sexta-feira, 27 de maio de 2011

Minha santa, me perdoa

A espada amolengada 

baitasar

Ogum parece um pavão com seu tamanho de avestruz. Se Maria Memória pudesse perguntar, ela nunca perguntará, quais os encantos do marido, eu responderia sem piscar, as suas mãos. São grandes e fortes, como tentáculos ambiciosos. Os dedos deixam a impressão de desembaraçados curiosos atrevidos, um pouco assanhados demais, mas enfim, a perfeição se deita no divã do analista, desde o início do século passado, e se ergue sem lágrimas nos olhos. Irredutivelmente, a mesma.
O marido da Memória não é perfeito, é um homem trabalhador, um negro decente, mas perdeu o entusiasmo com a loucura, as desordens alegres. Está esfalfado pelos fracassos recentes. Perde o gosto mais um pouco a cada pouco. Nem começa, nem termina. O desuso das mãos está provocando o descostume no homem e a inquietude na mulher.
Outra noite, o negão precisou segurar as rédeas no focinho, estava no ponto de pedir palavras de socorro ao Manualdo, mas desistiu de apelar ao mais novo, O guri já vive os seus estorvos. Todos, temos momentos de aborrecimentos, mas isso não impede de prestar serviço socorrista aos mais chegados de intimidade, Não, vai me desculpar, mas não sinto conforto em confessar com outro, qualquer que seja, sobre esse amolecimento da carne. Então, negão, vai te danar, Calma, é coisa que não se revela. Tenho vontade de garantir que o tal descontrole não dura muito, A esperança é a última a ser morta. Eu sei, meu amigo, você está certo, essa tua brandura é o jeito provisório do menino se exibindo, querendo aparecer mais que o devido. Tudo se resolve ou se ajeita com o endurecimento do homem.
O nervoso do Ogum não passa. Aconselhamento não lhe adianta quando fica agitado no horário de dormir. Demora mais que o hábito para deitar. Espera pelo sono da Memória. Chega aos pés da cama flutuando como os pés da bailarina. Deitada de lado, a esposa dorme com os olhos arregalados. Fingem. Os dois disfarçam. Queria poder consolar, falar de mim, dizer que isto há de passar, Tudo sempre há de passar. Calma, negão, aproveita que tu não vai dar o couro e dorme. O que não pode passar é a hora de acordar e seguir para os serviços empilhados nos ombros.
Até que o casal dorme, cansados da vigília à toa.
Quando acorda, Ogum já está na cozinha. A claridade do dia não apareceu e os barulhos da vida seguem dormindo. Levanta sem os chinelos, caminha descalça até a cozinha, Bom dia, querido, Bom dia, minha preta. Serve-se do café quentinho e senta à mesa com o marido. O Manualdo entra sossegado pelo sono, Bom dia, Bom dia, meu filho, Bom dia, guri. Os três têm os olhos cansados de pouco sono. A mãe pergunta pela filha, A Cariciosa dorme bem, Minha sogra, essa tem um sono que pesa um bocado, depois de acomodada não acorda. Retomam o café em silêncio. O mais novo não usa combinação de leite. Fatia um pedaço do pão e não usa nenhuma mistura, Não sinto gosto de nada antes do amanhecer. Come apenas para se por em pé e caminhar à frente de combate. Os três estão ausentes.
Os dois homens pegam a marmita para o almoço. Feijão preto, guisado com batatas, macarrão e rodelas de tomate. No almoço, quando Ogum está na pressa, não se dá ao trabalho de aquecer a bóia-fria. Manualdo, ao contrário, jamais abandona o ritual de aquecer a sua comida transportada, Comer no meio do dia é festa, não faço com desdém.
Os dois saem. Têm destino certo e horário de chegada.
Maria Memória ficou. Caminha de lado a lado, parece bicho enjaulado. Hoje, quase se animou nas reclamações das carnes do esposo. Sente saudade do homem misturado em desordens na cama. Desistiu. Acha que tem melhor resultado com a simpatia para recuperar paixão. Corre até o quarto e procura um pedaço de papel em branco. Escreve com um toco de lápis, Maria Memória e Ogum. Precisa de 7 pedaços de maria-mole. Claro, não tem em casa. Substitui por pedaços de gelatina. Embrulha a gelatina no papel com os nomes. Mais tarde, deixará tudo num jardim bem bonito, como oferenda para São Cosme São Damião. Depois, para o negão voltar para seus braços e virilhas, fará oração aos santos.
A mulher ileié põe as mãos nas cadeiras, faz cara de desconforto, acaricia a barriga arredondando e volta para sua cama. Deita de lado, fica de costas, vai para o outro sentido, não tem jeito, não tem maneira. Examina as mãos, estão intrigadas. Num jeito de repartir a dor da ausência, passa a direita pelo corpo. Vai e vem deslizando. Acha as coxas. A esquerda se atreve com pequenos beliscões nos bicos inchados, derramando. Uma a esfrega, a outra se enfia. Força as coxas. Não querem se abrir. Alenta os pelos. Curva as pernas quando está enfiada e trás a esquerda aos lábios. Está ali, deitada, Minha santa, me perdoa.
Os dois já vão longe. Assobiam ou gemem. Não sabem. Suspiram. Prometem. Não têm jeito de matar a vontade malcontente.

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