Becos sem saída - Penumbras e Descartes
VI
baitasar
Andam por
ruelas vazias e escuras, mal iluminadas. Ficamos escondidos. A falta da luz
esconde o gato, desaparece com essa gente empurrada para o esquecimento, a
infinita privação de tudo, menos do cheiro podre da morte. O Velho e a menina -
que continua a me carregar por esquecimento - se apoiam aos pulos e
sobressaltos em caminhos retorcidos, enferrujados, malcheiroso de beco, sem
saídas para a vida com pretensão de vida. Tudo muito velho e triste, e podre.
Caminham subindo ou descendo, quase caindo param no brilho cego do único poste
iluminante, enfeitado por feitios inconstantes e perplexos fios que carregam a
ligação da luz para as casas de papelão, com remendos de madeira — Vem menina,
vamos indo pelo beco, em algum lugar haveremos de sair.
O Velho
sabe que ficar por ali era ter o perigo do encontro com a mulher fantasma.
Não quer conversa com aquela dama de assombração, mulher estranha, imagem
ilusória da piriguara manchada de negro, medindo pouco mais de meio metro de
comprimento, com buracos pelo couro e a foice curva de cortar as espigas
maduras — Nunca se sabe de onde vem o inimigo. Vamos! — enquanto diz, já tem a
moçoinha pela mão e nos carrega pelo beco. Ela ainda tem o tempo de virar
atrás, tem os olhos da curiosidade no poste público de luz, único sinal de algum
esforço das gentes de longe
— Como é que chegamos aqui?
— Enganos a piriguara, menina, mas enfim,
mais uma menos um, não faz diferença.
— Lugar de gente sem saída... igual a
nóis.
— Lugar de sonhos.
— Gente nascida morta. — já de longe,
flutuando, que não tem os pés no chão, vê o malandro de joelhos, sem máscaras.
O malandro flutua na luz da encruzilhada dos becos, pertence mais que todos
àquele lugar, mas não afeiçoou de tudo, vai tomando o costume de ser morto. Tem
os olhos arregalados e parece querer dizer algo, penso que já é muito tarde. A
moçoinha toma jeito de pedir — Vai devagar, até parece que o Velho quer chegar
antes desta menina. — ela fala sem gritar, sem nenhum rosto, desanuviado de alguma
máscara de esgrima ou molde em geléia cosmética, tem, na verdade, o mesmo talhe
em gesso retirado dos cadáveres, uma fisionomia desbotada
— Olha guria, por vez, a alma precisa se
acomodar ao corpo da vida.
— Quando choras é por quê?
— Por muitas vezes, necessito ensurdecer
aos teus lamentos. — ainda não entende os medos da vida, mas, enfim, se deixa
levar outra das tantas vezes. Deixam para trás o flutuador que aprende de ser morto,
que pra tudo se precisa acostumar neste mundo e no outro, até de ser morto. Ele
com o seu destino, eles com a própria sorte. Não têm precisão de sair do
anonimato, por ora, vão desse jeito, aos puxões pelas ruelas. Almas vivas não
se encontram por elas. Almas mortas espreitam pelos buracos de escuridão. Tudo
tão estreito e sujo e escuro.
A menina Alma
que já foi Maria Futuro, gosta do apelido que carrega, Alma, não tem o medo da
outra não-vida, não é medrica como o Velho, mas estar no labirinto das malocas a
sufoca. Fecha os olhos, encolhe uma das pernas e se deixa ir pela mão, em
saltos ligeiros de ponta em ponta, foge aos pulos do claustro de pobreza e
abandono, não consegue fazer gestos de reconhecer nos outros a bondade de se
tornarem gente de verdade. A moçoinha Alma olha no contorno da ruela sem
iluminuras e deixa a mão agarrada na tira de pano na cintura do Velho. Ajeita a ponta do nariz para o cavalete logo
à frente dos olhos, aperta-os para procurar algum feitio de gente entre as
sombras. A moçoinha não teme por ela, mas o Velho já perdeu muito das atitudes
de ataque e defesa, tá sadio, mas sem robustez. A moça-d’alma tem vontade de
pegar-lhe pela mão e saírem, mas não movimenta, sabe que o corpo do Velho se
entrega em vigília. Existiu um tempo em que falava dos sonhos e comentava do
brilho das estrelas. O medo que também empurra, agora invade na intenção de
dominar, fazer bonecos de trapo ou de louça. Bonecos de engonço puxados pelo
cordel ameaçador das caretas
— Envelheci nestes anos em que devíamos
ter nos reconhecido, enquanto me tornava velho parecendo velho. — um tempo
perdido na vida desses dois, hoje e passado não faz caso, e o depois de hoje
não tem vivência. A menina tenta se afastar para oferecer intimidades ao velho — Onde vais, quer saber o Velho
— Cuido de te deixar a sós, enquanto comes
a ti mesmo com as mãos.
— Não uso as mãos em mim. — a menina dá de
ombros e se afasta. Venceu, por ora, o apetite desastrado do amor, quase louco
de tão perfeito e ali, no escuro fedorento, possui aquela linda imagem sem
dentes, roída, descorada e porosa, uma imagem ácida — Mulher vaga-lume, não me
deixa.
A mulher
vaga-lume tem nome, Velha Solidão, e sem dentes sorri para a linda imagem de
si, enquanto se abraça na mão do corpo trêmulo e quente do velho. Não sabem
quem se mantém em pé, gemendo feliz. Não precisam saber além do sentido. Querem
estar ali, a efígie e o corpo, fingem que ainda têm sonhos e pesadelos — Velha Solidão,
por que fica a te dar por estas estradas escuras e sujas?
— Velho, quem haveria de me querer nas
claridades da belezaria?
— Não sei.
— É preciso saber sobreviver...
— Droga de vida essa que obriga aos
escuros.
— É pura ilusão essa coisa de brigar com a
vida.
— Faz o quê?
— Continuar caminhando. — diz apontando
para o Velho, já composto das carnes moles, acertando botão a botão em cada
botoeira da portinhola na calça maltrapilha — Já podes continuar a caminhada?
— Por quê?
— Quero saber se já estás seguro da perna.
— o amor está onde sempre têm que estar, no inesperado, sem razão de aparência,
necessita de um sorriso como do gosto que toma entre lambidas e suspiros. Não
são diferentes ou iguais sem razão, apenas precisam estar próximos, longe da
solidão. Desistiram de entender essa bagunça de esgoto e paraíso. O Velho não
responde, levanta e sai mancando do gramado dos pedalinhos. Para perto de um
abacateiro — Esse foi teu pai que plantou. — a menina abraça o abacateiro. Não
lembra o abraço de um pai, precisava que aquele abacateiro tivesse braços
— Qual a serventia de guardar papel velho?
— É a tua história!
— A nossa, Velho. É a nossa vida!
— Tenho vergonha de não ter ficado junto
da nossa gente... Pra qual serventia? Desaparecer, também? Talvez, não sei,
guria.
— Quero encontrar esse meu gêmeo.
— Vai precisar de ajuda. Você sabe por
onde a gente começa? Parece que o guri foi mandado pra África...
— É longe?
— Nem tanto... nem tanto. — os aclaramentos
acabam. Tudo sempre acaba, é inevitável. Agora é a menina que carrega o rolo
amarelado, restos de uma história escondida e mantida impune. Arrancada da
memória. Os dois seguem na caminhada pelos cantos e refugos dos cantos. Vou aos
saltos. Sobem escadarias, passam sob o iluminado passeio do luar, penumbras sem
namorados e sem amantes, não têm vista de supositício vivo. A menina vai
calada. A cada pouco que caminha é abafada por esse choro de criança
abandonada. As gotas no olhar não vêm por fraqueza, estão ali, onde sempre
estiveram penduradas. Um choro que não reclama, desce seco. Inconformado — Silêncio,
resmunga o Velho, esquecido que não se impõe silêncio a alma
— O que foi?
— Quieta, sussurra impaciente, levando o
indicador da mão direta aos lábios
— Quem vai ou vem de lá, pergunta a guria,
já impaciente com aquela encenação do Velho
— Um cavalo... — cavalo não fala, não
pensa, apenas carrega a carga pendurada na canga. Mas pela finura da voz do
bicho, esse cavalo é uma égua madrinha — Então, sou uma madrinha que fala.
— Mentira, se dê a conhecer.
— Menina, vou aos poucos por aqui, por aí,
pelo peso que carrego.
— Ah, uma miserável puxadora de carrinho. —
papeleira, soldada catadora do lixo! Mas o que têm a dizer dela um miserável
velho perneta e uma guria esfarelada
— Esse cavalo de carga tem nome?
— Marijoana...
— Dona Marijoana, vai indo cedo pra lida.
— Indo cedo vou longe, vindo de longe, venho
me carregando...
— A senhora trota sozinha?
— Quem mais haveria de ficar em andadura puxando
carroça?
— Sei lá, alguma alma penada.
— Essa deixo em casa nos cuidados das
crianças.
— A senhora cavalgadura tem filhos?
— E por que não?
— A vida anda muito ruim com todos.
— Com uns... bem mais do que com outros...
ter filhos e filhas e homem nenhum, nesta vida de cavalo e carroceira, só tem a
aumentar a miséria, mas tenho fé que tudo tem jeito. — a mulher-cavalo
vira-lhes o costado e sai a passo, nada mais a dizer. Vai solitária por desvios
escurecidos. Afasta a cada passo no sentido contrário o desenho em sombras do
seu corpo mergulhando, já vai entrando na escuridão do não amanhecido. A menina
Alma sem futuro cisma com sua parte espiritual e iluminada — Ei!
— O que foi? — a guria me põe nas mãos, dá
uma olhadela de despedida, não tem remorso nem saudade — Pega isto... — e me
atira. Sou arremessado ao ar. Flutuo pela escuridão do amanhecer. Resolvo procurar outra ciência que aquela que poderia
ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo, emprego o resto de minha
juventude em viajar, em ver monarcas e exércitos, pessoas de diversos
temperamentos e condições, assim, tombo em pé, recostado na boleia quase vazia, cabine do motorista.
A mulher-cavalo vai se indo e me leva, somos engolidos pelo escuro. Num canto,
do outro lado vai às caronas outro conhecido, lhe digo em cortesia — Bom dia, senhor.
— Bom dia. — a velha cavalgadura vai abocada
pela barriga de fome, mas agradece o oferecimento — Mais um livro... obrigada,
menina.
— Tem outros?
— Busquei na escola das crianças, fizeram
uma limpa por lá. — a escuridão nunca está vazia de todo. Muitos olhos, muitas bocas
e orelhas estão metidas aqui dentro. Então não é justo ter medo do escuro. Continuo
minha viaje nas caronas, gosto de companhia. Declaro-me menos um ator do que um espectador, ali ao meu lado, viaja outro companheiro,
apanhado por algum descarte estúpido. Chamamos-nos pelo nome, nossa reverência
pelos desaparecimentos
— Boa
viagem, senhor Brasil Nunca Mais.
— Será,
senhor Descartes... — desço em socorro da Marijoana e empurro o carrinho. Uma
gurizada também desce e ajuda, outros discursam de cima da boleia... jogam
panfletos ao vento...
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Leia também:
— Acabou!
Os
monstros da história se repetem... tomara que não, mas as próximas gerações
precisam lutar para conquistar a própria liberdade... a luta nunca acaba!
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