Ensaio
12
baitasar
Uma manhã esplêndida, maravilhosa, e
sente um desperdício imenso do seu tempo infame, mentiroso, camas desfeitas que
nunca espera tempo suficiente para ver refeitas. Levanta e caminha até a
janela, recebe os primeiros raios de sol, aquece os pelos arrepiados. Eleva os
braços espreguiçando com um longo bocejo. Leva as mãos aos cabelos e os une num
único rabo, amarra os fios negros – quase crespos – e os deixa sobre os ombros.
Fecha os olhos verdes que estão fixos na paisagem dos prédios e concretos à sua
frente. A paisagem das cidades é cinza. Nenhuma brisa, nenhum alento, apenas
uma breve anistia para o tempo que estava chegando. Amanhece e o brilho do neon
sai de cena com seus murmúrios de prazer e mistérios, obedecem às claridades de mais um dia. Não
têm as cantorias do galo a que Sèzar acostumou escutar, a mãe se mexendo na cozinha enquanto preparava o café dos homens da casa: ele e o pai. Têm o barulho do
metrô que começa os trabalhos de ir e vir, partir e chegar carregado daquele
gado novo, renovado pelas fábricas, escolas e igrejas, gente decente e
trabalhadora, altruístas da vida. Casamentos, filhos, empregos, correrias,
carnês, televisão, praia no verão. Vira-se e sente o sol nas costas, passeia
lentamente o olhar ao redor do quarto envolto nos cheiros e vozerios daquelas
manhãs. Vai até a cama e passa os dedos suavemente no dorso da amiga que
aprende a gostar. Toca seu corpo como se pudesse fazer parte daquele silêncio,
a harmonia dos livros fechados, o descaso com o caos, surdo para aquela vida de
concreto e ferro, mais um pescoço cortado e pendurado por
ganchos, escorrendo as águas, ela abre os olhos — Adelaide, você conhece Moriá?
A jovem se vira na cama, tem o sorriso
do sono misturado ao olhar do desejo reaquecendo, leva uma das mãos aos olhos,
como se esfregando eles pudessem acordar ou acenderem mais rápido — Sim.
Sèzar faz uma cara de espanto — Conhece?
Têm coisas que parecem idiotas e são
idiotas, e a ficção não consegue imitar, a realidade se inventa do seu jeito,
obedece aos caprichos e vontades de alguma autoria, que quase sempre não é a de ninguém, está sempre inquietos passos à frente de qualquer lápis e papel, se
forma pela mistura das vontades de outras vontades com alegria e encanto, antipatia
e fúria, esquecimentos e lembretes, não importa qual lado tem razão, às vezes,
o melhor é observar os acontecimentos de algum lugar com distância segura e não querer ter razão —
Claro que a conheço, fazemos parte do mesmo círculo do livro, com leituras,
trocas de livros, sugestões... mas, por quê?
— Nada,
nada não.
Ainda pensa em Moriá e sente-se
misturado ao prazer, ódio e mágoa. Não entende como respirar o masculino e o
feminino juntos, num corpo, num desejo. A curiosidade não lhe conferia
dignidade, pelo contrário, sentiu arrepios antes mesmo de ouvir a resposta da
Adelaide. O tom não foi grave, mas casual — Vou tomar uma ducha fria. — não
teve ou não quis vontade de continuar o rumo daquele início de manhã. A
realidade também se perde para outras realidades: omissão e covardia.
Adelaide parecia se colocar em algum ponto alto, a uma distância segura
— E
eu vou aquecer a água do chimarrão.
Sèzar permaneceu na cama, olhava Adelaide,
olhos carregados do desejo a observam se desenroscando dos lençóis — Você está
linda, Adelaide. — o amor não respondeu, não queria agradecer nem duvidar
daquele olhar de cobiça, têm vezes que mais vale a dúvida que a certeza. E ela,
ainda não havia achado a razão da Moriá ter aparecido, antes de abrir os olhos
e ganhar um sorriso de bom dia. Sentia-se solitária, mais que Sèzar na piscina
da amiga. Parou, uma das mãos na alavanca do trinco, a outra, na
altura dos seus ombros, no marco de madeira da porta, virou-se, levemente,
Sèzar podia ver um dos seios — Parecem com uma cuia morena...
— O
que foi, Sèzar?
— Os
teus seios me lembram uma poesia...
— Nada
lhe alcança o coração, Sèzar, somente a poesia...
— Por
que diz assim? — ela apenas sabe, olha o amor do seu amor e vê palavras
descumpridas. Fica em silêncio e vai para o banho. Não sente os olhos do homem,
apenas os olhos do poeta.
Sai do banheiro para o quarto, está pronta para as
tarefas de vigiar a vida — Vou tomar café, quer um?
— Não,
agora não. Tenho meu chimarrão.
Entra na cozinha para preparar o café e
Sèzar começa cantarolar — Hum, tá fazendo na cozinha, tá cheirando aqui...
merda!
Gosta de ouvir essa cantoria do café que
aprendeu com a vó Déda, cresceu ouvindo a vó fazendo essa cantoria, na hora do
café passado com o saco de pano: ‘Haiti, Haiti, Haiti... está fazendo na cozinha,
está cheirando aqui...’. Depois de cantarolar uma única vez, o Sèzar adotou
como sua lembrança da infância — O que foi, Sèzar?
—
O Gustavo mandou outro daqueles e-mails cheios da sabedoria raivosa: ‘Corta a
esmola que a pobreza acaba!’ Gente egoísta e alucinada. Poderiam escrever,
assim: ‘Corta a esmola que o pobre acaba, preciso trocar meus sapatos e
carros!’ — os deslumbrados com eles mesmos, individualistas, não sabem mais como
ser diferente, tanto faz se dentro de um carro ou no metrô, o gado lá dentro
amarrotado, você asfixiado pela pressa, o rádio ao todo do volume que você não
suporta mais, as notícias, a música, até que o grito do gol lhe convoca para a
luta, uma única causa, onde todos são iguais... não é bem assim, mas que
parece, até que parece um sonho de fraternidade, igualdade e amorosidade,
quando no meio daquela multidão de uma só cor, alguém levanta e grita: ‘Chuta
esse cara!’ ‘Mata, mata!’ ‘Bate, bate!’ ‘Filho-da-puta!’ ‘Juiz ladrão!’... mas
é tudo alegórico, é uma guerra de brinquedo, faz de conta, uma catarse do
metrô, do carro, do gado amarrotado, do volume, das notícias, do gol contra, da
piscina, da Moriá
— Eu
nem abro essa merda toda. É a aposta que o doce veneno do egoísmo pode ser tomado
até a embriaguez.
— Dá
um café?
— Ué...
e o chimarrão? — Adelaide está em pé ao lado da porta da cozinha, por ali é
tudo muito pequeno, saindo da cozinha entram no quarto, alugam aquele kitnet
mobiliado com eletrodomésticos, luz, água e internet com 10 megas, tudo
individual, seguro, perto de tudo, vigiado por câmeras 24 horas, local para
estacionar o carro da Adelaide e a moto do Sèzar, e o mais importante, estão à
meia quadra do estádio novo: a Arena... e economizam suas casas de verdade
— Perdeu
a graça...
— Interessante.
— O
que é interessante, Adelaide?
— Você...
tão prestimoso e diligente para algumas coisas, ao mesmo tempo, tão descuidado
e intolerante com outras.
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Leia também:
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Ensaio 13 - Sarau da alma do corpo... e delírios
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