sábado, 6 de outubro de 2012

O Meu Rosilho “Piolho”


Casos do Romualdo
Simões Lopes Neto
Não gosto nem admito fanfarrices perto de mim.
Frequentemente, encontro sujeitos maturrangos contando façanhas e fazendo gatimonhas de campeiros e a todo instante falando — no meu cavalo... porque o meu cavalo... e o meu cavalo... e vai-se a ver e trata-se de um sotreta qualquer, assoleado ou manco.
Cavalo, o que se diz – cavalo -, de chapéu na mão, foi o meu rosilho “Piolho”!
Isso, sim, era de se lavar com um bochecho d’água; de cômodo, era uma rede! de patas, um raio! de rédea, como uma balança! E manso como um cordeiro, de boa boca como um frade, faceiro como uma rosa, e armado ao peito, como um conde de baralho!
A não ser um azulejo do capitão Manduquinha Pereira nunca encontrei outro pingaço para cotejo. Foi domado pelo Chico Piola e não preciso dizer mais nada.
Morreu de garrotilho, até hoje ainda me treme a raiz da alma quando lembro o garbo do meu rosilho...
Uma vez, andava eu, de escoteiro, para as bandas do Alegrete. Calor de rachar. Lá pelas tantas, desviei-me da cruzada sobre uma restinga, disposto a dar um alce ao rosilho e ao mesmo tempo tirar uma sesteada, até abrandar a quentura.
Apeei-me à sombra de um salsal; dei água ao flerte e maneei-o, para um verdeiozito. Era ele cavalo mui mestre nestas cousas. Em seguida, estendi os arreios e aplastei-me sobre os pelegos, de carnal pra cima; puxei o chapéu para os olhos e encruzei os braços sobre a boca do estômago, tendo posto de jeito o facão e a pistola, por um — se acaso...
Nem as folhas buliam, nem um passarinho cantava, apenas um que outro trilirim de gafanhoto vermelho saltando nas macegas. Nem quero-quero fazia ronda!...
Assim tirei uma cochilada morruda e iria a mais se...
Amigo! ouvi um tronar forte, de tremer o chão! Era um temporal de verão, desses que não dão tempo nem para se apagar o cigarro!
Foi o quanto saltei das caronas e trouxe o rosilho, enfrenei-o — num vá! sentei-lhe as garras — num vu! — e montei de pulo... A trovoada roncava ali, logo no outro lado da canhada.
Via-se cair a chuva, em manga, em linha, e via-se muito bem porque o sol dava de refilão pela esquerda. E todo aquele borbotão d’água que desabava corria sobre mim, no pé-de-vento.
Levantei as rédeas, firmei-me nos estribos e trepei a coxilha... e no que achei campo em frente, rumbeei para a estância do falecido João Silvério, que branqueava lá longe, obra de três quartos de légua, cortando à direita.
Nisto senti um — tchá! tchá! tchá! — atrás de mim; olhei de relancina apenas, porque nem tempo para mais, tive; era o temporal, a bomba d’água que se despenhava, quase nos garrões do rosilho! Foi o quanto amarguei o corpo e toquei, de meia rédea.
Cupins e buracos de caranguejos, tacurus, macegas e carquejas, sangas, lagoas, barrais — o diabo! — não vi nada! Se rodasse, nem o sebo da coalheira se me aproveitava!...
Mas o rosilho “Piolho” era firme e bonzão, sem mais nada!
Eu corria, é verdade, porém a manga d’água também corria... A povadeira que eu levantava a chuvarada engolia logo.
Eu sentia-lhe a frescura, percebia que ela estava na garupa, na anca do rosilho, nos garrões dele! Um que outro pingo de chuva mais ponteiro batia-me às veze na aba do chapéu...
Era um duelo esquisito. Um duelo, em que um valente fugia para ficar vencedor!
Vencer, aqui, era chegar enxuto.
E assim viemos, eu e a tormenta, na mesma disparada: a que te pego! a que te largo! a que te pego! a que te largo! — Já perto das casas, vi gente do João Silvério, e ele mesmo, todos de mão em pala sobre os olhos, gozando aquela gauchada.
Isso foi rápido, pois logo todos entraram, a fechar portas e janelas, quando viram que eu vinha feito sobre o galpão.
Quando ia mesmo a entrar, saiu-me a cachorrada, furiosa, enovelando-se, em latidos e investidas: suspendi a rédea com medo de matar algum debaixo das patas...
Olhem que isto foi como um pensamento; mas foi o tempinho bastante para o demônio da chuva molhar a anca do cavalo!
Fiquei furioso! Se não tenho a pieguice de poupar um daqueles ladrões daqueles cachorros, a chuva não me tocava, nem na cola do rosilho! chegaria enxuto!
Assim é que entendo cavalo bom.
João Silvério ficou doudo pelo “Pialho”; dava-me cem onças de ouro, um apero completo, de prataria lavrada, por fim, de quebra, por cima de tudo, ainda me tenteou com um rodeio tambeiro.
Um horror de propostas. Mas eu não quis.
Durante muitos anos aí esteve ele vivo e são, que podia contar este causo, tal qual eu. Hoje não sei que fim levou essa gente, e mesmo que eu quisesse ir agora a essa estância, talvez não atinasse mais com o caminho, por causa da divisão dos campos, estradas novas, cercas e corredores que despistam muito um vaqueano... Mas que o caso passou-se, isso, passou-se! mal... apenas a chuva tocou a anca do baio... e isso mesmo por causa dos cachorros do João Silvério!

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