sábado, 14 de maio de 2011

quanto aguenta, ainda

Varapau
baitasar

Mais uma noite sem dormir, sentindo-se imunda, caçada e agredida no seu chão. As partes da casa são tão misturadas que obrigam Dora receber as visitas no pátio da lama. O mesmo living também é o quarto cozinha, galinheiro chiqueiro, estribaria jaula, caverna cemitério, Quanto aguento, ainda, tem medo de perguntar. Olha para o lado, o corpo nu está ali, estendido, todo mole e molhado. Ela está encolhida num canto, chorando baixinho para não acordar a besta. Suas lágrimas nunca são vistas. Dora não tem lágrimas, apenas chora, conformada pelo seu destino. Hoje, ela queria ser dona de um varapau, para manter esse animal canibalesco fincado no chão. Fazê-lo sentir a dor de ser marcada como uma vaca.


Dora não sonha, nem sabe mais mudar e transformar a si mesma, não sabe por onde. Sente a dor coagulada nas próprias carnes. Não sei como ajudá-la.


Até hoje o sol nunca amanheceu e se derramou sobre Dora, além da sina de esmagá-la, fazendo-a desmanchar-se suave na presença da luz, enquanto por consolo eu cresço. Vivo naquele espaço opaco e sem luz que se interpõe a própria luz, sou designada como a ausência de luz, a figura imaterial de Dora. Não existo. Nem Dora.


No calor, a vida de Dora se enche de mosquito e mau cheiro. Como sou seu espaço opaco e sem luz não sofro a aferrada dos insetos. Não me acham, se escondem sem mim, mas não paro de imitar seus movimentos de luta contra os ataques ao seu corpo. Até cansar de debater-me e anestesiada ficar imóvel. Não está mais ali. Não estou mais aqui. As marcas do tempo de desistência exibem-se em milhares de pintinhas vermelhas pelo seu corpo, denunciam o ataque que suga o sangue. Cadela sarnenta.


Por absoluta teimosia Dora sobrevive até o próximo anoitecer. Na verdade, não sei onde busca seu reforço de raça, aliás, ninguém se ocupa de Dora. Não existe Dora. Ela mais se parece com um cão sem dono, parado em um canto qualquer. Amarrada pelo pescoço com barbante. Aguardando. Esperando... meio podre rançosa olhar triste. Não há vida.


Nas chuvas, Dora tem as águas com sua umidade molhado-a pelo relento da noite e do chão. Com o fedorento e malcheiroso mundo do pátio comum ao esgoto da cidade. Ela tem o seu barraco na distância de um passo das cloacas, o esgoto comum das pessoas de todo bem possíveis. No frio tem menos mosquitos e mais tosse, falta o ar, sobra febre dores pelo corpo. Não consigo ficar na vigília do seu sono.


O seu beijo não faz o mundo parar. Sofre com dentes de podridão. Seus peitos estão escondidos, perderam a frescura viço, cor beleza. Não são mais queridos. Não mais são caçados. Murchos caídos, Dora os mantém guardados pendurados, como chuteiras perdeDoras, em desuso.


No trânsito das ruas, as gentes de bem soam seus carros. Xingam a vagabunda sua carroça. Gritam acenam, Não deveria ter nascido, sua desgraçada, já deveria ter morrido. Não se importa e deixa pra lá, tem seu neguinho e a mulatinha, se nega dar. Precisa criá-los na guerra da fome desespero, no chão invadido e sem dono, sem esgoto água, luz mamadeira. Segue usando as tetas murchas.


Dora me olhava diretamente nos olhos, acariciando a barriga, enquanto sua imagem me refletia opaca, uma mancha extremamente cansada à parede podre do barraco. Silêncio. As crianças dormiam no quarto estendido, um minúsculo puxado do camarote do abuso, Não consigo mais, estou sem paz e tempo para esperar.


Em seu sonho, o corpo nu do violador se submete a imobilidade permanente. Até parece que é só isso que deseja da vida, exterminá-lo inteiramente. Soprar a chama da vela. Derramar o resto que ainda não bebeu e riscar o fósforo, rindo e chorando, tudo acabando, Chega de ser humilhada.


Ontem, Dora fez anunciar na vila, incentivada por estes dias de eleições, Estou negociando meu poste e minha cerca de madeiras. Aceita colocar a placa de algum político, afinal, quer sobrevida, Que coloquem o nome que quiserem por ai e por aqui, não tenho lados além do meu.


Coitado do nosso poste, todo amarrado e açoitado por arame de espinhos, expondo, lá no alto, as placas políticas. No meio do dia, o varapau imundo chegou bêbado, Não sou puta, Pior, tens apenas tetas murchas dentes podres, puxando o carrinho feito mula velha, Preciso comer, as crianças têm que comer e tu bebe a nossa comida, Puta, onde está o dinheiro, Filho da puta, leva esse pau mole daqui, Velha idiota, acha que é fácil ter um pau duro no meio desse lixo, Tudo na vida tem seu preço, Quero ver ter tesão agarrando esses peitos secos, a barriga inchada de vermes vento seca, toda seca, podre, toda podre.


Molhada, suada, chorada, mais uma noite se passando. Olha a escuridão em volta. Sinto o cheiro da nossa tortura. Jura que um dia isso vai acabar. Ninguém realmente se importa. Seu plano é arrumar um trabalho melhor que ficar recolhendo o lixo da gente boa, nos parques praças ruas, desta ilha.


É duro sentir a mão calejada áspera, espiar a pele da bunda mais enrugada no sol chuva, vento a vento, que se faz todos os dias. Trabalhar duramente, com afinco, e chegando em casa não ter muito além da farinha de fubá, um ovo, nenhum óleo, um pedaço de pão velho. Tudo sufoca e me abafa, morro junto aos pouquinhos por asfixia, as suas e as minhas tetas também definham. É preciso resistir contra a crueldade da vida comendo sem me deixar nenhuma ilusão. Tem que existir um lugar em que não se viva de tristezas restos podres, longe do lixo que respira e me arrasta.


Tenho vontade de silenciar o som que o faz dormir e acordar satisfeito, penso em mim e no crime cometido. O violador está aqui, nu, sem nenhum sentido de culpa, Meu Deus, nem um caquinho de espelho pra me dar uma olhadinha, não tenho nenhum colo pra sentar e me ficar recolhida, escorada. Escuto Dora, ela grita em seu sono que sou dela, sua sombra, sua cria. Sabe que vai acordar com um buraco imenso na alma e no ânimo, apunhalada no meio das pernas, Dora podre, Dora fodida de enfiada, Dora de alma esfarrapada, Dora puta, Dora murcha, Dora não é gente.


Dora leva um susto quando se vê sentada, toda encolhida a um canto, dormindo, O quê ta acontecendo, como estou aqui se estou ali dormindo, ela tem a sensação do corpo que está ali sentado e desse outro se movendo para a porta. Sente-se passando de uma pele para a outra. Agora é mãe.


Lembra os filhos, De quem eu sou o pai, Não é o pai de nenhum, Eu sabia sua puta!


Na escola, explica à professora que são filhos de um bêbado, o maldito quando bebe a procura pra se aliviar, na força violência, Não tenho um companheiro, durmo com o inimigo, Mas por que vivem juntos, A gente não vive, apenas que a gente se mata por causas que não sabemos.


Somente eu e Dora sabemos como essa menina foi feita e dos conselhos que sugeri depois do crime forçado, Porque não aceitou nenhum dos meus aconselhamentos, não sei. Poderia fazer fácil enquanto o seu e o meu volume aumentavam, não quis e apesar de tudo a esperança de Dora não se desfaz, acarinha uma barriga não consentida crescendo, Tua vida não muda porque tu vive chorando a fome que te deixa medonha, Tua vida não muda porque vive bebendo com todas essas putas, por aí, Tu merece as minhas costas, sem um único olhar para trás, Vai, sempre me arranjei sozinha, Pronto, não se pode ter uma conversa amigável sem gritos, Se tu quer bater um papo vai pro boteco da esquina do beco, lá tem discussão de bebum, tu não vale mais que um gole de cachaça, Oh, Dora, meu bem, você leu meu pensamento, Tira essa mão de mim, tu cheira cigarro cachaça puta, Quero te dar carinho, Eu sei o que tu quer, O que eu quero, velha analfabeta, vai ler a na palma da mão, Tu quer entrar em mim, foder, derramar tua podridão, te aliviar, Foder é bom ou não é, Eu preciso que tu vá arrumar trabalho, cansei de trabalhar por mim e por um homem bêbado mulherengo, que só me quer cheio de cachaça, fica longe, Dora, minha querida, vem sentar no colo do papai, Fica longe, meu pai já morreu e faz muito tempo, Vem cá, Me larga, Deixa eu te dar um beijinho, Vou te matar, Depois, Tira tua mão, Não posso, Sai de cima de mim, Não empurra sua vadia, vou te foder de qualquer jeito, escolhe se na porrada ou no carinho, Tá rasgando minha roupa, A culpa é tua, Vou arrancar este teu pau imundo, Tenta... tenta que eu como teu coração com as minhas mãos ainda dentro da tua boceta, Por favor, não faz, É só mais um pouquinho, abre as pernas, isso mesmo, que boa menina.


Mais uma noite sem dormir, sentindo-se imunda, caçada e agredida em nosso chão, na sua sala de visitas, que também será meu quarto, sua cozinha, nossa prisão, Quanto aguento, ainda, ninguém responde. Está sozinha. Olha para o lado, o corpo nu como um punhal, está ali, estendido todo mole, Parece morto, Pode estar, pode não estar, tanto faz, nada muda.

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