Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo IV
Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo
O tempo era horrível. Neste ponto, Hans Castorp não teve sorte durante os poucos dias
da sua permanência nessa região. Não caía neve, propriamente, mas chovia dias a fio, uma chuva
pesada e feia; nuvens espessas cobriam o vale, e com estrondos arrastados e retumbantes
descarregavam-se trovoadas ridiculamente supérfluas, dado o frio, tão intenso, que se fez
necessário acender a calefação da sala de refeições.
– Que lástima! – disse Joachim. – Eu pensava que a gente pudesse um dia levar uma
merenda e ir a Schatzalp, ou fazer qualquer outra excursão. Mas parece que não será possível.
Espero somente que sua última semana seja melhor.
No entanto, Hans Castorp respondeu:
– Deixe disso. Não estou com ânimo empreendedor. A minha primeira aventura não me
saiu muito bem. Descanso melhor, quando vivo assim calmamente, sem muitas distrações.
Distrações são para os veteranos, mas eu, com minhas três semanas, para que preciso de
distrações?
Com efeito, ele sentia-se ocupado e absorto com o que havia no lugar onde estava. Se
abrigava esperanças, tanto a sua realização como uma possível decepção aguardavam-no aqui e
não num Schatzalp qualquer. O que o atormentava não era tédio; pelo contrário, começava a
recear que o fim da sua estadia chegasse com demasiada pressa. A. segunda semana já estava
avançada; dois terços do seu tempo em breve teriam passado, e quando começasse o último
terço, já seria tempo de arrumar as malas. Aquela primeira revitalização do senso de tempo de
Hans Castorp havia muito que se passara; os dias já começavam a voar, e isso conquanto cada um
deles se estirasse sob o efeito de uma expectativa sempre renovada e abundasse de experiências
silenciosas e secretas... Sim, o tempo é um enigma singular, difícil de resolver.
Será necessário pormenorizar aquelas experiências secretas que, ao mesmo tempo,
retardavam e aceleravam o curso dos dias de Hans Castorp? Mas ninguém as ignora; tratava-se de
experiências absolutamente comuns, na sua insignificância sentimental; e num caso mais razoável
e mais futuroso, que permitisse a aplicação daquela cançãozinha “No fundo de minha alma
ecoa...”, tampouco se teriam desenrolado de outra forma.
Era impossível que Mme. Chauchat nada percebesse dos fios que se estendiam entre
determinada mesa e a sua. E era justamente intenção desenfreada de Hans Castorp que ela
notasse alguma coisa e até o máximo possível desses fios. Dizemos “desenfreada”, porque ele
próprio estava perfeitamente a par da insensatez de seu caso. Mas quem se encontra no estado a
que ele chegara, ou melhor, em que estava a ponto de entrar, deseja que a outra parte tome
conhecimento desse estado, ainda que a coisa não tenha nem pé nem cabeça. Isso é apenas
humano.
Mme. Chauchat voltara-se duas ou três vezes, durante as refeições, para aquela mesa, ou
por casualidade ou sob o efeito de algum magnetismo, e sempre dera com os olhos de Hans
Castorp. Na quarta vez, fê-lo com premeditação, e de novo os encontrou atentos. Na quinta
ocasião, não lhe surpreendeu o olhar, porque ele abandonara o seu posto de vigia. Mas Hans
Castorp sentiu imediatamente que ela o observava, e seus olhos lhe responderam tão
fervorosamente, que Mme. Chauchat, sorrindo, desviou o olhar. Se ela o julgava pueril, estava
enganada. Sua necessidade de refinamento era considerável. Assim, na sexta vez, quando
pressentiu, adivinhou, recebeu uma mensagem íntima de que ela o contemplava, fingiu examinar
com insistente desgosto a cara pustulosa de uma senhora que se aproximara da sua mesa para
falar com a tia-avó, e não desistiu disso antes de ter certeza de que os olhos “quirguizes”, lá do
outro lado da sala, se haviam desviado dele – estranha comédia que Mme. Chauchat não somente
podia mas até devia perceber, para que a sutileza e o autodomínio de Hans Castorp a fizessem
refletir... E as coisas se adiantaram até o seguinte episódio: num intervalo entre dois pratos, Mme.
Chauchat virou-se indolentemente e inspecionou a sala. Hans Castorp estava no seu posto de
vigia, e seus olhares entrechocaram-se. Enquanto se encaravam – a enferma de um modo
vagamente escrutador e irônico, e Hans Castorp com uma firmeza excitada, que o fez cerrar os
dentes, a fim de sustentar os olhos da mulher –, o guardanapo de Mme. Chauchat começou a
deslizar e já estava a ponto de cair ao chão. Estremecendo nervosamente, ela procurou agarrá-lo;
mas o jovem também se sobressaltou, levantou-se da cadeira e fez menção de se precipitar
cegamente em seu socorro, através do espaço de oito metros que os separava, e contornando
uma mesa que estava de permeio, como se fosse uma catástrofe se o guardanapo chegasse a tocar
o chão... Ela conseguiu ainda apanhá-lo, a poucos centímetros acima do assoalho. Mas nessa
posição oblíqua, agachada, com a ponta do guardanapo entre os dedos e com o rosto anuviado,
visivelmente aborrecida por aquele pequeno pânico absurdo que acabava de invadi-la, e do qual
ela parecia culpar Hans Castorp – nessa atitude, pois, lançou ao jovem mais um olhar, observou
como ele, com as sobrancelhas cerradas, se dispunha a atirar-se numa corrida, e esboçando um
sorriso, virou-lhe as costas. Hans Castorp abandonou-se todo à sensação de triunfo que esse
incidente originara nele. Mas a reação não se fez esperar, já que, no decorrer dos dois dias
seguintes, quer dizer, durante dez refeições, Mme. Chauchat não se voltou para olhar a sala e até
renunciou ao seu hábito de “apresentar-se” ao público no momento da entrada. Era duro. Como,
porém, essas modificações na sua conduta indubitavelmente se endereçavam a ele, era evidente a
existência de uma relação entre ambos, se bem que de forma negativa; e isto era o que lhe
bastava.
Hans Castorp compreendia bem que Joachim tivera toda a razão ao observar que ali não
era fácil travar conhecimento com outras pessoas, com exceção dos comensais. Pois, durante a
escassa hora depois do jantar – a única que dava regularmente ocasião a uma espécie de vida
social, mas amiúde se reduzia a uns vinte minutos – Mme. Chauchat achava-se sempre em
companhia dos membros de seu círculo habitual, o cavalheiro de tórax côncavo, a mocinha
humorística, com os cabelos lanosos, o taciturno Dr. Blumenkohl e os jovens de ombros caídos.
Todos eles ocupavam o fundo do pequeno salão que parecia reservado à mesa dos “russos
distintos”. Acrescia a isso que Joachim nunca deixava de ter pressa de sair do salão, a fim de não
abreviar o repouso, como dizia, e talvez também por outros motivos dietéticos que não
mencionava, mas que Hans Castorp adivinhava e respeitava. Acabamos de tachar de
“desenfreados” os seus desejos, mas qualquer que fosse o seu rumo, o que ele almejava não eram
relações sociais com Mme. Chauchat, e no fundo estava de acordo com as circunstâncias que se
lhes opunham. As relações vagamente tensas que seus olhares e gestos haviam estabelecido entre
ele e a russa não tinham caráter social, não obrigavam a nada e não deviam, de modo algum,
obrigar. Era perfeitamente compatível com elas uma vasta série de argumentos reprovadores, da
sua parte, e o fato de seu coração palpitar com o pensamento em “Clávdia” não era nem de longe
suficiente para abalar no neto de Hans Lorenz Castorp a convicção de que entre ele e aquela
estrangeira, que passava a vida separada do marido e sem aliança no dedo, em toda espécie de
estações de cura, cuja postura deixava a desejar, que batia estrondosamente as portas, fazia
bolinhas de migalhas de pão, e sem dúvida roía as unhas – a convicção, pois, de que entre ele e
Mme. Chauchat não podia em realidade – isto é, fora dessas suas relações secretas – haver nada
em comum; abismos profundos separavam a sua existência da dela, e ele sentia-se incapaz de
enfrentar, ao lado de “Clávdia”, qualquer das autoridades que reconhecia. Hans Castorp era por
demais sensato para ter a mínima presunção pessoal; mas uma altivez de natureza mais geral e de
origem mais longínqua achava-se gravada na sua fronte e em torno dos olhos um tanto
sonolentos, e o resultado dessa altivez era aquele sentimento de superioridade do qual o jovem
não podia nem queria desfazer-se em presença do ser e do jeito de Mme. Chauchat. É estranho
que esse sentimento de proveniência tão afastada se lhe tenha tornado consciente com uma
intensidade particular, e possivelmente pela primeira vez, quando, um belo dia, ouviu Mme.
Chauchat falar em alemão. Achava-se ela na sala, depois do fim de uma refeição; estava de pé,
com as mãos nos bolsos do suéter, e conversava com outra enferma, provavelmente uma
companheira do alpendre de repouso. Ao passar por ela Hans Castorp percebeu os esforços, aliás
encantadores, que ela fazia para lidar com o idioma alemão, a sua própria língua materna, como
ele de repente notou com um orgulho nunca antes experimentado, embora ao mesmo tempo se
sentisse inclinado a sacrificar esse orgulho ao deleite que lhe inspiravam aquelas palavras
graciosamente desfiguradas.
Numa palavra: na sua relação muda com esse membro negligente da sociedade do
Berghof, não via Hans Castorp senão uma aventura de férias, que, perante o tribunal da Razão –
da sua própria consciência raciocinadora –, não podia reclamar nenhuma aprovação; antes de
tudo, porque Mme. Chauchat estava enferma, lassa, febril e interiormente carcomida,
circunstância estreitamente relacionada com o caráter duvidoso de toda a sua existência, e que
também contribuía muito para inspirar a Hans Castorp certos sentimentos de distância e de
reserva... Não, pretender seriamente entabular com ela relações reais era uma ideia que não lhe
ocorria, e quanto àquela relação muda – ela acabaria, bem ou mal, dentro de semana e meia,
quando começasse o seu estágio na Casa Tunder & Wilms.
Verdade é que por enquanto se acostumara a considerar como o autêntico objetivo e o
genuíno conteúdo das suas férias todas essas emoções, tensões, satisfações, decepções,
provenientes da sua delicada relação com a enferma; habituara-se a entregar-se totalmente a elas e
a deixar depender o seu humor do seu desenvolvimento próspero ou não. As circunstâncias
favoreciam o seu culto com a maior benevolência, uma vez que viviam um perto do outro, num
espaço limitado, e com um programa do dia preestabelecido e obrigatório para todo mundo.
Ainda que Mme. Chauchat morasse num outro andar, o primeiro, e fizesse a cura de repouso no
terraço do sótão, o mesmo onde o Capitão Miklosich havia pouco apagara a luz, existia contudo a
possibilidade e até a inevitabilidade de constantes encontros, da manhã à noite, pelo simples fato
de haver cinco refeições. E isso, tanto quanto a ausência de preocupações e dificuldades, parecia
sumamente simpático a Hans Castorp, ainda que lhe causasse certa angústia a sensação de estar
preso na mesma cela com a quase-oportunidade favorável.
Mesmo assim, ele acelerava ainda um pouco a marcha dos acontecimentos; fazia cálculos
e punha o seu cérebro a serviço da causa da sua felicidade. Visto Mme. Chauchat chegar
habitualmente atrasada à mesa, Hans Castorp esforçou-se por se atrasar também, a fim de
encontrá-la no caminho. Vestia-se com vagar, de modo que não estava pronto quando Joachim
vinha buscá-lo, pedia ao primo que descesse sem ele e dizia que o seguiria imediatamente.
Dirigido pelo instinto peculiar ao seu estado de alma, aguardava determinado momento que lhe
parecia indicado. Então descia correndo ao primeiro piso; a partir dali, não continuava a servir-se
da mesma escada pela qual chegara, mas percorria quase toda a extensão do corredor até o
patamar da outra escada, passando por uma porta que havia muito conhecia, a do quarto número
7. Durante esse caminho, ao longo do corredor, de uma escada à outra, cada passo oferecia, por
assim dizer, uma probabilidade, pois a qualquer instante podia abrir-se a referida porta, e
repetidas vezes isto se deu de fato. Estrondosamente fechava-se ela atrás de Mme. Chauchat, que,
por sua vez, saía silenciosamente, e silenciosamente se encaminhava para a escada... E logo descia
diante dele, segurando a trança com a mão, ou Hans Castorp ia à sua frente, sentindo-lhe o olhar
na nuca e experimentando nos membros como que uma cãibra e nas costas a sensação de um
formigueiro. Mas, no desejo de fingir que lhe ignorava a presença e vivia uma vida individual
vigorosamente independente, enterrava as mãos nos bolsos do paletó, encolhia os ombros ou
pigarreava sem necessidade, batendo no peito com o punho – tudo isso para patentear a sua
indiferença.
Em duas ocasiões, levou a manha ainda mais longe. Quando já se achava sentado à mesa,
disse, entre perplexo e irritado, apalpando os bolsos com as mãos: – Ora essa, esqueci o meu
lenço! Preciso subir outra vez. – E subiu, para que ele e “Clávdia” se encontrassem, o que
constituiria um acontecimento diferente, mais perigoso, cheio de atrativos mais picantes do que ir
à frente ou atrás dela. A primeira vez que realizou essa façanha, Mme. Chauchat mediu-o com os
olhos, de cima a baixo, a certa distância, e de modo bastante atrevido, livre de qualquer
acanhamento; mas quando foram se aproximando, desviou o rosto com displicência e passou por
ele de tal maneira, que ao resultado desse episódio não merecia ser atribuído grande valor. Da
segunda vez, porém, encarou-o, e não só de longe; encarou-o durante todo o tempo com ar firme
e até um pouco sombrio, e quando seus caminhos se encontraram, chegou mesmo a virar a
cabeça para ele. O pobre Hans Castorp sentiu-se penetrado até a medula. Por outro lado não
convém lastimá-lo, já que fora ele próprio que quisera tudo isso. Esse encontro causou-lhe,
todavia, um veemente abalo, enquanto ocorria e sobretudo posteriormente; pois, quando tudo já
pertencia ao passado, foi que percebeu com precisão o que se dera. Nunca antes tivera o rosto de
Mme. Chauchat tão perto dele, tão nitidamente distinto em todos os seus pormenores. Pudera
divisar os cabelinhos curtos que se desprendiam do emaranhado da trança loura, de um tom
metálico, arruivado, e que estava simplesmente enrolada em volta da cabeça. Houvera apenas uns
poucos palmos de distância entre o seu próprio rosto e o dela, rosto de feições esquisitas e
todavia tão familiares, que lhe agradavam como mais nada no mundo; feições estranhas e cheias
de caráter – pois só o estranho nos parece ter caráter –, de um exotismo nórdico misterioso, que
induzia à análise, visto suas particularidades e proporções não serem fáceis de determinar. A
característica essencial eram, sem dúvida, as maçãs salientes, altas e acentuadas que comprimiam
os olhos descomunalmente distantes entre si e situados quase à flor do rosto; até lhes impunham
uma certa obliquidade e ao mesmo tempo originavam o suave côncavo das faces, que, por sua
vez, e indiretamente, causava a exuberância dos lábios um tanto grossos. Mas antes de tudo havia
os próprios olhos – esses olhos quirguizes, de corte estreito e, conforme a opinião de Hans
Castorp, simplesmente mágico, olhos cuja cor cambiava entre azul e cinzento, qual a de uma
cordilheira longínqua, e que às vezes, por ocasião de certos relances para o lado, que não se
fixavam em nada, eram capazes de se envolver, languidamente, em trevas misteriosas – os olhos
de Clávdia, afinal, que o haviam contemplado atrevida e um tanto sombriamente, de muito perto,
e que, na sua posição, cor e expressão, se pareciam de modo surpreendente e mesmo assustador
com os de Pribislav Hippe. “Pareciam” nem é sequer a expressão adequada; não!, eram os
mesmos olhos, e também a largura da parte superior do rosto, o nariz levemente achatado, tudo,
até a brancura rosada da pele e a tez sadia, que em Mme. Chauchat apenas dava a ilusão de saúde,
e, como nos casos dos demais pensionistas, não passava de um resultado superficial do repouso
ao ar livre – tudo isso era tal qual o rosto de Pribislav, e o olhar com que este o contemplava no
pátio da escola, quando um passava perto do outro, tampouco era diferente.
Era inquietante sob todos os aspectos. Hans Castorp estava entusiasmado pelo encontro
que acabava de ter, e ao mesmo tempo sentia qualquer coisa como um temor nascente, uma
angústia semelhante àquela que lhe causava a sensação de estar preso na mesma cela com a quase oportunidade favorável: também o fato de Pribislav, havia muito olvidado, vir-lhe ao encontro ali
em cima, na pessoa de Mme. Chauchat, fitando-o com aqueles olhos quirguizes, também isso
fazia com que Hans Castorp se sentisse preso em companhia do inevitável e do irremovível –
irremovível num sentido venturoso e atemorizador. Era um fato auspicioso, mas ao mesmo
tempo fatídico, apavorante mesmo, e o jovem Hans Castorp sentiu algo como uma necessidade
de socorro. No seu íntimo operavam-se movimentos vagos e instintivos que poderíamos
qualificar de olhares, tateios e gestos em busca de apoio, conselho e ajuda. Sucessivamente,
pensou em diversas pessoas, das quais, talvez, lhe fosse útil recordar-se.
Havia ali, a seu lado, Joachim, o bondoso e honrado Joachim, cujos olhos, no decorrer
desses últimos meses, tinham assumido uma expressão melancólica, e que às vezes encolhia os
ombros daquele jeito desdenhoso e violento que em outros tempos não lhe fora peculiar;
Joachim, com o “Joãozinho Azul” no bolso, para empregarmos o termo com que esse recipiente
era designado pela Srª. Stöhr, cuja fisionomia obstinadamente descarada nunca deixava de causar
horror a Hans Castorp... Havia, pois, o brioso Joachim, atormentando e maçando o Dr. Behrens,
a fim de obter a licença de partir e de fazer o almejado serviço na “planície”, na “baixada”, como
os que viviam aqui em cima chamavam, com leve mas nítido desprezo, o mundo das pessoas
sadias. Para que chegasse mais rapidamente ali e poupasse um pouquinho daquele tempo que
aqui se gastava tão generosamente, dedicava-se com o máximo rigor à cura regulamentada; fazia-o para recuperar a saúde, sem dúvida, mas também, como Hans Castorp adivinhava de vez em
quando, por amor ao próprio regime, que, afinal de contas, era um serviço como qualquer outro,
e cumprir esse dever era cumprir seu dever. Por isso acontecia todas as noites que Joachim, ao
cabo de um quarto de hora, já insistia com ele em que abandonassem a reunião dos pensionistas e
se recolhessem ao repouso noturno, e isso tinha as suas vantagens, pois a pontualidade militar do
primo acudia ao espírito civil de Hans Castorp, que sem ela talvez preferisse demorar-se por
muito tempo a contemplar, sem proveito nem esperança, a saleta ocupada pelos russos. No
entanto, o fato de Joachim ter tanta pressa de abreviar a vida social no salão era também devido a
outro motivo de natureza secreta, mas que Hans Castorp compreendia perfeitamente, desde que
conhecia tão bem aquela palidez terrosa de Joachim e o modo particularmente doloroso com que
a boca do primo se crispava em determinados momentos. Ora, Marusja, a sempre risonha
Marusja com o pequeno rubi no formoso dedo, com o perfume de flor de laranjeira e com os
seios opulentos, mas carcomidos, também costumava estar presente às reuniões sociais, e Hans
Castorp percebeu que essa circunstância afugentava Joachim, precisamente porque o atraía em
excesso, de uma forma pavorosa. Joachim também se sentia “preso numa cela”, e de modo ainda
mais opressivo e angustiante do que ele próprio, pois Marusja, com seu lencinho perfumado, não
comia cinco vezes por dia à mesma mesa que eles? Em todo caso achava-se Joachim por demais
ocupado consigo mesmo para que a sua existência pudesse significar uma ajuda íntima para Hans
Castorp. Sua fuga da sala de reuniões, que se repetia diariamente, sem dúvida o honrava, mas o
seu efeito era pouco tranquilizador para Hans Castorp, que por momentos tinha a impressão de
descobrir aspectos perigosos no bom exemplo que lhe oferecia Joachim quanto ao cumprimento
rigoroso dos deveres do regime, e nas instruções de perito que o primo lhe dava.
Não fazia ainda nem sequer duas semanas que Hans Castorp estava no Berghof, mas
parecia-lhe muito mais tempo, e o programa do dia, ali em cima, esse programa que ele via
Joachim observar com tanto zelo piedoso, começara a adquirir a seus próprios olhos um quê de
intangibilidade sagrada e natural, tanto assim que a vida lá de baixo, na baixada, vista assim de
cima, se lhe afigurava quase anormal e errada. Já chegara a um alto grau de habilidade no manejo
dos dois cobertores, mediante os quais a gente, nos dias frios, se transformava, por ocasião do
repouso, num pacote simétrico, parecido com uma verdadeira múmia; pouco faltava para que
igualasse a destreza de Joachim na arte de envolver-se segundo as regras; quase que se admirava
ao pensar que lá embaixo, na planície, ninguém sabia dessa arte. Pois é, isso era estranho, mas ao
mesmo tempo Hans Castorp sentia estranheza diante do fato de que assim lhe parecia, e
novamente nascia nele o desassossego que o fazia perscrutar o seu íntimo em busca de um
conselho ou de um apoio.
E ele pensou no Dr. Behrens e no seu conselho, oferecido sine pecunia, de viver
exatamente como os pacientes e até de tomar a temperatura; lembrou-se também de Settembrini,
que desatara a rir às gargalhadas ao ficar sabendo desse conselho, e depois citara qualquer coisa
da Flauta mágica. Sim, nesses dois também pensou a título de experiência, para ver se essa
recordação lhe trazia algum proveito. O Dr. Behrens era um homem de cabelos brancos, poderia
ser o pai de Hans Castorp. Além disso, era o diretor do estabelecimento, a mais alta autoridade
que existia por ali, e era justamente de autoridade paterna que o coração do jovem Hans Castorp,
na sua inquietude, sentia necessidade. E todavia, por mais que tentasse, não conseguia recordar-se
do conselheiro áulico com confiança filial. O médico enterrara ali a esposa, sofrendo um golpe
que passageiramente o tornara um tanto esquisito. Depois permanecera em Davos, porque o
túmulo o retinha, e também por estar ele mesmo atacado pela enfermidade. Quem sabia se isso já
passara? Gozava o Dr. Behrens de boa saúde, e estava sinceramente decidido a curar as pessoas
para que pudessem sem demora regressar à planície e voltar ao serviço? Suas faces estavam
sempre azuis, e ele dava a impressão de estar febril. Mas talvez fosse isso apenas uma ilusão, e a
cor do seu rosto se devesse ao ar das alturas. O próprio Hans Castorp experimentava todos os
dias um ardor seco, sem que tivesse febre, ao menos pelo que se podia julgar sem termômetro.
Mas, quando se ouvia o conselheiro falar, tinha-se, às vezes, novamente a impressão de ele estar
com temperatura elevada; alguma coisa não parecia certa na sua maneira de expressar-se; embora
as suas palavras soassem enérgicas, corretas e joviais, havia nelas qualquer coisa singular, exaltada,
sobretudo para quem observava ao mesmo tempo as faces azuis e os olhos lacrimosos que faziam
acreditar que ele ainda chorava a mulher. Hans Castorp lembrou-se do que Settembrini dissera da
“melancolia” e dos “vícios” do conselheiro áulico, a quem chamara de “alma atarantada”. Nisso
podia haver malícia ou leviandade, e contudo Hans Castorp achava muito pouco reconfortante a
recordação do Dr. Behrens.
continua pág 097...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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