Becos sem saída - Penumbras e Descartes
IV
baitasar
Estou descendo, que alívio! Somos os últimos a descer da gôndola da agonia. As pessoas estão atiradas pelo chão chorando. Gemendo. Atônitas. A senhora babona e o homenzinho ficaram. Minha companheira de viagem resmunga qualquer coisa sobre estarmos muito longe. Não quer esperar outro ônibus, prefere caminhar. Vamos deixando aquele motim para trás. Peregrinamos por ruas escuras e sem calçadas. Decide abreviar o caminho seguindo pela praça dos pedalinhos. Entra no beco que liga a praça com a Boa Esperança. Já vamos longe daquela civilização descontrolada. Percebo que os passos da Amargadavida se deixam da lentidão e se aproximam da correria, quando se param de súbito — É um assalto, velhinha!
— Não tenho nada.
— Passa a bolsa! — mas que maldição, não acredito, estou sendo assaltado... ou melhor dizendo, a Amargadavida está sendo assaltada. Existem dias que o melhor que podemos fazer é não sair de casa, se contar alguma coisa de tanta desgraça junta, ninguém acredita — A minha bolsa não!
— Dá, logo! — a bolsa é arrancada, somos sacudidos com violência. Minha guia turística é jogada ao chão com força. Percebo, pelos gritos da Amargadavida, que estou me afastando bem rápido — É um assalto, é um assalto! — grito a pleno pulmão sem nunca ser ouvido, nos tempos de hoje, nem mesmo sou lido.
Até que o meliante empaca, abre a sacola e vira tudo, reapareço em um banco de praça, muito mal iluminada, diga-se a bem de explicar porque não poderei testemunhar - não é por medo de ser eliminado - tudo é penumbra. Não reconheço o malandro, esse não faz parte do seleto grupo de frequentadores da biblioteca. As coisas do furto estão espalhadas entre suas pernas. Examina uma a uma. Sou analisado com pouca atenção e minúcia. Pega o que lhe dá valor aos olhos, levanta e sai. Fico desesperado. Não quero ficar na solidão daquela praça. As pernas empacam, novamente, algumas pernadas à frente, volta ao banco e me pega. Quero agradecer — Também estava pensando em você, seu ladrãozinho de merda... — sou levado. Antes mal acompanhado que só, ali, em um banco solitário daquela praça, em uma escuridão despovoada daquela vila. Sigo atento ao andante, a mim mesmo, numa estrada escura que nunca vi antes. Estou entregue a canseira e dolorido. Assustado.
Estou nas mãos de um mortal qualquer. Esse homem de pouca consciência me leva por lugares sem jeito de vida. As mãos suam e me engorduram. Eu e ele escondidos por dentro do escuro não parecemos existir: uma vida sem vida.
Um estampido metálico e seco que pareceu vir de todos os lados me faz desabar. Vou ao chão, embaixo do sujeito, sinto a umidade e o cheiro do sangue em mim, acho que também fui ferido. Caímos sob a luz daquele único poste. Também estou de braços abertos, as letras em mim ficam expostas, quero ser lido. O coitado parece que me lê, suas pupilas se fixam e os lábios impercebíveis deixam escapar a sua voz, bem baixinha, em segredo de confissão — Embora nunca desejemos errar, é por nossa vontade que erramos. — meu filho, eu te absolvo. Afinal, é da absolvição que todos estão atrás, a redenção dos pecados do mundo.
Passos apressados param bem pertinho, no ponto de sentir os cheiros encarniçados da morte: a pólvora. Arrastam o morto por tiro e com os olhos abertos — Esse filho-da-puta não assalta mais ninguém aqui na vila. — é bem assim, um prego empurra outro. Fico ali, estendido ao chão. Desamparado. Abandonado. Agarrado pela escuridão. Embalado pelos ventos e umidade. Tenho receio da pneumonia, afinal, nunca fui muito forte e minha saúde não anda das melhores. Não sou de ferro, sou feito de imaginações.
Passado outro tanto de tempo, e ainda estou aqui, deitado nas umidades da madrugada. Outros passos e o mesmo medo, agora são mais de um. Tranco o ar, fecho os olhos e me faço de morto. As vozes e aqueles andares se aproximam. Quero espiar, mas o medo me congela. São dois que perambulam por àquelas horas, mas não tenho certeza... pode ser um e meio — Velho, achei um livro!
É voz de rapariga, dessas fubanas pobres mais perdidas da vida que eu, e pelo cheiro é desqualificada de leitura, não é possível que uma leitora de letras possa entrar pelos bofes e sufocar o ar daquela escuridão, a desletrada cheira a podridão — Há de ter serventia, pena que tu não sabe ler, nunca foi em escola...
— Pra quê havia de ir?
— Aprender.
— O quê?
— Copiar faz bem na memória da cabeça, Alma. — a desletrada de escola, alma penada, e aquele homem barbudo, cabelos longos, sujos, desalinhados, vão aos pulos pelo costado dos becos. A vida que têm não serve para os becos, não serve para nada da vida que existe aqui. Ele não vai com uma das pernas, deixou em algum lugar que não adianta lembrar, é meio homem, meio gente. Ela vai com um olho, enxerga pelo meio, o outro foi arrancado pelo caminho, usa um tapa-olho, é meia menina, meio gente. Estou nas mãos desses sem futuro — Menina... deixa dar uma olhada no livro...
— Toma! — minhas folhas flutuam como asas e chego voejando até as mãos do Velho. Ele me olha - nos examinamos - abre as camadas das minhas entranhas e lê minhas letras, no início com dificuldade, como se estivesse lembrando-se dos sons que as escritas ajuntadas têm naquela dança, exercitava o corpo e a mente, um jogo de sedução — Para examinar a verdade é necessário, uma vez na vida, pôr todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder...
— É isso! Eu gosto de estar com a razão e duvidar dos outros sempre. — até pensei que fosse alguma piada de mau gosto daquela esfarrapada caolha, mas ao que parece se fala com a sua verdade, fala pra dentro de si
— Não poderemos duvidar sem existir, e que isso é o primeiro conhecimento certo que se pode adquirir...
— Continua, Velho. — ajeita o tapa-olho, depois, como se estivesse lavando alguma imundícia, cospe nas mãos e as esfrega, é o seu jeito de mostrar que se interessa: limpa o entulho com cuspe
— A principal perfeição do homem é ter um livre arbítrio e que é isso que o torna digno de louvor ou censura...
— Cruz e credo! — ergue-se e peida, nem se preocupa em tossir
— Se você existe, é puro pensamento. — um sinistro estrondo vindo de todos os lados faz estremecer paredes e corpos. A luz da noite faísca e, por um breve instante, como um flash de fotografia, fica quase dia. É o anúncio da água que virá chão adentro. Não demora e chega o começo em gotas. Novo estrondar e a certeza que muita água virá abaixo. Mais pompa nos ruídos e as sensações atormentam. As gotas continuam chegando à companhia da noite, até que aproveitam para desabar. O Velho e a Alma olham na escuridão. Aguardam, em emboscada, pela peidorreira do céu, enfiados embaixo do alpendre de um boteco fechado. Careta de frio de um e pés impacientes de outra, ficam observando — Chuveirada danada.
— Aguaceiro que precisa ser cumprido. — ali, em pé, continuam esperando com os olhos pacientes de um e inquieto da outra. Depois de um tempo sem medidas, a água vinda de cima diminui, o Velho lhe resmunga alguma coisa como: não há mal que sempre dure, nem bem que acabe. A menina caolha não lhe parece dar importância, tem o seu próprio jeito de apuração de juízo
— Vou espiar a última gota acabada dessa grande zanga-d’água.
— Queria comer alguma coisa.
— Velho, aquieta essa barriga esfomeada. — mesmo os sábios, respeitáveis por velhos que são, por vezes, deixam a sabedoria deteriorar em poeira de farinha.
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