segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Um sarau no ônibus

Becos sem saída - Penumbras e Descartes



III
baitasar
Vou ficando nesta baia do quarto sanitário, não importa se por descuido ou abandono, assim tenho o tempo de acostumar com a saudade da biblioteca e aqueles leitos de aço e silêncio. Faço gosto com a segurança de possuir um dono e envelhecer pelo uso de leitura, mas os ruídos e as vozes que estão no ar infame desta latrina me arrancam do tédio, dão outra possibilidade: a aventura em que fui metido. Sei que não podemos ter tudo, mas não precisamos diminuir o tamanho dos sonhos — Esperem, esperem... alguém vem. — tranco a respiração, fecho os olhos a boca. A visitante desiste da baia sanitária em que fui esquecido e vai ao lado — Nossa! Alguém há de me encontrar. — o tempo passa e nem sinto mais aquelas vertigens de abandono, não acredito que vou cair neste chão de umidades derramadas e gotejadas. Saí de uma indiferença para outra. A porta abre, duas vozes encharcam as paredes. Acho que serei encontrado pelo acaso — Amargadavida...
—        O que foi?
—        Achei um livro.
—        Um livro? — sou alcançado por cima da porta do quarto de descarregos, um espaço irreal para um livro, mas quem sabe para uns e outras seja apenas extensão de outro espaço real — Toma. — alguém quis assim, ou as coisas acontecem porque calham de acontecer, não existem planos, nem estratégias, se houve uma galinha antes do ovo, honestamente... não sei, mas gostaria de saber se o gosto em mim é de sabão ou tinta
—        É nosso... da biblioteca, têm memória apenas na hora de ir embora, os pés comandam o cérebro. — as mágoas ressentidas pelo silêncio sempre encontram um jeito de aparecerem, é o jeito de entreter os ouvidos indiscretos da futilidade. Estou nas mãos da Amargadavida, suplico para que me tire daqui. Acho que não me ouve, se me ouve disfarça muito bem, ela sai e me leva. Melhor ser levado sem vontade que deixado por esquecimento. Sou muito agradecido. Descanso, fui colocado dentro de uma bolsa e não me vejo mais. Mas eu sei que sou eu. É um empurra e empurra, pra lá e cá, até que tudo se ajeita, mas por um tempo pouco. Aquele pequeno cessar-fogo é rompido por gritos e apitos, lá fora fazem muito berreiro. Advertências. Ultimatos. Pedidos de silêncio. Palavras grosseiras. Choros. Risos. O tempo passa mutilado e a vida parece um abafamento que não trás nenhuma alegria, mas enfim, é um isolamento carcerário sem choques elétricos, paus-de-arara, socos, pontapés, afogamentos e geladeiras. Sinto cheiro do hálito fresco da pasta de dente, estou dentro da bolsa da Amargadavida.
Acho que chegou a hora de partir, pois escuto muitas despedidas e até breves. Minhas expectativas estão repletas de fantasias. Pareço estar calmo, mas cada página em mim vibra, eu percebo que voltei a ser criança, vou passear em caminho desconhecido. Adoro aventuras de criança, onde todo o bem é possível contra a desgraça e o sofrimento — Afinal, vou passear. Vamos sair, já e já. — estou ansioso e radiante como aquela criança no circo, vou passar à noite fora, longe das cortinas fechadas, estantes de aço, porta se fechando com o estalido da fechadura, fantasias reais, terei uma aventura irreal. Perdido do sono.
Em minha juventude viajei muito, convivi com pessoas de diversos temperamentos e condições. Quis aprender fora da escola, no mundo. Já faz muitos tempos que não durmo fora de casa - ou passo acordado. Por agora, nem as sacudidelas do andar apressado da Amargadavida me incomodam. Acho que se lembra de mim, sou puxado da sacola. Tenta me decifrar enquanto me analisa com seus lindos olhos verdes. Espreito com o canto dos olhos a nossa volta, estamos em uma parada de ônibus. Anoitece e à noite são muitas as possibilidades. Sinto um leve desconforto, não chega a ser medo, um arrepio premonitório. Aproxima-se a gôndola do asfalto e volto para dentro da sacola, dou um profundo suspiro de alívio. Esquece-se de fechar o zíper da mala. Subimos. Estamos sacudindo e empurrando. Amargadavida paga sua passagem e supera a roleta de controle com uma pequena ajeitadinha de quadril. Ela tem umas larguras desajustadas para aquelas ultrapassagens. Não há lugares de assentos livres, todos ocupados. Vamos em pé. Outra parada e mais empurrões e apertos. Continuo me espichando pela fresta do zíper, vou espiando com atenção e minúcia na nossa volta. Até que fecho os olhos pra cochilar, não vejo nada de interessante naquela viagem de ônibus, mas não é sono, não é nada, apenas uma dormência dos sentidos, um breve esvaziamento do pensamento e das sensações.
Reparo num homem franzino e com cabelos grisalhos que fica ao nosso lado, ele quase não alcança o corrimão aéreo. Aposto que seus calcanhares não tocam no assoalho do ônibus. Até que cansa o braço e fica encostado nos passageiros. Ouço o barulho da catraca e torço o pescoço. Um sujeito de óculos, com ar de professor universitário, passa pela roleta, com certeza está muito incomodado com a falta de um assento, empurra pelo corredor com a cabeça dobrada para frente. O professor é maior que a gôndola. Enfia a cabeça na escotilha de entrada do ar fresco. Os ombros pateteiam com o corrimão do teto. Adormece as pernas ao lado do pequeno, é impossível não comparar: uns com tanto, outros com tão pouco. Acho que um sente mágoa e o outro tédio com a vida que levam dentro do ônibus. Lá na frente, antes da roleta, a entrada dos passageiros é pela porta da frente, uma velhinha resmunga com um rapaz que parece dormir — Foi-se o tempo da cortesia.
—        Como é... desculpe!
—        A cortesia com os velhos e mulheres...
—        Ah... me desculpe. — o motorista apenas olha pelo seu retrovisor interno. O rapaz levanta e o seu lugar é ocupado pela senhora com seus cabelos brancos e ralinhos. É isso aí, se não bota a boca no mundo, as coisas não acontecem. Todos aplaudem a velinha. Palmas, gritos e assobios. O rapaz fica em pé, imóvel. Olhando para frente pelo vidro do motorista. Apenas respira. Os cabelos longos e desalinhados. A jaqueta de couro. Tenho certeza que esse carrega alguma tatuagem escondida. Um desajustado.
Outras paradas mais passageiros. Na última estação de recolhimento de passageiros, aconteceu um incidente. Quando a lata de sardinhas iniciava o prosseguimento da viagem, um cego em desespero batia com sua bengala na lataria do ônibus. O cobrador das passagens grita para o motorista — Para, para! Tem um cego querendo subir!
—        Cego?
—        É... um cego! — intercede a velhinha dos cabelos brancos e ralinhos
—        Lugar de cego é em casa. — resmunga o condutor oficial daquele carregamento de gente, enquanto aciona os freios e somos empurrados para frente. Retomamos o equilíbrio e ficamos todos imobilizados pela inércia da gôndola.  O jovem cabeludo desce e ajuda o privado da vista que recolhe a vareta guia e sobe. Silêncio. Entra, paga a passagem, passa na catraca, vai se enfiando e passando. Chega ao lado do pequenino e da Amargadavida — Esse ônibus passa na praça dos pedalinhos?
—        Vai até a Boa Esperança, responde minha carregadora
—        Obrigado. — enquanto muitos são empurrados para dentro na porta da frente, alguns são despejados em seus lugares de descida na porta de trás. Os compartimentos do ônibus estão com uma grande lotação. O cobrador manobra as pessoas enquanto o motorista se enfia pelo trânsito lento e arrastado — Por favor, minha senhora, mais um passinho pro lado, vamos libera a roleta.
—        Eu não posso fazer nada, tem mais gente que lugar.
—        Mas senhora...
—        Não tem o que fazer!
—        O motorista precisa arrancar o ônibus da parada e os passageiros precisam subir.
—        O que o senhor quer que eu faça? — os passageiros que entram se acomodam como podem. Todos querem entrar, seguir e chegar. Vamos empilhados, enquanto alguns saem em pequenas gotas. A vareta do cego se enfia nas costas do grandão — Ei, cuidado com isso! — o cego se desculpa. Ninguém levanta e o cego não senta. Lá atrás, o destino não é diferente, amassados em silêncio. Na última fileira de bancos, bem atrás, vão três meninos sentados numa só poltrona. Três irmãos quase gêmeos. O garotinho do meio parece um tanto esquisito, cara de choro, com uma cor amarelada. O mais velho cochicha algo para o guri. Sinto pena deles. Mantenho uma vigilância a distância daqueles miúdos — Deu motora, pode fecha!
—        Vamos simbora! — palmas e assobios. Vou espichando as vistas pelo fecho aberto. Está um sufoco aqui na algibeira. Continua o alarido das conversas miúdas. Encontrões e puxões e suor. Desculpas. Enfio a cara na pasta de dente, o cheiro do dentifrício alivia o incômodo com a falta de perfume. O grandão não tem jeito de parar em pé. Cansou de ficar enfiado, e agora, está em curva sobre um careca que vai sentado. O desconforto dos dois é constrangedor. O pequenino está segurando na cinta de couro do exagerado no tamanho. O cego virou as costas e segue viagem olhando o outro lado. Não tenho o que dizer. Pobres da esperança. Sinal de parada para o ônibus, mas pelo ar desanimado da Amargadavida não nos compete abaixar do cavalo de rodas.
O arranca e para vai consumindo o tempo da nossa obstinação. A cada parada o número de passageiros que sobe vai se tornando um pesadelo, enquanto a conta dos que descem é ordinária. Nunca vi nada disso, só se entra e entra. Creio que o funcionário dirigista da gôndola testa o limite de lotação das sardinhas na mesma latinha. As crianças são puxadas ou empurradas por suas mães. Acho que não respiram. Os suores de todos se misturam e produzem um só cheiro. Um só desodorante de passageiro. Na bolsa da Amargadavida o dentifrício se mistura ao suor, sinto saudades do meu tédio. Cada centímetro é disputado aos empurrões de lá pra cá e daqui pra lá. Naquela amassadeira esqueci-me dos meninos. Já passaram duas paradas desde minha primeira vigilância de cuidados. Voltei minha atenção bem no tempo de ver o garotinho do meio debruçado atrás do último banco... vomitando. Não preciso dizer do meu espanto e indignação. O pestinha jogou do estomago todas as porcarias que um pestinha pode devorar. Então, segundos depois que todo o magma, gases e cinzas vulcânicas escaparam para a superfície terrestre, começaram a interferir no clima, o piso do ônibus foi inundado pela lava arrefecida da boca, a nuvem piroclástica das porcarias começava a sufocar — Abram uma janela, por amor a Deus!
—        Tá frio.
—        Frio uma merda, abra a janela! — o grandão encurvado sobre o careca repete a ordem — Preciso de ar! — os pés se pisam enquanto as bundas se empurram. O grandão se deita sobre o careca e com sua mão imensa, num só golpe — Abre merda, a tal janela. Olhares de alívio, ninguém reclama. Ele é muito grande. Mas o pior está vindo. Quando a bacia da lava dos vômitos se põe a descer a ladeira, embica à frente incandescente, o fluxo acompanha o chão e contém pedaços grandes e grossos, os restos derretidos do pestinha se espalham entre os pés dos passageiros. Descem a ladeira do assoalho se misturando aos sapatos e chinelos. O ar está irrespirável. Outra parada, o desânimo avança sobre o cardume comprimido. Um senhor muito gordo sobe. O suspiro de espanto é de todos — Não para mais!
—        Toca em frente!
—        Tá lotado, motora! — o volumoso passa por sobre um ou dois velhinhos e para além dos degraus acima da porta, mas não tão perto assim. Ninguém imagina como ele vai passar. O cobrador recebe a passagem e aguarda. O volumoso tenta e falha. O cobrador combina ajudar. Tudo acertado... Eles tentam e falham. A conversa entre ambos é rápida
—        Desço na frente?
—        Por mim, tudo bem, mas precisa libera a porta... — todos estão assustados. Volto os olhos para os guris. Lá estão eles, agem como se aquele caos de cheiros fosse inevitável. Vejo que Amargadavida está com ânsias. Rogo aos deuses que ela não seja outra vítima dos vômitos. Já ouvi causos de gente que vendo sangue desmaiam ou sendo picadas pelas agulhas de injeção perdem os sentidos da consciência. Faço torcida para que nenhum passageiro dê prolongamento a vomitação por descontrole da vontade com o estomago. Outro vulcão explodindo acaba a nossa raça.
A escuridão já vai se apoderando de tudo lá fora, quando a voz barulhenta e arrastada do motorista, imperturbável como deve ser o grito desesperado de todo líder, direta para ser obedecida sem qualquer contestação, grita — Pessoal, estou sem um farol de luz na frente do carro, não tá acendendo.
—        O quê?
—        Preciso apagar a luz dentro do carro, assim enxergo lá fora!
—        Ta brincando?
—        É um trecho pequeno, logo adiante dá pra ir com o que tem de iluminação nas ruas. — o caixão fúnebre fica às escuras, vamos lentamente sendo levados por dentro das trevas. Só espero que o motorista não esteja tão cego como aqui atrás — O que é isto?
—        O que foi?
—        Passaram a mão no meu traseiro!
—        Quem foi o filho-da-puta?
—        Gente... por Deus, vamo se respeita!
—        Mãe, eu to com medo... — dou uma olhadinha, não vejo o que quero ver, mas parece que o guri agora vomita o seu medo — Mauro, toma conta do Ricardo.
—        Ta, ta... saco. — pronto, o nome do guri vomitador é Ricardo, bonito nome esse com estomago de leão. O maior dos três é o Mauro... grande e feio, bem comum este. O outro com cara de brabo não deu pra descobrir.
A Amargadavida tinha se colocado no final do corredor dos passageiros, perto da porta de descida, mas o chão vomitado e a iminência de pisotear aqueles restos colocou em fuga a professora e a mim. Foi para o meio do carro aos empurrões e pedidos de desculpas. O fedor pisoteado está insuportável, a escuridão constrangedora e a falta de espaço desesperante. Paramos junto aos bancos onde viajam uma jovem, muita bonita, sentada no lado da janela. Ao seu lado, na poltrona do corredor vai uma senhora cochilando. Pouco a pouco vai relaxando a cabeça para o lado, até que recosta no ombro da outra. A jovem sacode os ombros e a senhora cai do travesseiro. A caída de sono se recompõe, mas no embalo da viagem retorna ao ombro amigo e torna a babar. A confusão e os resmungos continuam lá na frente, enquanto aqui atrás o volumoso arrisca seguir em frente. Não consegue nem se virar, mas aos empurrões e amassamentos vai repassando um por um os passageiros daquele cárcere sobre rodas — Esse motorista não gosta de velho. — a velhinha dos cabelos brancos e sem travas na língua sai da sua sonolência
—        Minha senhora, não é isso.
—        Ë isso, sim, amontoa as pessoas aqui dentro!
—        A senhora é uma chata, e quer saber? Vá se queixar ao bispo!  — nem bem termina de resmungar e a bolsa da velhota sobe acima da cabeça dos demais e desce certeira no motorista. Juro que ali, naquele ínfimo instante, pensei, Se a moda pega, lá na biblioteca...
Por sorte, ele vai lentamente na escuridão subindo a ladeira. Por isso, e só por isso, o susto não é maior. O chofer do coletivo encosta o ônibus no meio fio da calçada, desliga o motor, aciona o freio e desce. Nenhuma palavra, apenas desce e sai caminhando. As mãos enfiadas nos bolsos, sem qualquer despedida ou aviso. Não olha para trás, não há um até breve. Continuamos pendurados olhando para o homem. Ele para, acende um cigarro e continua seu andamento. Desaparece. Ficamos ali de portas fechadas. Quietos. O tempo começa a tomar volume de peso. Naquela escuridão de urubus nada se via além do realce dos relâmpagos. Parecia estar se juntando uma tempestade àquele pequeno caos. Ao longe uma faísca no céu e sobre as cabeças um trovejar ensurdecedor, nada vai melhorar se pode piorar
—        Mãe!
—        Rogério, fica quieto. — bem conhece o gato as barbas que lambe, só mesmo a mãe para saber qual dos filhos lhe pede socorro e a quem apontar suas preces — Ave Maria, cheia de graça...
Parece que a porta da frente está aberta, mas não, ela está impedida de passageiros. O big grande está colocado em pé bem atrás. Olham para o cobrador das passagens, ele encolhe os ombros como se tudo aquilo nada tivesse a ver com ele. Os demais continuam serenos. Na verdade, todos acham que o chofer da baleeira brinca e já volta. Algo como ir até a esquina para esfriar a cabeça. Ou contar até dez numa tentativa de evitar o falado que deveria ficar calado. O tempo daquela inércia começa a tirar do lugar os nervos, aos poucos, uns antes que outros percebem que tudo aquilo não é brincadeira, ele é um desertor. Acaba de abandonar o direito de ir e vir dos passageiros. Estamos demitidos de um motorista e abandonados nas trevas. Uma voz de homem, no meio do silêncio tímido flutua entre todos os passageiros — Uma desgraça nunca vem só.
Do outro pontal do ônibus outra se eleva — Um abismo chama outro. — por isso amo as preces impossíveis, pelo menos nos dão esperança e acomodamento. Não evitam infelicidade, mas pelo menos não evocam a macaca da desgraça. Merda, eles estão assustando as pessoas. Quanto a mim, me dei conta que o passeio está sendo interrompido. E aquela aparente calmaria está precipitando um desastre. Ninguém sabe quem, nem donde naquela escuridão, mas todos ouvem — Peidei!
—        Meu Deus!
—        Eu preciso sair! — um pequeno empurrão...
O desespero se apossa de todos e todas. De repente o espaço reduzido fica insuportável, as sardinhas fechadas e enlatadas estão incontroladas. O empurra pra lá e de volta pra cá tem início. É luta corporal. Ninguém é de ninguém. As portas abertas que estão fechadas. As pessoas empuxando e se amassando. Outras gritam e pedem socorro. O descontrole cresce. Amargadavida parada no meio do corredor do ônibus é atropelada de todos os lados, mas se mantém em pé, aplica todos os truques e técnicas de escapar e resistir. Tanto treino não há de ter sido em vão. De mais a mais, naquela escuridão, ninguém vê o que atinge nem mesmo sabe quem lhe agride. É terra sem lei e sem motorista.
A jovem do ombro babado desfere um soco na senhora babona e passa por cima da nocauteada. Pula e arrasta seu corpo pelos bancos e passageiros. Quer a porta de saída. Quando se dá conta que tudo está fechado se põe a gritar. Grita por socorro, enquanto com um dos pés amassa o pescoço da senhora babona de sangue. Não vê mais nada, só quer fugir.
Lá na frente, o cabeludo cai sobre alguns velhinhos, junto a sua queda escuto nitidamente outro sonoro peido. Esses não escapam. Não se ouvem pedidos de ajuda. A porta da frente está lacrada pelo volume do volumoso. O cobrador das passagens assiste ao descontrole pela sobrevivência do seu lugar privilegiado, sentado e com a mão no nariz. As pessoas que passam pela calçada param e pedem que todos se acalmem. Ninguém ouve. O tempo de falar já acabou. O grisalho franzino some sob os pés dos passageiros. Amargadavida vê o homem e tenta um movimento de auxílio, mas recua. Não pode perder o seu terreno conquistado. Volta a se manter em pé com cotoveladas e empurrões. Olha em seus olhos enquanto o sujeitinho afunda naquele oceano de pés e magma. Vê quando pisam no franzino. O homenzinho submerge sem um grito.
Os meninos pularam para detrás dos últimos bancos e ficam entrincheirados entre as poltronas e a casca de lata das sardinhas, pelo menos as criancinhas vão ser salvas. Quem viajava sentado está soterrado pela avalanche desumana. Os choros, os gritos e as lamúrias são de todos e de ninguém. O funcionário do ônibus sai do seu assento de público privilegiado, passa por cima do gordo que deforma os velhinhos e chega ao controle. Acende as luzes do ônibus. O grandão ergue uma das mãos e aciona a saída de emergência. Na confusão ninguém percebe o sangue que lambuza as pessoas e os assentos. Um a um vamos deixando o compartimento de tortura. As sirenes da polícia já são ouvidas. Os primeiros que saem ficam estendidos pela calçada. Um coletivo de insanidade sem mocinho ou bandido. As crianças choram, a mãe grita desesperada. Os guris são os últimos que conseguem sair.
A senhora babona e o homenzinho ficaram.

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43 - O faz-de-conta da fofoca 

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