segunda-feira, 12 de maio de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Tem-se dito que o silêncio é uma força)

em busca do tempo perdido


volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


     Tem-se dito que o silêncio é uma força; num sentido inteiramente diverso, é de fato uma força terrível à disposição dos que são amados. Ele aumenta a ansiedade de quem está esperando. Nada convida tanto a aproximar-se de uma criatura como aquilo que dela nos separa, e qual a barreira mais intransponível que o silêncio? Diz-se também que o silêncio é um suplício, capaz de tornar louco a quem a ele seja coagido nas prisões. Mas que suplício maior do que guardar silêncio o de suportá-lo vindo de quem se ama! Robert se dizia: "Que será que ela está fazendo então, para se calar desse modo? Sem dúvida está me enganando com outros..." E pensava ainda: "Que será que eu fiz para que se cale assim? Talvez me odeie, e para sempre." E se acusava. Dessa forma, o silêncio o enlouquecia mesmo, pelo ciúme e pelo remorso. Além disso, mais cruel que o das prisões, semelhante silêncio é a própria prisão. Um tabique imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, essa camada interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Existirá mais terrível iluminação que o silêncio que nos mostra não uma ausente, mas mil, cada uma se entregando a uma traição? Às vezes, num alívio brusco, Robert julgava que aquele silêncio ia terminar em breve, que a carta esperada chegaria. Ele a via, ela chegava, ele auscultava cada ruído, já estava acalmado, murmurava:

"A carta! A carta!" Depois de assim ter entrevisto um oásis imaginário de carinho, voltava a ver-se engatinhando no deserto real do silêncio sem fim.

     Sofria por antecipação, sem se esquecer de uma só, todas as dores de um rompimento que, em outras ocasiões, julgava poder evitar, como as pessoas que regulam todos os seus assuntos em vista de uma expatriação que não se efetuará, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte, agita-se momentaneamente desligado delas, semelhante ao coração que se retira de um enfermo e que permanece batendo, separado do corpo. Em todo caso, a esperança de que a amante regressaria lhe dava a coragem para perseverar no rompimento, assim como a crença de que se retornará vivo da batalha ajuda a enfrentar a morte. E, como o hábito é, de todas as plantas humanas, a que menos precisa de solo nutritivo para viver e que é a primeira a aparecer sobre o rochedo aparentemente o mais desolado, talvez praticando a princípio o rompimento por dissimulação, acabasse Robert por se acostumar sinceramente a ele. Mas a incerteza mantinha nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se parecia com o amor. Entretanto, ele se obrigava a não lhe escrever, pensando talvez que seria menos cruel o tormento de viver sem a amante do que viver com ela em determinadas condições, ou que, depois da forma como se tinham deixado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que ele julgava lhe dedicar, se não amor, ao menos a estima e o respeito. Contentava-se em ir ao telefone, que acabavam de instalar em Doncieres, e pedir notícias, ou dar instruções a uma criada de quarto que colocara junto da amiga. De resto, tais comunicações eram complicadas e lhe ocupavam mais tempo, porque, seguindo as opiniões de seus amigos literários quanto à feiúra da capital, mas sobretudo em consideração de seus animais, seus cachorros, seu macaco, seus canários e seu papagaio, cujos gritos incessantes o seu proprietário de Paris deixara de tolerar, a amante de Robert acabava de alugar uma pequena propriedade nos arredores de Versalhes. Entretanto, Robert, em Doncieres, já não dormia um só instante de noite. Uma vez, no meu quarto, vencido pelo cansaço, adormeceu um pouco. Mas de repente começou a falar, queria correr, evitar alguma coisa; dizia: - Estou ouvindo... não, não faça... - Acordou. Disse-me que acabara de sonhar que estava no campo, na casa do sargento-mor. Este procurava afastá-lo de certa parte da casa. Saint-Loup adivinhara que o sargento-mor hospedava em sua casa um tenente muito rico e depravado, que ele sabia que desejava muito a sua amiga. E de súbito, no sonho, ouvira distintamente os gritos intermitentes e regulares que sua amante costumava soltar nos momentos de volúpia. Quisera obrigar o sargento-mor a levá-lo àquele quarto. E este o detinha para impedi-lo de entrar ali, ao passo que fingia um ar ofendido com tanta indiscrição que Robert dizia que nunca poderia esquecer. 

- Meu sonho é idiota acrescentou, ainda sufocado.  

     Mas vi perfeitamente que, na hora seguinte, esteve várias vezes a ponto de telefonar à amante para lhe pedir a reconciliação. Meu pai tinha telefone há pouco, mas não sei se isso teria servido muito a Saint-Loup. Aliás, não me parecia muito conveniente dar a meus pais, mesmo a um simples aparelho instalado em casa deles, esse papel de intermediário entre Saint-Loup e sua amante, por mais distinta e nobre de sentimentos que ela fosse. O pesadelo que Saint-Loup tivera se apagou um pouco de seu espírito. Com olhar distraído, fixo, ele veio me visitar durante todos aqueles dias atrozes que delinearam para mim, seguindo-se um após outro, a curva magnífica de alguma rampa duramente forjada, onde Robert ficava, perguntando-se que resolução a sua amiga iria tomar.
     Por fim, ela lhe perguntou se ele consentia em perdoá-la. E, logo que ele compreendeu que o rompimento fora evitado, percebeu todos os inconvenientes de uma reaproximação. Aliás, já sofria menos e quase aceitara uma dor da qual seria preciso, talvez dentro de poucos meses, encontrar de novo a dentada caso a ligação recomeçasse. E talvez só tenha hesitado por enfim estar certo de poder reaver a amante; de poder e, consequentemente, fazê-lo. Unicamente ela, para poder recuperar a calma, pediu-lhe que não voltasse a Paris a 14 de janeiro. Ora, ele não tinha ânimo de ir a Paris sem vê-la. Por outro lado, ela consentira em viajar em sua companhia, mas para isso era necessário uma licença especial, que o capitão de Borodino não queria conceder. 

- Isto me aborrece por causa da nossa visita à casa de minha tia, que terá de ser adiada. Sem dúvida voltarei a Paris pela Páscoa. 
- Não poderemos ir à casa da Sra. de Guermantes nessa ocasião, pois então já estarei em Balbec. Mas isso não tem importância. 
- Em Balbec? Mas você não iria só no mês de agosto? 
- Sim, mas este ano, devido à minha saúde, devem me mandar mais cedo. 

     Todo o seu temor era de que eu julgasse mal a sua amante, depois do que me contara.

- Ela é violenta só porque tem muita franqueza, é demasiado íntegra nos seus sentimentos. Mas é uma criatura sublime. Tu não podes imaginar as delicadezas poéticas que possui. Vai passar, todos os anos, o Dia de Finados em Bruges. É "bem", não é verdade? Se algum dia a conheceres, verás, ela tem uma grandeza...

     E, como estivesse imbuído de uma certa linguagem que se falava em torno daquela mulher, nos meios literários: 

- Ela tem algo de sideral e até de fatídico, compreendes o que quero dizer, o poeta que era quase um sacerdote.  

     Durante todo o jantar, procurei um pretexto que permitisse a Saint-Loup pedir à tia que me recebesse sem esperar que ele voltasse a Paris. Ora, tal pretexto me foi fornecido pelo desejo que eu tinha de rever os quadros de Elstir, o grande pintor que Saint-Loup e eu tínhamos conhecido em Balbec. Pretexto em que havia, aliás, alguma verdade, pois se, em minhas visitas a Elstir, pedira eu à sua pintura que me conduzisse à compreensão e ao amor das coisas melhores que ela própria, a um degelo verdadeiro, a uma autêntica praça de província, a mulheres de carne e osso na praia (quando muito, lhe encomendara o retrato das realidades que não soubera aprofundar, como um caminho orlado de espinheiros-alvos, não para que me conservasse a sua beleza, mas para que a desvelasse para mim), agora, pelo contrário, a originalidade e a sedução de tais pinturas é que excitavam o meu desejo, e o que eu queria ver acima de tudo eram outros quadros de Elstir.
     Parecia-me, aliás, que seus menores quadros eram algo inteiramente diverso das obras primas de outros pintores, mesmo os maiores que ele. Sua obra era como um reino fechado, de fronteiras indevassáveis, de matéria sem par. Colecionando avidamente as raras revistas onde tinham sido publicados estudos sobre ele, fiquei sabendo que só recentemente é que ele começara a pintar paisagens e naturezas-mortas, mas que havia principiado por quadros mitológicos (vira eu as fotos de dois deles no seu ateliê), e que depois ficara por muito tempo impressionado pela arte japonesa.
     Algumas obras mais características de suas diferentes maneiras se achavam na província. Certa casa dos Andelys, onde se encontrava uma de suas mais belas paisagens, parecia-me tão preciosa, dava-me um desejo tão vivo de viajar como uma aldeia de Chartres, em cuja pedra de mó está engastado um glorioso vitral; e eu me sentia atraído para esse homem que, no interior de sua casa grosseira, na rua principal, encerrado como um astrólogo, interrogava um desses espelhos do mundo que é um quadro de Elstir e que talvez tivesse comprado por milhares de francos com essa simpatia que une até os corações, até as índoles dos que pensam da mesma forma que nós acerca de um assunto essencial. Ora, três obras importantes do meu pintor preferido estavam relacionadas numa daquelas revistas como pertencentes à Sra. de Guermantes. Afinal, foi com sinceridade que, na tarde em que Saint-Loup me anunciara a viagem de sua amiga a Bruges, pude, no decorrer do jantar, diante de seus amigos, atirar-lhe como que de improviso: 

- Escuta, me permites? Na última conversa a respeito da dama de que falamos, não te lembras de Elstir, o pintor que conheci em Balbec? 
- Sim, naturalmente. 
- Lembras-te da minha admiração por ele? 
- Perfeitamente, e da carta que lhe mandamos entregar. 
- Muito bem. Um dos motivos, e não dos mais importantes, um motivo acessório pelo qual eu desejaria conhecer a dita senhora, sabes muito bem qual é? 
- Claro que sim! Tantos parênteses! 
- É que ela possui em casa pelo menos um quadro muito bonito de Elstir. 
- Ora, eu não sabia. 
- Elstir estará em Balbec, sem dúvida, pela Páscoa. Sabe que ele passa agora quase o ano inteiro naquela costa. Gostaria muito de ter visto esse quadro antes de minha partida. Não sei se você tem bastante intimidade com sua tia; não poderia, valorizando-me habilmente a seus olhos a ponto que ela não se recuse, pedir-lhe que me deixe ir ver o quadro sem estar na sua companhia, já que você não estará presente? 
- Está combinado, respondo por ela; vou tratar disso. 
 - Robert, como gosto de você. 
- Você é amável em gostar de mim, mas também o seria se me tratasse por tu como me prometeu e como começara a fazê-lo. 
- Espero que não seja a sua partida o que estão tramando. - disse-me um dos amigos de Robert. - Você sabe, se Saint-Loup sai de licença, isso não deve mudar coisa alguma, pois estamos aí. Será talvez menos agradável para você, mas não mediremos esforços para tentar fazê-lo esquecer a ausência dele.

     Com efeito, no momento em que se supunha que a amiga de Robert estava sozinha em Bruges, acabava-se de saber que o capitão de Borodino, até então de opinião contrária, vinha de conceder ao suboficial Saint-Loup uma longa licença para Bruges. Eis o que se passara. O príncipe, muito cioso de sua basta cabeleira, era um assíduo freguês do maior cabeleireiro da cidade, outrora ajudante do velho cabeleireiro de Napoleão III. O capitão de Borodino dava-se bem com o cabeleireiro, pois era, apesar de seus modos imponentes, muito simples com as pessoas do povo. Mas o cabeleireiro, em cujo estabelecimento o príncipe tinha uma conta atrasada de pelo menos cinco meses, e que os frascos de "Portugal", de "Água dos Soberanos", os ferros de frisar, as navalhas e os couros inchavam, não menos que os xampus, os cortes de cabelo, etc., colocava mais alto Saint-Loup, que pagava integralmente as contas, possuía vários carros e cavalos de sela. Posto ao corrente do aborrecimento de Saint-Loup por não poder viajar com a amante, o cabeleireiro vivamente falou do assunto ao príncipe, atado com uma sobrepeliz branca no momento em que o barbeiro lhe mantinha a cabeça inclinada e ameaçava a sua garganta. A narração dessas aventuras galantes de um rapaz arrancou ao capitão-príncipe um sorriso de indulgência bonapartista. É pouco provável que pensasse em sua conta não paga, mas a recomendação do cabeleireiro o inclinava tanto ao bom humor como ao mau humor de um duque. Ainda estava com o queixo coberto de espuma quando prometeu a licença, que foi assinada na mesma tarde. Quanto ao cabeleireiro, que se acostumara a gabar-se incessantemente, e que, para isso, se arrogava, com extraordinária faculdade de mentiras, prestígios totalmente inventados, por uma vez que prestou um serviço notável a Saint-Loup, não só não lhe trombeteou o mérito, mas, como se a vaidade tivesse necessidade de mentir, e, quando não havia motivos para fazê-lo, cedesse o lugar à modéstia, jamais voltou a falar do caso a Robert.
     Todos os amigos de Robert me disseram que, enquanto ficasse em Doncieres, ou em qualquer época em que para ali regressasse, se Robert estivesse ausente, os seus carros, seus cavalos, suas casas, suas horas de liberdade estariam à minha disposição, e eu sentia que era de coração que aqueles rapazes punham o seu luxo, sua juventude e o seu vigor a serviço da minha fraqueza. 

- Por que afinal recomeçaram eles, após terem insistido para que eu ficasse não haveria você de voltar todos os anos? Veja que esta vida lhe agrada muito! E mesmo porque você se interessa por tudo que se passa no regimento, como se fosse um veterano.

     Não tivesse ouvido; e, conversando com ele (sem cessar de cruzar e descruzar as pernas, inclinando-se para trás, numa atitude displicente, com o pé na mão), chamava-o de "meu caro". Ao contrário, porém, de uma nobreza cujos títulos ainda guardavam sua significação, providos, como continuavam, de ricos morgadios que recompensavam gloriosos serviços e faziam mais viva a lembrança de altas funções em que se exerce o comando sobre muitos homens e onde é necessário conhecê-los, o príncipe de Borodino se não distintamente e em sua consciência clara e pessoal, pelo menos no corpo, que o revelava por seus modos e atitudes considerava a sua linhagem como uma prerrogativa de fato; a esses mesmos plebeus a quem Saint-Loup bateria no ombro e tomaria pelo braço, ele se dirigia com uma afabilidade imponente, em que uma reserva cheia de grandeza temperava a bonomia sorridente que lhe era natural, num tom ao mesmo tempo de sincera benevolência e de altivez intencional. Isto, sem dúvida, se devia a que ele estava menos afastado das grandes embaixadas e da corte, onde seu pai desfrutara dos mais altos cargos e onde as maneiras de Saint-Loup, de cotovelo na mesa e pé na mão, teriam sido mal recebidas; mas se devia, sobretudo, a que desprezava menos essa burguesia, visto que ela era o grande reservatório onde o primeiro imperador fora buscar seus marechais, seus nobres, e onde o segundo encontrara um Fould e um Rouher.
     Sem dúvida, filho ou neto de imperador, e só tendo um esquadrão para comandar, as preocupações de seu pai ou de seu avô não podiam, por falta de objeto a que se aplicar, sobreviver de fato no pensamento do Sr. De Borodino. Mas, como o espírito de um artista continua a modelar muitos anos depois de se haver extinto a estátua que esculpiu, tais preocupações tinham tomado corpo nele, nele se haviam materializado, encarnado; eram elas que o seu rosto refletia. Era com a vivacidade do primeiro imperador na voz que ele dirigia uma censura a um cabo, com a melancolia sonhadora do segundo que exalava a baforada de um cigarro. Quando passava em trajes civis pelas ruas de Doncieres, um certo brilho do olhar, fugindo por sob o chapéu-coco, fazia reluzir em torno ao capitão um soberano incógnito; as pessoas tremiam quando ele entrava no escritório do sargento-mor, seguido pelo ajudante e pelo furriel, como por Berthier e por Masséna. Quando escolhia a fazenda de uma calça para o seu esquadrão, fixava no cabo alfaiate um olhar capaz de frustrar Talleyrand e de enganar Alexandre. E às vezes, ao passar uma tropa em revista, parava, deixando que seus admiráveis olhos azuis sonhassem, torcia o bigode, dava a impressão de edificar uma Prússia e uma Itália novas. Mas logo, tornando-se de Napoleão III à Napoleão I, observava que o enfardamento não estava polido e queria provar o rancho da tropa. E em sua casa, na vida privada, era para as esposas de oficiais burgueses (desde que não fossem franco-maçons) que mandava exibir não apenas uma baixela de Sevres, de azul régio, digna de um embaixador (dada a seu pai por Napoleão, e que parecia ainda mais preciosa na casa provinciana onde residia, no Passeio Público, como essas porcelanas raras que os turistas admiram com mais prazer no armário rústico de uma velha casa senhorial transformada em fazenda bem frequentada e próspera), mas ainda outros presentes do imperador: aquelas nobres e encantadoras maneiras que também teriam feito maravilhas em algum posto de representação, se para alguns o ser "nascido" não representasse passar a vida inteira no mais injusto dos ostracismos, assim como os gestos familiares, a bondade, a graça e, encerrando imagens gloriosas sob um azul igualmente régio, a relíquia misteriosa, iluminada e sobrevivente do olhar. E, a propósito das relações burguesas que o príncipe cultivava em Doncieres, convém dizer o seguinte: o tenente-coronel tocava piano admiravelmente, a esposa do médico-chefe cantava como se tivesse conquistado um primeiro prêmio no conservatório. Este último casal, assim como o tenente-coronel e sua mulher, jantava todas as semanas na casa do Sr. de Borodino. Certamente ficavam lisonjeados, sabendo que o príncipe, quando ia de licença a Paris,-jantava na casa da Sra. de Pourtales, dos Murat, etc.. Mas diziam consigo: "É um simples capitão, sente-se muito feliz por irmos à sua casa; afinal, é um grande amigo nosso." Mas, quando o Sr. de Borodino, que desde há muito vinha trabalhando para aproximar-se de Paris, foi nomeado para Beauvais, fez a sua mudança, esqueceu tão completamente os dois casais músicos como o teatro de Doncieres e o pequeno restaurante de onde mandava vir com frequência o seu almoço e, para grande indignação deles, nem o tenente-coronel, nem o médico-chefe, que tantas vezes tinham jantado em casa do príncipe, nunca mais receberam, em toda a vida, qualquer notícia sua.
     Certa manhã, Saint-Loup me confessou que escrevera à minha avó para lhe dar notícias a meu respeito e lhe sugerir a ideia de conversar comigo, já que estava em funcionamento um serviço telefônico entre Doncieres e Paris. Em breve, no mesmo dia, ela devia me mandar chamar ao aparelho, e ele me aconselhou que estivesse às quinze para as quatro no posto. Àquela época, o telefone ainda não era de uso tão corrente como hoje. E, no entanto, o hábito leva tão pouco tempo para despojar de seu mistério as forças sagradas com que estamos em contato que, não tendo conseguido imediatamente a minha ligação, a única ideia que tive foi de que aquilo era tão demorado, tão incômodo, que quase acabei fazendo uma queixa: como todos nós agora, eu não achava bastante rápida, à minha disposição, em suas bruscas mudanças, a admirável magia pela qual são suficientes uns poucos instantes para que surja junto a nós, invisível mas presente, a criatura a quem desejávamos falar e que, ficando à sua mesa, na cidade em que mora (no caso de minha avó era Paris), sob um céu diverso do nosso, durante um tempo que não é forçosamente o mesmo, em meio a circunstâncias e preocupações que ignoramos e que essa criatura vai nos dizer, se acha de súbito transportada a centenas de léguas (ela e todo o ambiente em que permanece mergulhada), perto de nossos ouvidos, no momento em que o nosso capricho assim ordenou. E somos como o personagem do conto a quem uma fada, ante o desejo que ele exprime, faz surgir, banhada em claridade sobrenatural, a avó ou a noiva no ato de folhear um livro, de derramar lágrimas, de colher flores, tão perto do espectador e entretanto tão longe, no próprio local onde se encontra de verdade. Para que tal milagre se cumpra, basta-nos aproximar os lábios da prancheta mágica e chamar - às vezes, admito-o, um pouco longamente as Virgens Vigilantes, cuja voz podemos ouvir todos os dias sem jamais conhecer-lhes o rosto, e que são anjos da guarda nas trevas vertiginosas cujas portas vigiam com ciúme; as Todo-poderosas devido a quem os ausentes surgem ao nosso lado, sem que seja permitido vislumbrá-los; as Danaides do invisível que sem cessar esvaziam, voltam a encher e transmitem as umas de sons; as irônicas Fúrias que, no momento em que murmuramos uma confidência a uma amiga, com a esperança de que ninguém nos ouça, gritam cruelmente: "Estou ouvindo!"; as servas sempre irritadas do Mistério, as desconfiadas sacerdotisas do Invisível, as Senhoritas do telefone!
     E logo que nosso chamado ressoou, na noite cheia de aparições para a qual só os nossos ouvidos se abrem, um leve ruído um ruído abstrato o da distância suprimida e a voz do ser amado se dirige a nós. É ele, é a sua voz que nos fala, que está ali.
     Mas como está longe! Quantas vezes não pude escutá-la sem angústia, como se diante dessa impossibilidade de ver, antes de longas horas de viagem, aquela cuja voz estava tão perto de meu ouvido, eu sentisse melhor o que há de decepcionante na aparência de uma reaproximação mais doce, e a que distância podemos estar das pessoas amadas no momento em que parece não termos mais que estender a mão para retê-las. Presença real a dessa voz tão próxima na separação efetiva! Mas também antecipação de uma separação eterna! Com muita frequência, escutando desse modo, sem ver quem me falava de tão longe, pareceu-me que essa voz clamava das profundezas de onde não se sobe, e conheci a ansiedade que ia me estreitar um dia, quando uma voz voltasse assim (sozinha e já não presa a um corpo que eu não devia rever nunca mais) a cochichar no meu ouvido palavras que eu gostaria de beijar de passagem sobre lábios para sempre em pó.
     Infelizmente, naquele dia em Doncieres o milagre não ocorreu. Quando cheguei ao posto telefônico, minha avó já me havia chamado; entrei na cabine, a linha estava ocupada; alguém conversava, sem dúvida sem saber que não havia ninguém para lhe responder, pois, quando puxei para mim o receptor, aquele pedaço de madeira se pôs a falar como Polichinelo; fi-lo calar se, assim como no guignol, repondo-o em seu lugar, mas, como Polichinelo, logo que o trazia para junto de mim, ele começava o seu palavrório. Em desespero de causa, acabei por pendurar em definitivo o receptor, acabei por sufocar as convulsões daquela coisa sonora, que tagarelou até o último segundo, e fui procurar o funcionário que me disse para esperar um momento; depois falei e, após alguns instantes de silêncio, ouvi de súbito aquela voz que eu julgava erroneamente conhecer tão bem, pois até então, de cada vez que minha avó conversava comigo, o que ela me dizia eu sempre o acompanhara na partitura aberta de seu rosto, onde os olhos ocupavam enorme espaço; mas sua própria voz, escutava-a hoje pela primeira vez. E porque essa voz me surgia mudada em suas proporções desde o instante em que era um todo, e assim me chegava sozinha e sem o acompanhamento das feições do rosto, descobri o quanto era doce aquela voz; talvez mesmo nunca o tivesse sido a esse ponto, pois minha avó, sentindo-me distante e infeliz, julgava poder abandonar-se à efusão de uma ternura que, por "princípios" de educação, ela habitualmente recalcava e escondia. A voz era doce, mas também como era triste, primeiro devido à própria doçura, quase filtrada, mais do que nunca o seriam algumas vozes humanas, de toda dureza, de todo elemento de resistência aos outros, de todo egoísmo; frágil à força de delicadeza, parecia a todo instante prestes a quebrar-se, a expirar em um puro correr de lágrimas; a seguir, tendo-a sozinha comigo, vista sem a máscara do rosto, nela reparava, pela primeira vez, os desgostos que a tinham marcado no decurso da vida.

continua na página 58...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Tem-se dito que o silêncio é uma força)
Volume 7

Nenhum comentário:

Postar um comentário