quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Bobók - 2. Olho para as caras dos mortos com cautela - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


2.


Olho para as caras dos mortos com cautela, desconfiado da minha impressionabilidade. Há expressões amenas, como há desagradáveis. Os sorrisos são geralmente maus, uns até muito. Não gosto; sonho com eles. 

Durante a missa saí da capela para tomar ar fresco; o dia estava acinzentado, mas seco. E frio; também pudera, estávamos em outubro. Comecei a caminhar entre as sepulturas. Classes diferentes. As de terceira classe custam trinta rublos: são bastante boas e não tão caras. As duas primeiras ficam na igreja, no adro; bem, isso custa os olhos da cara. Na terceira classe enterraram desta vez umas seis pessoas, entre eles o general e a grã-fina. 

Dei uma olhada nas sepulturas — um horror: havia água, e que água! Toda verde e... só vendo o que mais! A todo instante o coveiro a retirava com uma vasilha. Enquanto transcorria a missa, saí para dar uma voltinha além dos portões. Fui logo encontrando um hospício, e um pouco adiante um restaurante. E um restaurantezinho mais ou menos: tinha de tudo e até salgadinhos. Havia muita gente, inclusive acompanhantes do enterro. Notei muita alegria e animação sincera. Comi uns salgadinhos e tomei um trago. 

Depois ajudei com as próprias mãos a levar o caixão da igreja para o túmulo. Por que os mortos ficam tão pesados no caixão? Dizem, com base em alguma inércia, que o corpo já não teria domínio sobre si mesmo... ou algum absurdo dessa ordem; coisa contrária à mecânica e ao bom senso. Não gosto quando alguém apenas com instrução geral se mete a especialista: entre nós isso acontece a torto e a direito. Civis gostam de julgar assuntos de militares, e até da alçada de marechais de campo, gente com formação em engenharia discute mais filosofia e economia política. 

Não assisti ao Réquiem. Sou orgulhoso, e se me recebem apenas por extrema necessidade, por que vou me enfiar nos seus jantares, ainda que sejam de funerais? Só não entendo por que fiquei no cemitério: sentei-me em uma sepultura e passei a meditar de verdade. 

Comecei por uma exposição de Moscou e terminei refletindo sobre a admiração, falando do tema em linhas gerais. Eis o que concluí sobre a “admiração”: 

“Admirar-se de tudo é, sem dúvida, uma tolice, não se admirar de nada é bem mais bonito e, por algum motivo, reconhecido como bom-tom. Mas é pouco provável que no fundo seja assim. Acho que não se admirar de nada é uma tolice bem maior do que admirar-se de tudo. Além do mais, não se admirar de nada é quase o mesmo que não respeitar nada. Aliás, um homem tolo não pode mesmo respeitar.” 

— Sim, acima de tudo desejo respeitar. Estou sequioso por respeitar — disse-me certa vez, por esses dias, um conhecido. 

Está sequioso por respeitar! Meu Deus, pensei, o que seria de ti se te atrevesses a publicar essa coisa hoje em dia! 

Nisso comecei a dormitar. Não gosto de ler inscrições de túmulos; são sempre iguais. Sobre uma lápide, ao meu lado, havia um resto de sanduíche: coisa tola e inoportuna. Derrubei-o sobre a terra, pois não era pão mas apenas sanduíche. Aliás, parece que não é pecado esfarelar pão sobre a terra; sobre o assoalho é que é pecado. Procurar informações no almanaque de Suvórin. 

Cabe supor que fiquei sentado muito tempo, até demais; ou seja, cheguei inclusive a me deitar em um longo bloco de pedra com formato de caixão de mármore. E como foi acontecer que de repente comecei a ouvir coisas diversas? A princípio não prestei atenção e desdenhei. Mas a conversa continuava. E eu escutava: sons surdos, como se as bocas estivessem tapadas por travesseiros; e, a despeito de tudo, nítidos e muito próximos. Despertei, sentei-me e passei a escutar atentamente. 

— Excelência, isso simplesmente não se faz. O senhor canta copas, eu faço o jogo, e de repente o senhor aparece com um sete de ouros. Devia ter cantado ouros antes. 

— Então, quer dizer que vamos jogar de memória? Que graça há nisso? 

— Não, Excelência, não há meio de jogar sem garantias. Não pode faltar o morto, e as cartas têm de ser dadas viradas para baixo na mesa. 

— Bem, morto por aqui não se arranja. 

Que raio de conversa mais maçante! É estranha e surpreendente. Uma voz tão forte e grave, a outra parecendo suavemente adulçorada; não acreditaria se eu mesmo não estivesse ouvindo. Ao Réquiem parece que não assisti. E, no entanto, como é que podem jogar préférence aqui, e que general é esse? De que ouvi coisas de debaixo dos túmulos não há nenhuma dúvida. Inclinei-me e li uma inscrição em um túmulo: 


“Aqui jaz o corpo do general-major Piervoiêdov... tais e tais medalhas de cavaleiro.” Hum! “Faleceu em agosto deste ano... cinquenta e sete... Descansem em paz, queridos restos mortais, até o amanhecer radiante!” 

Hum! que diabo, é um general mesmo! Na outra cova, de onde vinha a voz bajuladora, ainda não havia túmulo; havia apenas uma lápide; pelo visto era de algum novato. Pela voz, um conselheiro da corte. — Oh-oh-oh-oh! — ouviu-se uma voz bem nova a umas cinco braças do lugar do general e vinda de uma cova bem fresquinha, voz masculina e vulgar, porém atenuada pela maneira reverente e comovida. 

— Oh-oh-oh-oh! 

— Ah, ele está soluçando de novo! — ouviu-se de súbito a voz enojada e arrogante de uma dama irritada, parece que da alta sociedade. — Para mim é um castigo ficar ao lado desse vendeiro! 

— Eu não estou soluçando coisa nenhuma, e além do mais nem comi nada, isso é só por causa de minha natureza. Tudo isso, senhora, é porque os seus caprichos aqui neste lugar nunca lhe dão paz. 

— Então, por que o senhor se deitou aqui? 

— Me botaram, foram a mulher e os filhos que me botaram e não eu que me deitei. É o mistério da morte! E eu não me deitaria a seu lado por nada, por ouro nenhum; estou deitado às custas de meu próprio capital, a julgar pelo preço. Porque sempre podemos pagar por uma sepultura de terceira classe.

— Juntou dinheiro; roubando as pessoas? 

— De que jeito roubar a senhora se desde janeiro não recebemos nenhum pagamento da sua parte? Tem uma conta em seu nome na minha venda.

— Bem, isso já é uma bobagem; acho muita bobagem cobrar dívidas aqui! Vá lá em cima. Cobre da minha sobrinha; ela é a herdeira. 

— Ora essa, onde é que se vai cobrar e aonde ir agora. Nós dois chegamos ao limite, e em matéria de pecados somos iguais perante o tribunal de Deus. 

— De pecados! — arremedou a finada com desdém. 

— E não tenha o atrevimento de falar nada comigo! 

— Oh-oh-oh-oh! 

— Mas o vendeiro obedece à senhora, Excelência. 

— E por que não haveria de obedecer? 

— Sabe-se por quê, Excelência, já que reina aqui uma nova ordem. 

— Que nova ordem é essa? 

— É que nós, por assim dizer, estamos mortos, Excelência. 

— Ah, é mesmo! Mas ainda assim é ordem... 

Que obséquio! realmente um consolo! Se a coisa aqui chegou a esse ponto, o que se pode indagar no andar de cima? Que coisas estão acontecendo, sim senhor! Mas no entanto continuei a escutar, mesmo tomado de excessiva indignação.


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Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881 D724b Bobók / Fiódor Dostoiévski; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; desenhos de Oswaldo Goeldi; texto de Mikhail Bakhtin. — São Paulo: Editora 34, 2012 (1ª Edição). 96 p. (Coleção Leste)


1. Literatura russa. I. Bezerra, Paulo. II. Goeldi, Oswaldo, 1895-1961. III. Bakhtin, Mikhail, 1895-1975. IV. Título. V. Série.

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BOBÓK*

*Publicado originalmente no semanário Grajdanin (O Cidadão), nº 6, em 5 de fevereiro de 1873, quando Dostoiévski já era seu redator-chefe. Traduzido do original russo Pólnoie sobránie sotchiniénii v tridtsatí tomákh (Obras completas em trinta tomos) de Dostoiévski, tomo XXI, Leningrado, Ed. Naúka, 1980. As notas da edição russa estão assinaladas com (N. da E.); as notas do tradutor, com (N. do T.).

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