terça-feira, 27 de setembro de 2016

histórias de avoinha: quero tirar...

Ensaio 89B – 2ª edição 1ª reimpressão

mulheres descalças
quero tirar...



baitasar



não gosto de dormir. então, não durmo. e se durmo, acordo assustada. não lembro das formiguinhas nem do formigueiro. estou cansada de comandar tudo sozinha. desacordo com a assombração do que lembro dormindo e não lembro acordada. esse serviço de faxina nas casas das madames é só uma repetição das mesmas coisas, das mesmas sujeiras

não somos desunidas, somos desconhecidas uma das outras, mas nos reconhecemos nas ruas, o mesmo olhar. a mesma pressa. o mesmo silêncio. a repetição das mesmas palavras duras, é isso, esse formigueiro de mulheres pobres que não têm respostas, foram ordenadas servas do senhor dos sentidos da vida, um macho augusto e egocêntrico que não acredita nas mulheres, menos ainda, que pobres precisem de respostas

alisava o polegar e o indicador da mão esquerda com os fios do cabelo crespo, delicadamente da raiz pras pontas. o aroma da água sanitária nas mãos subia nos furos do nariz. estava pronta. acenava com a mão direita pras meninas que chegavam ou partiam montadas em suas rotinas de limpeza. assaltos às suas vidas de mulheres. inclinava o queixo levemente. mulheres e meninas misturadas, lutando do seu jeito, o nosso jeito

abri minha casa pras meninas depois que voltei das terras dos capões e corvos. não foi difícil encontrar meninas dispostas. fugiram do grupó escolar pra buscar uma vida melhor. todas lindas. villa de fartura e beleza, mas sem regras para fazer o preço da quantia justa, Meninas, isso é apenas negócio!

Milagres, você parece um homem de negócios.

Aprendi como pensa um homem de coisas e troços, dono de troféus e gente de carne e osso. Tudo se aprende quando se quer. Aprender ser bom é mais difícil, eles nascem maus e egocêntricos. Os homens deveriam aprender como as mulheres pensam. Mas não sou um homem de negócios, sou uma mulher de negócios.

as meninas apenas sorriam

E as bruxas?

O que é que tem?

E se eles aprenderem como ser uma bruxa?

Eu não quero aprender isso... e não quero que me aprendam. Não sou uma lição da professora, aliás, não vou à escola, nos abandonamos faz muito tempo.

Nem eu.

as borbulhas daqueles murmúrios esparramados pela casa, joana, a faxineira, teresinha, a cozinheira, terezinha, a passadeira, amélia, a doceira, isaura, a costureira, camélia, a cozinheira, todas ali, outras por chegar, prontas para servirem seus serviços. todas rimos alto, bem alto, quanto mais alto mais lágrimas escondemos, as gargalhadas se chocavam no ar, chocoalhando nossos risos, Milagres! Tu conta histórias como um homem, fala como um homem e dá ordens como um homem.

Gosto dos homens.

Hummm...

Gosto das mulheres.

Óóóó...

Adoro domesticar gatos selavagens, sentia o silêncio das meninas saboreando cada palavra, quanto mais gigante maior o desafio. Mal sabem, toda aquela dureza não está a serviço deles, existe pra nosso proveito e gula. Adoro deixar o felino gatoso, um animalzinho de luxo e recreação.

Uau...

Enquanto não aprendem são apenas um felino gatoso, um animalzinho de luxo e recreação.

Viu? Tu pensas como os homens.

as meninas são divertidas, adoro provocá-las com outros sonhos além do pesadelo reservado às mulheres, Angorá siamês bengala persa, quero cruzar com todos até encontrar a mutação doméstica, o aprimoramento do físico, dos costumes e do desempenho, um vira-lata que ronrona satisfeito, adornado com laço de fitas, lavado com xampu cheiroso penteado escovado.

Uiuiui!

Milagres... Milagres...

a vida dessas meninas já é bastante dura recebendo ordens desaforos exigências queixas, tudo sob a mais absoluta desconfiança. entramos nas casas porque somos chamadas, mas não somos bem-vindas, apenas necessárias, Enlouqueço escorregando os dedos nas listas pardas e peludas enquanto eu sugiro o que quero fazer. As raças com pelo ralo me provocam arrepios, felinos me excitam, nenhum precisa usar guia presa no pescoço; fogem, é verdade, eixo que fujam, eles voltam... sempre voltam: famintos magros cansados jogados pelos cantos.

a villa cresce. a freguesia aumenta. não saio mais daqui. espero que tudo continue dando certo, mas nada garante a continuação de nada. é uma carga pesada cuidar das meninas. o tempo está passando. logo, serei apenas mais outra mulher envelhecida frouxa feia enfiando os dedos nos pelos de outro felino. qual o sentido disso tudo? esse trabalho ocupou os melhores anos da minha vida, claro que me ajudou muito, me afastou dos pensamentos ruins enquanto limpava as sujeiras das casas fidalgas da villa. nos meus melhores tempos fiquei conhecida como a nêga canhota, só usava a esquerda. o meu nome ficou esquecido. quando procuravam meus serviços gritavam, Alguém me chama a Nêga Canhota, por favor!

engraçado como a direita e a esquerda são diferentes. eu me pergunto como pode ser assim, as duas nasceram no mesmo corpo. a canhota se mexe com alegria, a direita com disciplina; a canhota faz da preguiça uma festa da rebeldia, a direita faz da preguiça a suprema aflição. acostumei com o uso da canhota. engraçado, a direita procura adestrar a canhota com isso de não fazer e ter, tomou gosto de mandar. não comparo as duas, são diferentes. confio mais na canhota, mas com reservas, por vezes, a canhota gosta de dar beliscões em nome da boa educação. é quando ela perde o controle em nome da vitória sobre a outra

caso pudesse falar, a direita, por certo, iria argumentar que não é produtivo passar a vida fazendo perguntas que não sabemos responder, O sentido da vida? Conhecimento inútil. A canhota precisa ter curiosidade sobre como melhorar no seu trabalho, ele é a energia necessária à vida. O caminho para o sucesso é longo, é preciso merecer.

A destra parece que tem mais direito sobre a boa vida.

depois de algum tempo, percebemos que as duas estão a mesma distância uma da outra, mas não se entendem. a canhota continua interferindo e estimulando novas ideias de ser melhor com alegria e paixão de aprender, È possível fazer diferente, você precisa tentar, não se espanta nem busca privilégios, sabe que parada irá murchar até não conseguir levantar a si mesma. não tem medo do próprio corpo, gosta de me tocar. é muito atrevida

a direita tem bom uso pro sinal da cruz, acusa com o mesmo dedo duro que enfia no nariz. ela não gosta que se diga, mas come meleca, aprendeu que não se deve desperdiçar nada. nem o balde com água ela carrega, gesticula que isso não é sua tarefa, Estou me guardando pra tarefas maiores.

não sei o que seria de mim sem a canhota, acho que passaria meus dias com a direita fingindo conforto, cuidado e gentileza

percebo meu corpo inclinando na direção da canhota, também pudera, o descanso e o divertimento chega pela canhota. prazer e disciplina não são opostos, não se rejeitam, os dois são um compromisso com a vida. nessa trilha o que importa é a nossa paixão de aprender, pois que nos pegue rindo e não chorando. é isso, a vida é uma montanha que precisa ser escalada, mas não precisamos subir marchando com um saco de pedras nas costas e outro nas mãos. podemos surfar suas ondas gigantes ou afogar sentados na praia

depois da morte do general calçacurta, derrame, perdeu os movimentos do lado direito, foi demais pra ele, a nossa vida parece que piorou, mas não me engano com essas aparências. quando do passamento do calçacurta passamos a viver um tempo de pequenas confusões na villa. coisa normal depois de tantos impedimentos ditados pela força. muitos fingiam contentamento, outros tristeza, mas esperavam o novo cão de guarda. não custou muito e chegaram três: um almirante, um brigadeiro e um general

não existe só uma pergunta nem apenas uma resposta. não saber, não é o mesmo que saber errado, não escutar não é o mesmo que não querer escutar, mas os olhos não mentem. vejo nos olhos das pessoas tanto medo e indiferença que paro de respirar fascinada. é como me desafiar com a morte, não hesito, assim, quando ela vier estarei preparada

gosto de me provocar a vida com a vida, assim, quando me vier estarei preparada

uso a direita e faço o sinal da cruz, ainda não estou pronta pra esse encontro, na testa o pai, no peito o filho, na canhota o espírito, na direita o santo, o amém com os dedos nos lábios, como um beijo vaporoso que deseja mais o medo que o desejo, algo que precisamos respeitar

Adoro quando um homem me convence e pensa que me acalma.

Milagres... Milagres...

Uau!

vou repetir: gosto do café da manhã com as meninas, é quando todas nos encontramos antes do dia acordar. depois fica impossível, as correrias dos nossos dias não permitem

Por que tu não fez nenhum filho, Milagres?

uma pergunta com aprumo direto, não temos o costume de dizer ou perguntar assim, na maioria das vezes, somos evasivas e sorrimos, o nosso silêncio quer dizer tudo bem, mesmo que não esteja tudo bem

Vocês são o meu tesouro, assim, juntas.

uma resposta que não responde, não respinga nem perto da verdade. continuam me olhando com aquela intimidade das manhãs. fechei os olhos por prudência. essas meninas aprenderam ler o coração nos olhos

Milagres...

Nunca procurei saber, respondi, prometi segredo para mim mesma. Não quis viver essa tentação assustadora do arrependimento. Agora que o caminho está menor o medo está maior, mas não há mais tempo. É isso.

olhavam como se não estivessem olhando, exigiam que eu abandonasse minha intimidade secreta me revelando

Minhas meninas, caso fosse fazer um filho escolheria fazer sem saber que estaria fazendo, correndo o risco, mas nunca me senti à vontade nem em paz para tal risco. Não acho que um filho iria mudar isso.

Iria mudar, Milagres.

Não sei...

Mudaria tudo.

a cozinha era o único lugar do casarão em que todas as manhãs estávamos sentadas à mesa, trazendo confidências, querendo conselhos, escutando, tagarelando, juntando os pedaços, sendo surpreendidas

Eu, no caso de querer fazer filho, escolheria a época das chuvas.

Chuvas, Joana?

Sim, Terezinha. Minha família toda é do interior, na época das chuvas plantamos milho. Tudo cresce bem.

A mocinha gosta da chuva...

Quando chove fico feliz. Quero fazer um filho quando estiver feliz.

E dá pra escolher?

Claro, Isaura!

as meninas ficaram em silêncio, esperavam uma fórmula fácil para aguentar todos os dias perdidos, as queixas, reclamações, críticas, xingamentos, acusações, por fazer tanto filho; um conselho pra suportar chegar em casa, depois desta tortura, sem que exista alguma recompensa pra resistir

É preciso aprender a controlar o descontrole.

Bem assim... na hora de fazer é bom, mas depois...

todas nos voltamos silenciosas e espantadas pra camélia, ela estava em pé encostada na porta, uma caneca de café preto sem açúcar e forte, na canhota, pra cada gole que tomava esperávamos algum trejeito de desprazer, e nada, nem prazer

... o que foi? Eu disse alguma besteira?

Camélia...

O que foi?

Você tem seis...

outro gole, parecia buscar ânimo na caneca que mergulhava pra dentro dela mesma, nenhum desejo ou humor

E daí? Eu sou descontrolada. Não consigo esfriar nem fazer fingimento que não quero quando eu quero.

E o jogo da sobrevivência?

Não sei fazer esse joguinho. Quando estou com fome eu como. E quando não tô com cobiça, mas vale a pena... eu dô.

que sorte dela saber viver assim, pensei, entre partidas e chegadas, cada filho um pai, cada pai um filho, com você ou com ele não dá, mas sem vocês é impossível, e segue a vida. outro gole, e nada

Milagres...

O que foi Isaura?

Eu quero abrir a minha casa, ficamos em silêncio enquanto ela levantou e foi até a pia lavar sua caneca, sem ofensas, sem brigas. Quero abrir meu próprio negócio.

Mas que grande sonho...

Teresinha, não é só uma casa de faxineiras, demorava lustrando a caneca com o pano de pratos, eu sei que vai ser difícil encontrar meninas prontas pra essa vida...

Nem tanto, Isaura. É só ir nos grupos escolares da Villa, as meninas se oferecem. Querem uma chance pra ganhar o seu dinheirinho.

Somos um negócio barato.

Eu sei disso, Milagres. Mas quem sabe, duas casas recebendo os pedidos de faxineiras da Villa...

Essa Villa tem fartura, beleza e nenhuma regra pra nos proteger. Fazem o uso que querem e pagam o que querem.

Eu quero trabalho, não preciso de regras!

Isaura, somos exploradas.

E daí, preciso desse dinheirinho.

Concordo, isso parece nunca vai mudar. Nem tudo que sonhamos dá certo. O caminho é comprido e é preciso gostar da luta.

quando terminei, isaura estava de costas, pendurada no armário guardando sua caneca, não esperou ficar de frente pra todas nós, já tinha aprendido esconder o coração, Sei que te chamam Milagres, a mulher-homem, não gostei daquele tom assustado na voz dela, a aprendiz parecia embrulhada com as palavras, esperei ela continuar, eu não penso como um homem, não quero ser um homem, não quero contar histórias como um homem. gosto de ser mulher, não preciso ser homem, mas quero respeito e autoridade.

Preciso de um cigarro, disse para quebrar o silêcio da casa toda

Cigarro, Milagres?

Cigarro não, Milagres...

Vão à merda! Quero um cigarro, calem suas bocas e me deem um cigarro!

uma caneca de café e um cigarro, coisas simples que acalmam

O que a mocinha quer fazer, perguntei direto pra isaura, nunca deixei de ouvir o interesse das interessadas, não acho justo tomar decisões pelas meninas fingindo que não tinham nenhuma influência no ânimo do casarão

Quero tirar...



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