Ensaio 09
baitasar
As pessoas acomodam os costumes nas suas maneiras
com a vida. Constroem as próprias prisões, almas caridosas que se desapegam dos
sonhos antropomórficos, mas não se tornam herbívoros, ainda têm as alucinações
da carne. Para isso servem as grades do circo, nos mostram as feras e nos
despertam, mas não nos deixam entrar na jaula para devorar as bestas donas de
tudo: um transe hipnótico de matar ou morrer.
Adelaide e Sèzar acomodavam os costumes colorados ou
gremistas com as maneiras das suas vidas, depois dos dias de chuva o céu trás
os dias de sol. Humanizar — seja lá o que isso signifique — o circo é notar que
perder ou vencer nunca é para sempre, às vezes o empate é uma solução
altruísta. As brincadeiras não são para sempre, nem a morte se os mortos são
esquecidos e desaparecem dos costumes, nunca existiram. Enquanto não são
esquecidos estarão vivos para sempre. O que é para sempre é o que vive, o que
nunca existiu apenas não existiu. Ninguém lembra.
O golo no futebol não é real no instante antes da
bola entrar, nem na piscadela depois, as lembranças dele são as lágrimas e os
risos que tornam o golo com vida de gente para sempre.
Adelaide não viu, mas guarda a memória do pai na sua
memória, jogadas narradas de um jogo: Grêmio X Santos, Aírton, “o pavilhão”,
frente a frente com Pelé e Coutinho, no estádio Olímpico — Os olhos de papai
brilham. — o futebol tem personagens inesquecíveis.
Sèzar também sabe golos que não viu, estão pintados
com cimento em sua vida, mas nada tem lhe doído mais, nestes últimos dias, que
a tristeza sentida no golo do seu time contra o rival vermelho. Sèzar estava
lá, um gremista disfarçado entre os colorados. E não pode conter a sua raiva —
Como é que esse burro não enxerga? — ele sabia mais que o treinador colorado
como vencer aquele grenal.
Por isso, no jogo seguinte voltaria aos braços da
torcida gremista, na geral. Cantaria com o Daniel e o Gustavo
— Esse amor descontrolado
Nunca vou deixar de lado
Eu te sigo onde for
Eu
te sigo tricolor...
Na geral gremista tem a avalanche, as bandeiras, a
banda furiosa, os cantos, os gritos. É preciso pular e gritar, esquecer dos
costumes da vida, às vezes, dá para ver o jogo, e no golo é o êxtase da
avalanche — Tem que tá ligado!
Uma avalanche azul desce as escadarias da geral até
o limite físico do muro, mas aquele eco esquisito não faz caso do muro, segue
em frente, ultrapassa as grades, pula tijolos e argamassa, está lá dentro... no
Olimpo — É assim que agradecemos e desafiamos aos grandes espaços do céu
Olímpico.
Sèzar iria desafiar a própria tristeza, reencontrar
o reconhecido, gritar a insânia. Lá, entre tantos guerreiros, a realidade se
curva e aceita a vida daqueles personagens. É só o que importa, ficar empossado
e encorajado em parecer o que não é: não é um guerreiro.
Toca a campainha, Adelaide abre a porta — Estou
pronto... — ela caminha dois passos atrás, não responde. Sèzar fecha a porta,
caminha dois passos à frente e pega em sua mão. A outra mão inquieta e suave
toca em seus cabelos e afrouxa os músculos da nuca, impondo sem incomodar.
Coisas de nada — ... que estranho medo de amar a mulher que amo.
Exagera as suas inseguranças e o arrebatamento o faz
antecipar os próprios movimentos. Abraça Adelaide com paixão, ela oferece a boca
inteira, molhada, atrevida: a via láctea e os sonhos. Está dobrado sobre os
joelhos, ela em pé, os dedos enfiados em seus cabelos — Quero as reticências da
tua língua esquiva, se enfia. — de joelhos, ele arrepende-se sem queixas,
obedece, os dedos enfiados em seus cabelos: inteiros, molhados, atrevidos.
Precisa escavar a insubstancialidade da alucinação e
da coisa nenhuma — Segura a minha mão... — ele não entende, ele já segura a sua
mão — Segura a minha mão. — precisa aprender a genuína alegria dos afetos. Estavam
ali, em pé, atrás da porta fechada, os olhos de um, os olhos da uma — Não
esquece de fechar a porta... — ele não entende, ele já fechou a porta — Não
esquece de fechar a porta. — encostar a porta da memória e abrir a fundura do
homem, quando não sabemos como começar, iniciamos pelo princípio.
Estão sentados, mas tem alguma coisa que incomoda
Sèzar, olha para os lados, para todos os lados, tudo aparece em seu lugar de
sempre, Adelaide sentada a sua frente, nua — Por que você gosta de escrever? —
não entende por que ela está nua — É tão difícil responder?
Não , não é difícil responder, ele pensa que é melhor
ter histórias para contar do que ser a história que todos contam, mas por que
ela precisa saber isso, ele não quer saber por que ela gosta de ler — É
simples, eu gosto de ler porque eu quero encher a minha vida com personagens
reais, não quero personagens de ficção que me rodeiam, apenas pra me comer.
— Eu
gosto de escrever porque gosto de brincar de cabra-cega comigo mesmo,
escondendo de mim mesmo, inventando algumas verdades de mim mesmo e dos outros. — ele é para ela e ela é
para ele, não os perturbo nem os acordo, até que queimem todo o fogo. E uma
fumaça exalando mirra e incenso chegue ao fresco do dia e declinem as sombras,
e o homem e a mulher cheguem ao monte da mirra, e ao outeiro do incenso.
E no golo... desçam com a avalanche.
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Leia também:
Ensaio 08 - Gremistas ou colorados... misturam-se a realidade
Ensaio 10 - Mexendo comigo, mexendo em mim...
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