seu olhar exprimir algo mais perverso e indecente, assumia o púrpura sombrio de certas rosas de um rubro quase negro. E cada uma destas Albertines era diferente, como é diferente cada uma das aparições da bailarina cujas cores, forma e caráter vão se transmudando, conforme os jogos inumeravelmente variados de um projetor luminoso. Talvez por serem tão diversas as criaturas que eu contemplava em Albertine àquela época, é que mais tarde adquiri o hábito de tornar-me eu mesmo um outro personagem, de acordo com a Albertine em que pensava: um ciumento, um indiferente, um voluptuoso, um melancólico, um furioso, recriados não só ao acaso da lembrança que renascia, mas conforme a intensidade da crença interposta, para uma mesma recordação, pelo modo diverso com que a apreciava. Pois era sempre a isto que precisava retornar, a essas crenças que na maior parte do tempo nos enchem a alma à nossa revelia, mas que, todavia, têm mais importância para a nossa felicidade que determinada criatura que vemos, pois é através delas que a vemos, são elas que atribuem à criatura contemplada a sua efêmera grandeza. Para ser exato, eu deveria dar um nome diferente a cada um dos eus que a seguir pensou em Albertine; mais ainda, deveria dar um nome diferente a cada uma dessas Albertines que apareciam diante de mim, nunca a mesma, como-chamados simplesmente por mim, para maior comodidade, o mar - esses mares que se sucediam e diante dos quais, outra ninfa, se destacava Albertine. Mas principalmente da mesma forma, porém de modo bem mais útil do que se diz, numa narrativa, o tempo que estava fazendo em tal dia-deveria sempre denominar a crença que, no dia em que eu via Albertine, reinava em minha alma, formando a atmosfera e o aspecto dos seres, bem como o aspecto dos mares depende dessas névoas apenas visíveis que mudam a cor de todas as coisas devido a sua concentração, sua mobilidade, sua disseminação, sua fuga-como a que Elstir havia rompido uma tarde não me apresentando às moças com quem se detivera e cujas imagens subitamente me pareceram mais belas quando se afastavam -, névoa que alguns dias depois, quando as conhecera, tornara a formar-se, velando o seu brilho, interpondo-se muitas vezes entre elas e meus olhos, opaca e doce, semelhante à Leucotéia de Virgílio.
     Sem dúvida, os rostos de todas elas tinham mudado de significação para mim, desde que o modo pelo qual era preciso lê-los me fora em certa medida indicado por suas próprias frases, às quais tanto maior valor eu podia atribuir, visto que à vontade as provocava com minhas perguntas, fazia-as variar como um experimentador que submete a contraprovas a verificação daquilo que supôs. E, em suma, é uma forma como outra qualquer de resolver o problema da existência, o de aproximar bastante as coisas e as pessoas que de longe nos pareceram belas e misteriosas, para nos darmos conta de que não têm mistério nem beleza; é uma das higienes entre as quais se pode optar, uma higiene que talvez não seja muito recomendável, mas que nos proporciona uma certa calma para passar a vida e também para nos resignarmos à morte, uma vez que nos permite não lamentar coisa alguma, convencendo-nos que alcançamos o melhor e que o melhor não é grande coisa.
      Eu havia substituído, no fundo do cérebro daquelas moças, o desprezo à castidade, a recordação de saídas diárias, por princípios honestos, talvez capazes de ceder mas tendo até então preservado de qualquer deslize aquelas que os haviam recebido de seu ambiente burguês. Ora, quando nos enganamos desde o começo, mesmo quanto às pequenas coisas, quando um erro de suposição ou de memória nos faz procurar o autor de uma intriga malévola ou o local para onde se desgarrou um objeto em direção falsa, pode acontecer que só descubramos o nosso engano para o substituir não pela verdade, mas por um outro engano. No tocante ao modo de viver daquelas moças e à forma de tratá-las, eu tirava todas as consequências da palavra inocência que havia lido em seus rostos, conversando familiarmente com elas. Mas talvez tivesse lido irrefletidamente, no lapso de uma decifração por demais rápida, e ali não mais estivesse escrita, como não estava o nome de Jules Ferry no programa da matinê em que pela primeira vez ouvira a Berma, o que não me impedira de garantir ao Sr. de Norpois que Jules Ferry, sem qualquer dúvida, escrevia anteatos.
     No caso de qualquer das minhas amigas do pequeno grupo, como não seria o último rosto que eu tivesse visto, o único de quem me lembraria? Porque, de todas as lembranças relativas a uma pessoa, a inteligência elimina aquilo que não concorre para a utilidade imediata de nossas relações cotidianas (mesmo e sobretudo se tais relações são impregnadas de um pouco de amor, o qual, sempre insatisfeito, vive no momento a decorrer)? Ela deixa afrouxar a cadeia dos dias passados, só lhe segura com força o último elo, muitas vezes formado de metal bem diverso do dos elos desaparecidos na noite, e, na viagem que fazemos através da vida, só considera como real a região em que estamos no presente. Nenhuma das minhas primeiras impressões, já tão distantes, podia encontrar contra a sua deformação diária um recurso em minha memória; durante as longas horas que eu passava conversando, lanchando, jogando com aquelas moças, nem me lembrava que elas eram as mesmas virgens implacáveis e sensuais que eu vira, como num afresco, desfilar diante do mar.
      Os geógrafos e os arqueólogos nos conduzem à ilha de Calipso, exumam o palácio de Minos. Unicamente, Calipso não passa de uma mulher, Minos de um rei sem nada de divino. Até as qualidades e os defeitos que a História nos ensina terem sido então o apanágio dessas pessoas muito reais, diferem às vezes, grandemente, das qualidades e defeitos que havíamos atribuído aos seres fabulosos do mesmo nome. Assim se dissipara toda a graciosa mitologia oceânica que eu havia elaborado nos primeiros dias.
     Porém não é totalmente indiferente que nos ocorra, ao menos às vezes, passar o nosso tempo na familiaridade do que julgáramos inacessível e que havíamos desejado.
     Na convivência com as pessoas que a princípio acháramos desagradáveis, persiste sempre, mesmo no meio do prazer fictício que podemos sentir junto delas, o gosto falsificado dos defeitos que conseguiram dissimular. Mas, nas relações como as que eu tinha com Albertine e suas amigas, o legítimo prazer que está em sua origem deixa esse perfume que nenhum artífice consegue conferir aos frutos forçados, às uvas que não amadureceram ao sol. As criaturas sobrenaturais que elas tinham sido um momento para mim, conservavam ainda, mesmo sem que eu o soubesse, um tom de maravilhoso nas relações mais banais que tivera com elas, ou melhor, preservavam essas relações de terem jamais algo de banal. Meu desejo buscara com tamanha avidez a significação dos olhos que, agora, me conheciam e sorriam, mas que no primeiro dia tinham cruzado os meus olhares como raios emitidos de um outro universo, tão ampla e minuciosamente havia ele distribuído a cor e o perfume sobre a superfície carnosa daquelas moças que, estendidas sobre o rochedo, me alcançavam simplesmente sanduíches ou brincavam de adivinhações, que, em muitas dessas tardes, enquanto eu, deitado no chão, como aqueles pintores que buscam a grandeza do antigo na vida moderna e dão a uma mulher que apara a unha do pé a nobreza do "Menino que extrai o espinho" ou que, como Rubens, mudam em deusas mulheres suas conhecidas para compor um quadro mitológico, contemplava aqueles belos corpos morenos e louros, de tipos tão opostos, espalhados a meu redor pela relva, sem esvaziá-los talvez de seu conteúdo medíocre de que os enchera a experiência diária, e no entanto sem me lembrar expressamente de sua origem celeste como se, igual a Hércules ou a Telêmaco, estivesse brincando rodeado de ninfas.
     Depois os concertos acabaram, chegou o mau tempo, minhas amigas deixaram Balbec, não juntas todas, como as andorinhas, mas na mesma semana. Albertine foi a primeira, de repente, sem que nenhuma das amigas pudesse entender, nem então nem mais tarde, por que voltara de súbito a Paris, onde nem trabalhos nem distrações a esperavam.

"Ela não disse quê nem porquê, e depois foi embora" resmungava Françoise, que aliás gostaria que fizéssemos o mesmo. Achava-nos indiscretos diante dos empregados, todavia já bem reduzidos em número, mas retidos pelos raros fregueses que permaneciam no hotel, diante do gerente que "comia dinheiro". É verdade que, há muito tempo, o hotel, que não tardaria a fechar, vira partir quase todo o mundo; mas também, nunca fora tão agradável como agora. Não era essa a opinião do gerente; ao longo dos salões onde a gente enregelava e a cuja porta já não montava guarda nenhum groom, ele media os corredores, de redingote novo, tão cuidado pelo barbeiro que seu rosto apagado parecia consistir em uma mistura na qual, para uma parte de carne, havia três de cosméticos, e mudando sem cessar de gravata (tais elegâncias custam mais barato que assegurar o aquecimento e manter o pessoal, e aquele que já não pode mandar dez mil francos para obras de caridade, ainda facilmente banca o generoso dando cem sous de gorjeta ao telegrafista que lhe traz um despacho). Dava a impressão de inspecionar o nada, de querer dar, graças ao bom aspecto pessoal, um ar provisório à miséria que se sentia naquele hotel, onde a temporada não fora boa, e parecia o fantasma de um soberano que regressa para assombraras ruínas do que outrora foi seu palácio. Ficou descontente sobretudo quando o trem local, que já não tinha passageiros suficientes, deixou de funcionar até a primavera seguinte.

- O que falta aqui, - dizia o gerente- são os meios de comoção.

     Apesar do débito registrado, fazia projetos grandiosos para os anos seguintes. E, como, ainda assim, era capaz de reter exatamente belas expressões quando se aplicavam à indústria hoteleira e tinham por resultado engrandecê-la:

- Eu não estava bastante bem assessorado, embora tivesse uma boa equipe na sala de jantar -dizia -; mas os grooms deixam a desejar; verão que falange saberei reunir no ano que vem.

     Enquanto esperava, a interrupção dos serviços do B.C.B. o obrigava a mandar buscar a correspondência e às vezes conduzir os viajantes de carro. Eu pedia muitas vezes para sentar ao lado do cocheiro e, desse modo, passeava qualquer que fosse o tempo, como no inverno que passara em Combray.
     Entretanto, às vezes, a chuva bem forte nos retinha, a minha avó e a mim; estando fechado o cassino, em peças quase completamente vazias, como no porão de um navio quando o vento sopra, e onde todos os dias, como no decorrer de uma travessia, uma nova pessoa daquelas com quem passáramos três meses sem travar relações, o primeiro presidente do conselho de Rennes, o decano de Caen, uma senhora americana e suas filhas, vinham se juntar a nós, começavam a conversar, inventavam uma forma de tornar as horas menos longas, revelavam um talento, ensinavam-nos um jogo, convidavam-nos para tomar chá ou tocar música, ou para uma reunião em determinada hora, combinando em conjunto essas distrações que possuem o verdadeiro segredo de nos dar prazer, apenas porque não pretendem mais que isso, e simplesmente nos ajudam a passar o tempo e a matar o tédio. Enfim, travavam conosco, no fim da nossa temporada, amizades que suas partidas sucessivas, no dia seguinte, vinham interromper. Cheguei a travar relações com o rapaz rico, e com um de seus amigos nobres, e com a atriz que voltara por alguns dias; mas a pequena sociedade só se compunha de três pessoas, tendo o outro amigo regressado a Paris. Convidaram-me para ir jantar com elas no seu restaurante. Creio que ficaram bem contentes por eu não ter aceito. Mas haviam feito o convite da maneira mais amável possível, e, embora na verdade partisse do rapaz rico, visto que os outros eram apenas seus hóspedes, como o amigo que os acompanhava, marquês Maurice de Vaudémont, era de casa muitíssimo nobre, a atriz instintivamente, perguntando-me se não queria ir, acrescentou para me lisonjear: 

- Isso daria imenso prazer a Maurice.

     E, quando encontrei todos os três no hall, foi o Sr. de Vaudémont, enquanto o rapaz rico ficava em silêncio, que me disse:

- Não vai nos dar o prazer de jantar conosco?

     Em resumo, aproveitara eu muito pouco de Balbec, o que me aumentava o desejo de para ali voltar. Parecia-me que ali ficara muito pouco tempo. Não era esta a opinião de meus amigos, que me escreviam para perguntar se tencionava viver em Balbec definitivamente. E, ao ver que era o nome de Balbec que eles se obrigavam a colocar no envelope, e como, em vez de dar para uma campina ou para a rua, a minha janela se abria para os campos do mar, cujo rumor ouvia à noite, e ao qual, antes de adormecer, confiara o meu sono como uma barca, tinha a ilusão de que essa promiscuidade com as ondas devia materialmente, à minha revelia, fazer penetrar em mim a noção do seu charme, à maneira das lições que a gente aprende dormindo.
      O gerente me oferecia melhores quartos para o próximo ano, mas agora sentia-me ligado ao meu, onde entrava sem mais sentir o cheiro do vetiver, e do qual o meu pensamento, que antigamente se elevava dali com tanta dificuldade, acabara por tomar tão exatamente as dimensões que fui obrigado a fazê-lo sofrer um tratamento inverso, quando tive de me deitar de novo no meu quarto antigo, cujo teto era baixo.
      De fato, tínhamos sido forçados a deixar Balbec, já que o frio e a umidade se tornaram penetrantes demais para permanecermos por muito tempo naquele hotel desprovido de lareiras e caloríferos. Aliás, esqueci quase de imediato essas últimas semanas. O que revi quase invariavelmente, quando pensei em Balbec, foram os momentos em que, todas as manhãs, como devia sair à tarde com Albertine e suas amigas, minha avó, por ordens do médico, me forçou a ficar deitado no escuro. O gerente ordenava que não fizessem barulho no meu andar e ele próprio vigiava para ser obedecido. Por causa da luz muito forte, eu conservava fechadas, o máximo de tempo possível, as grandes cortinas cor-de-violeta que me haviam testemunhado tanta hostilidade na primeira noite. Mas, apesar dos alfinetes com os quais, para que a luz do dia não passasse, Françoise as prendia à noite, e que só ela sabia retirar, apesar das cobertas, da toalha da mesa de cretone vermelho, dos tecidos pegados aqui e ali para ajustar às cortinas, não conseguia uni los de todo e a escuridão não era completa; e parecia que se espalhavam pelo tapete um escarlate desfolhar de anêmonas, entre as quais eu não podia evitar de, por um momento, pousar os pés nus. E na parede defronte à janela, parcialmente iluminada, havia um cilindro de ouro, sem qualquer sustentáculo, colocado verticalmente e deslocando-se devagar como a coluna luminosa que precedia os hebreus no deserto. Voltava a me deitar; obrigado a gozar, sem me mexer, apenas pela imaginação, e todos ao mesmo tempo, os prazeres dos jogos, do banho, da caminhada, que a manhã aconselhava, a alegria me fazia bater bruscamente o coração como uma máquina em plena atividade, porém imóvel, e que, para descarregar a sua velocidade, só pode girar sobre si mesma no mesmo lugar.
     Sabia que minhas amigas estavam no molhe mas não podia vê-las, enquanto elas passavam diante dos píncaros assimétricos do mar, no fundo do qual, empoleirada no meio de seus cimos azulados como uma aldeia italiana, eu às vezes discernia, numa clareira, a cidadezinha de Rivebelle, minuciosamente detalhada pelo sol. Não via minhas amigas, mas (enquanto chegavam até meu belvedere o pregão dos jornaleiros, dos "jornalistas", como dizia Françoise, os chamados dos banhistas e das crianças que brincavam, pontuando, à maneira dos gritos dos pássaros marinhos, o ruído das ondas que quebravam suavemente) adivinhava a sua presença, ouvia o riso delas, envolto como o das nereidas na suave arrebentação que subia até os meus ouvidos. 

- Olhamos para ver se você descia. - dizia-me Albertine à noite. - Mas os seus postigos ficaram fechados mesmo na hora do concerto.

     Com efeito, às dez horas ele rebentava debaixo de minhas janelas. Entre os intervalos dos instrumentos, se o mar estava muito cheio, voltava-se a ouvir, contínuo e ligado, o deslizar da água de uma onda, que parecia envolver as cordas do violino em suas volutas de cristal e lançar sua espuma por sobre os ecos intermitentes de uma música submarina. Impacientava-me por não me terem trazido ainda as minhas coisas a fim de que pudesse me vestir. Soava meio-dia e por fim chegava Françoise. E, durante meses a fio, nessa Balbec que tanto desejara, porque só a imaginara batida pela tempestade e coberta de névoas, o bom tempo fora tão deslumbrante e tão fixo que, quando ela vinha abrir a janela, eu pudera sempre, sem me enganar, esperar encontrar a mesma réstia de sol dobrada no ângulo da parede externa, e de uma cor imutável que emocionava menos como um sinal de verão do que pelo teor melancólico, como o de um esmalte artificial e inerte. E, enquanto Françoise desprendia os alfinetes dos cortinados, despregava os tecidos e corria as cortinas, o dia de verão que ela aos poucos desvelava parecia tão morto, tão imemorial, como uma suntuosa e milenária múmia que nossa velha empregada não fizesse mais que ir desenrolando cuidadosamente de suas bandagens, antes de fazê-la aparecer embalsamada em seu vestido de ouro.

Fim

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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - z)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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