domingo, 28 de outubro de 2012

Sarau na kitnet


Ensaio 12
baitasar
Uma manhã esplêndida, maravilhosa, e sente um desperdício imenso do seu tempo infame, mentiroso, camas desfeitas que nunca espera tempo suficiente para ver refeitas. Levanta e caminha até a janela, recebe os primeiros raios de sol, aquece os pelos arrepiados. Eleva os braços espreguiçando com um longo bocejo. Leva as mãos aos cabelos e os une num único rabo, amarra os fios negros – quase crespos – e os deixa sobre os ombros. Fecha os olhos verdes que estão fixos na paisagem dos prédios e concretos à sua frente. A paisagem das cidades é cinza. Nenhuma brisa, nenhum alento, apenas uma breve anistia para o tempo que estava chegando. Amanhece e o brilho do neon sai de cena com seus murmúrios de prazer e mistérios, obedecem às claridades de mais um dia. Não têm as cantorias do galo a que Sèzar acostumou escutar, a mãe se mexendo na cozinha enquanto preparava o café dos homens da casa: ele e o pai. Têm o barulho do metrô que começa os trabalhos de ir e vir, partir e chegar carregado daquele gado novo, renovado pelas fábricas, escolas e igrejas, gente decente e trabalhadora, altruístas da vida. Casamentos, filhos, empregos, correrias, carnês, televisão, praia no verão. Vira-se e sente o sol nas costas, passeia lentamente o olhar ao redor do quarto envolto nos cheiros e vozerios daquelas manhãs. Vai até a cama e passa os dedos suavemente no dorso da amiga que aprende a gostar. Toca seu corpo como se pudesse fazer parte daquele silêncio, a harmonia dos livros fechados, o descaso com o caos, surdo para aquela vida de concreto e ferro, mais um pescoço cortado e pendurado por ganchos, escorrendo as águas, ela abre os olhos — Adelaide, você conhece Moriá?
A jovem se vira na cama, tem o sorriso do sono misturado ao olhar do desejo reaquecendo, leva uma das mãos aos olhos, como se esfregando eles pudessem acordar ou acenderem mais rápido — Sim.
Sèzar faz uma cara de espanto — Conhece?
Têm coisas que parecem idiotas e são idiotas, e a ficção não consegue imitar, a realidade se inventa do seu jeito, obedece aos caprichos e vontades de alguma autoria, que quase sempre não é a de ninguém, está sempre inquietos passos à frente de qualquer lápis e papel, se forma pela mistura das vontades de outras vontades com alegria e encanto, antipatia e fúria, esquecimentos e lembretes, não importa qual lado tem razão, às vezes, o melhor é observar os acontecimentos de algum lugar com distância segura  e não querer ter razão — Claro que a conheço, fazemos parte do mesmo círculo do livro, com leituras, trocas de livros, sugestões... mas, por quê?
—        Nada, nada não.
Ainda pensa em Moriá e sente-se misturado ao prazer, ódio e mágoa. Não entende como respirar o masculino e o feminino juntos, num corpo, num desejo. A curiosidade não lhe conferia dignidade, pelo contrário, sentiu arrepios antes mesmo de ouvir a resposta da Adelaide. O tom não foi grave, mas casual — Vou tomar uma ducha fria. — não teve ou não quis vontade de continuar o rumo daquele início de manhã. A realidade também se perde para outras realidades: omissão e covardia. Adelaide parecia se colocar em algum ponto alto, a uma distância segura
—        E eu vou aquecer a água do chimarrão.
Sèzar permaneceu na cama, olhava Adelaide, olhos carregados do desejo a observam se desenroscando dos lençóis — Você está linda, Adelaide. — o amor não respondeu, não queria agradecer nem duvidar daquele olhar de cobiça, têm vezes que mais vale a dúvida que a certeza. E ela, ainda não havia achado a razão da Moriá ter aparecido, antes de abrir os olhos e ganhar um sorriso de bom dia. Sentia-se solitária, mais que Sèzar na piscina da amiga. Parou, uma das mãos na alavanca do trinco, a outra, na altura dos seus ombros, no marco de madeira da porta, virou-se, levemente, Sèzar podia ver um dos seios — Parecem com uma cuia morena...
—        O que foi, Sèzar?
—        Os teus seios me lembram uma poesia...
—        Nada lhe alcança o coração, Sèzar, somente a poesia...
—        Por que diz assim? — ela apenas sabe, olha o amor do seu amor e vê palavras descumpridas. Fica em silêncio e vai para o banho. Não sente os olhos do homem, apenas os olhos do poeta.
Sai do banheiro para o quarto, está pronta para as tarefas de vigiar a vida — Vou tomar café, quer um?
—        Não, agora não. Tenho meu chimarrão.
Entra na cozinha para preparar o café e Sèzar começa cantarolar — Hum, tá fazendo na cozinha, tá cheirando aqui... merda!
Gosta de ouvir essa cantoria do café que aprendeu com a vó Déda, cresceu ouvindo a vó fazendo essa cantoria, na hora do café passado com o saco de pano: ‘Haiti, Haiti, Haiti... está fazendo na cozinha, está cheirando aqui...’. Depois de cantarolar uma única vez, o Sèzar adotou como sua lembrança da infância — O que foi, Sèzar?

—        O Gustavo mandou outro daqueles e-mails cheios da sabedoria raivosa: ‘Corta a esmola que a pobreza acaba!’ Gente egoísta e alucinada. Poderiam escrever, assim: ‘Corta a esmola que o pobre acaba, preciso trocar meus sapatos e carros!’ — os deslumbrados com eles mesmos, individualistas, não sabem mais como ser diferente, tanto faz se dentro de um carro ou no metrô, o gado lá dentro amarrotado, você asfixiado pela pressa, o rádio ao todo do volume que você não suporta mais, as notícias, a música, até que o grito do gol lhe convoca para a luta, uma única causa, onde todos são iguais... não é bem assim, mas que parece, até que parece um sonho de fraternidade, igualdade e amorosidade, quando no meio daquela multidão de uma só cor, alguém levanta e grita: ‘Chuta esse cara!’ ‘Mata, mata!’ ‘Bate, bate!’ ‘Filho-da-puta!’ ‘Juiz ladrão!’... mas é tudo alegórico, é uma guerra de brinquedo, faz de conta, uma catarse do metrô, do carro, do gado amarrotado, do volume, das notícias, do gol contra, da piscina, da Moriá
—        Eu nem abro essa merda toda. É a aposta que o doce veneno do egoísmo pode ser tomado até a embriaguez.
—        Dá um café?
—        Ué... e o chimarrão? — Adelaide está em pé ao lado da porta da cozinha, por ali é tudo muito pequeno, saindo da cozinha entram no quarto, alugam aquele kitnet mobiliado com eletrodomésticos, luz, água e internet com 10 megas, tudo individual, seguro, perto de tudo, vigiado por câmeras 24 horas, local para estacionar o carro da Adelaide e a moto do Sèzar, e o mais importante, estão à meia quadra do estádio novo: a Arena... e economizam suas casas de verdade
—        Perdeu a graça...
—        Interessante.
—        O que é interessante, Adelaide?
—        Você... tão prestimoso e diligente para algumas coisas, ao mesmo tempo, tão descuidado e intolerante com outras.

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Leia também: 
Ensaio 11 - Um sarau na piscina  
Ensaio 13 - Sarau da alma do corpo... e delírios

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