terça-feira, 24 de maio de 2011

Cara de fome não é a mesma cara que tem a barriga cheia

As unhas do pé

baitasar

Com a filha casada, Maria Memória planeja a própria barriga que segue avolumando com a semente do Ogum. E traceja uma pequena casinha para os jovens mancebos. Os recém casadoiros necessitam dois compartimentos de acomodação, nada, além disso.

A jovem parelha tem carência de quarto, para as necessidades de vergonha e pecado já conhecidas, o acasalamento. E o cômodo das obrigações com as comilanças. No início, a cozinha é acessória, com o tempo da convivência se transforma em lugar de encantamentos. A rendição se faz pelo estômago.

O apego das conversas pode permanecer na casa da frente, a sua casa, Crianças, venham e fiquem na vontade do tempo.

As misérias do aparelho sanitário continuam supridas pela casa de banho do casarão. Lugar dos maiores investimentos em acomodação. A baia do banho é mantida por cortina plástica, tem reflexos azulados na cor verde água. Na barra de baixo, a cortina está escura da umidade dos banhos.

A família tem o maior orgulho em emprestar suas acomodações aos visitantes. Nenhuma visitação escapa de fazer algum descarrego pelo quarto sanitário. Lugar do amor-próprio e júbilo. Uso de todos. Cartão de visitas.

A mulher encantada sabe que em tempos de morte e nascimento as coisas saem da comodidade, são regidas pelas naturalidades do destino, enquanto a vida se ajeita sem maiores correrias, Minha filha, você vai saber o que fazer, é instinto, filho que chora de fome precisa ser curado. Maria Memória sabe que a comida precisa chegar isso é o que importa. Cara de fome não é a mesma cara que tem a barriga cheia.

A mulher ileié dorme e acorda, está preocupada com a barriga da sua filha Cariciosa, as duas avolumam. Passa a mão sobre a sua barriga redondona, Não tenho motivo de susto. Os nascimentos não lhe vinham como novidade, depois de tantas crianças brotadas do seu bojo prenhe. Olha-se e adivinha que sua hora está chegando, Minha preta, O que foi, Ogum, responde olhando para o abrigo do telhado. A mão continua sobre a barriga arredondada, pensa que não tem motivo de susto, Minha preta, vira as vistas para o marido. Os olhos do negão estavam assanhados, Tô com o peito amarrotado como bolinha de papel, Posso ajudar no alívio, Tenho medo de fazer estrago. Sempre a mesma bobagem, esse não se aprende nem se ensina, Medo do quê, meu nêgo, Você sabe, cutucar o guri com vara comprida, Bobagem, meu nêgo, tem que cuidar a afobação.

O corpão da Memória estremece com aquele amoquecar adoidado. A bagunça é a lembrança que tem guardada das primeiras intimidades com Ogum, homem e mulher abandonados, ajuntados por conveniência de um e necessidade da outra. Levou tempo até acertarem quando ela se abria e ele enfiava a alma dura e firme.

O facho da labareda lhe trás desconforto calorento pernas acima. Deixa escapar um leve sorriso nos lábios carnudos. Lembra dos ombros largos fortes, as mãos de empilhadeira. Desconfia que o negão se animou além dos hábitos em tempo de barriga cheia. Ele já mostra saliência e o entusiasmo vai se avivando. O tempo da quentura e derramamento está de volta.

Maria Memória lembra a necessidade de cortar as unhas daqueles pés imensos. Tudo é imenso e desmedido nesse homem. Parecem pés de caranguejo. Ele vai se erguendo, enquanto respira profundamente, move-se mais devagar que o próprio costume. Está em pé, com as mãos na cintura. O dormitório iluminado com a chama da vela de cera. Memória aproxima a voz ao marido ferroviário, Ô marido, vai dormir com o boné, ele ergue os olhos e vê a aba do boné, Esqueci de tirar, minha preta, E o banho, Já tomei. Ela atira o olhar com força através da penumbra incompleta do quarto, Vai lavar só as mãos, Ta frio, minha preta, Vai vai vai logo, não esquece de cortar as unhas dos pés, Tu acha que tem precisão, o silêncio da mulher faz derramar sua preguiça como o leite fervido. Engole a moleza em seco. Enfia os pés nos chinelos e sai do quarto.

A energia da eletricidade está desligada. O beco está nas escuras. O poste dos fios elétricos foi quebrado ao meio. Acidente automobilístico. Motorista aturdido pela cachaça. O banho será frio, Quem precisa de aquecimento, sobe no mochinho segurando um toco de vela acesa, até que alcança nos armários a prateleira mais acima. Acha a maldita pinga. Tira a cortiça e toma um gole seco e curto. Sente a queimação no estômago se espalhando. Está pronto.

Vai para o banho. Tira as cuecas, fica vestido com os chinelos. Abre o registro na parede. Nenhuma gota. O cano está seco, Faltou água, exclama silencioso. Enrola a toalha na cintura, pega um balde e vai até o cocho do Ícaro. Mergulha o balde na água de beber do cavalo e volta para a lavação higiênica. Enfia uma caneca n’água e molha o corpanzil com nervosismo e fúria. Ensaboado, Espumando. Novo enxágue. Treme com o frio. Num acesso de fúria pega o balde e vira sobre a cabeça. Não respira ou geme, apenas estremece.

Depois de seco e polido ele sai do quarto de banho. Recolhe o balde e a caneca. Agarra a garrafa e retira a rolha com os dentes. Toma outro gole. Abre uma das gavetas e retira um pequena folha de hortelã para mascar. Volta para o quarto do casal. Caminha com outro toco de vela na mão, Cortou as unhas, pergunta a mulher deitada. Num assopro deixa o compartimento dormitório às escuras, Cortei. Aposta que na certa nem vai reparar.

Deita ao lado da mulher ileié. Ela está deitada à sua frente, de lado, examina suas partes, Hum hum, O que foi, minha preta, Cheiro gostoso. As mãos da Memória aquecem o negão aos poucos. No passo da lentidão, Ogum requenta o seu corpo de pau de carga com um fogo diferente, uma lenha que não se consome, avoluma. O toco não é mais de madeira, parece com ferrão de abelha. Acesso pelo ventre.

Reavisado pelas mãos da preta.

A mulher ileié espalha o cheiro do amor com a boca. O negão adora seu perfume de mulher desejosa. A cada gemido do homem, a mulher pede silêncio e tapa a voz com uma das mãos.

Maria Memória refresca as lembranças e coloca os olhos no centro da carne que quer extrair com a boca. Está envolta em saliva, Ai, O que foi, minha preta, Negão, tu não cortou as unhas do pé, Amanhã, minha preta, Tu mentiu, negão, Minha preta, dou um jeito nas unhas depois, Perdi a vontade, Maria Memória, não fica de birra.

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