segunda-feira, 23 de maio de 2011

O tempo precisava comer suas lembranças

Tempo de espera

baitasar

Maria Memória não sabia o que era pior, os olhares com piedade, os murmúrios pelas costas, as piadas duvidosas ou o gosto amargo da mulher largada. O desaparecimento do Virgílio com a bisca da vizinha, mulher do Ogum, era o assunto do seu sofrimento.

Mas, enfim, depois do tempo de espera sem notícias dos fugitivos, veio a certeza que se eles saíram às ocultas, não tinham intenção de retorno. Memória, nas primeiras semanas, alimentou o sonho, às vezes parecido com um pesadelo: acordava, em meio ao sono, com a voz do Virgílio anunciando seu arrependimento e pedindo perdão, Não tem perdão, comigo só faz uma vez, Mulher, sou todo arrependido, Tu merece uns tapas, Eu te amo, Nem pensar, some. Acordava tremendo de frio, suando gelado. Arrependida por não ter perdoado, pelo menos no sonho, E agora, quem vai trazer a comida, não sabia responder.

O luto da esposa abandonada precisava acabar. O primeiro salário do desertor, naquele mês já se fora, restavam os outros dois pagamentos e depois não sabia o que faria. Afinal, se o Virgílio estivesse morto poderia lutar pelos seus direitos de viúva. Mas mulher abandonada, sem saber o paradeiro do desgraçado, não tinha muito que rezingar. Estava à mercê do pretensioso destino e do bom humor do policiamento investigador.

A separação do vínculo matrimonial foi o mais óbvio para todos.

Maria Memória se tornou oficialmente, ali, no beco da Boa Esperança, uma mulher abandonada e com três filhos. Uma grande bucha de canhão. As chances não pareciam boas, Esse filho-da-puta ainda vai pagar, ele e aquela piranha redonda não perdem por esperar. Ela não conseguia entender que aquele homem cansado, com as carnes amolecidas, tinha fugido em ritmo de aventura. Não lhe comia, mas achou por bem fugir e comer a vizinha, Filho-da-puta!

De qualquer maneira o Virgílio não tinha muito préstimo de assanhamento. O homem vivia esfalfado. Para o bem da verdade, ele mais saia do que vinha para casa, O desgraçado podia ter feito despedida de esclarecimento. Tornou evidente que a carne de incompetência era da Memória. Não lhe deu chance de defesa.

Coisas práticas. Ele tinha três empregos três caminhos três chefes, compensava o sofrimento de ausência com os três salários. A cada dez dias chegava com um pagamento. A ferrovia pagava até o dia dez; a construção civil sempre fez seus pagamentos até o dia vinte; a vigilância noturna entrava com a sua parte, até o final do mês. Quando começava o acabamento do primeiro, entrava o pagamento do segundo; e depois, o terceiro.

Ela não tinha do que se queixar. Ele foi um bom provedor. Talvez, tenham se precipitado com a decisão de não tentar mais filho. As carnes foram esfriando, provocando falta de vontade como uma doença invisível, dessas que se fica sabendo tarde demais.

E, diante dos olhos sonolentos das crianças, o negão espadaúdo passou a cuidar das carnes de Maria Memória, as mãos grandes e fortes mais valiam nas virilhas abandonadas da mulher ileié. Precisava recuperar um tempo perdido de lamentações. Assim, as mãos de um acudiam a brasa amornada, enquanto os aromas da outra perfumavam o negão. As emoções voltavam diferentes.

Virgílio deixou para trás os filhos e os ganhos dos biscates. Não trocou explicação. Fez desaparição para sair da lembrança, mas a mulher engaiolada em acomodação doméstica continuava esperando. Queria saber a causa da desaparição. O tempo precisava comer suas lembranças.

O novo pai assumiu os compromissos do Virgílio. Foi mais fácil que o imaginado. Nos biscates não sabiam diferenciar um do outro, não eram parecidos, mas bastava obedecer. Negão é negão em qualquer lugar.

Para a criançada, ela disse que era o melhor a ser feito, precisavam encontrar os meios para se desfazerem das despesas, contas de comer vestir curar as feridas, Meus filhos, toda família precisa de um chefe.

De tal modo, o negão levou a sério o novo dever que levanta antes do galo cantar. Não reclama. Nem volta para os almoços. No terceiro turno não sai antes da conferência do bicheiro, o dinheiro ficar acomodado em segurança e os sobressaltos do alarme ficarem acionados. Depois do serviço de vigilância sai para casa, já vai tarde à noite.

O negão Ogum estava ajuizado de emprego e sabia onde enfiar as mãos.

A vida volta para os trilhos da locomotiva e na vitrola, achada atirada pelos chãos das ruas, último presente do Virgílio antes da própria sumidura, Maria Memória escuta a voz de João Dias, Nas tuas mãos deixei meus sonhos...

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