sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Memórias Póstumas de Brás Cubas: O Autor Hesita

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas








CAPÍTULO XXVI / O AUTOR HESITA






Súbito ouço uma voz: — Olá, meu rapaz, isto não é vida! Era meu pai, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no baú e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve alguns instantes de pé, a olhar para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto comovido: 

— Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus. 

— Já me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão. 

Não tinha almoçado; almoçamos juntos. Nenhum de nós aludiu ao triste motivo da minha reclusão. Uma só vez falamos nisso, de passagem, quando meu pai fez recair a conversa na Regência: foi então que aludiu à carta de pêsames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a carta consigo, já bastante amarrotada, talvez por havê-la lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes. Leu-ma duas vezes. 

— Já lhe fui agradecer este sinal de consideração, concluiu meu pai, e acho que deves ir também... 

— Eu? 

— Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de imperador. Demais trago comigo uma ideia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dois projetos, um lugar de deputado e um casamento. 

Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras um jeito e disposição, cujo fim era cavá-las mais profundamente no meu espírito. A proposta, porém, desdizia tanto das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-la bem. Meu pai não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva. 

— Aceitas? 

— Não entendo de política, disse eu depois de um instante; quanto à noiva... deixe-me viver como um urso, que sou. 

— Mas os ursos casam-se, replicou ele. 

— Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior... 

Riu-se meu pai, e depois de rir, tornou a falar sério. Era-me necessária a carreira política, dizia ele, por vinte e tantas razões, que deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as com exemplos de pessoas do nosso conhecimento. Quanto à noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedi-la ao pai, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a fascinação, depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir ou a refletir; e, para tudo dizer, nem dócil nem rebelde à proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das coisas, das afeições, da família... 

— Não vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pai. De-fini-ti-va! repetiu, batendo as sílabas com o dedo. 

Bebeu o último gole de café; repoltreou-se, e entrou a falar de tudo, do Senado, da Câmara, da Regência, da restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Mata-cavalos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim: 

                                                          arma virumque cano 
                           A
                           Arma virumque cano 
                                            arma virumque cano 
                                       arma virumque 
                                                          arma virumque cano 
                                                    virumque 

Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução; por exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da primeira sílaba; ia a escrever virumque — e sai-me Virgílio, então continuei: 

                                    Vir                                          Virgílio 
                                               Virgílio                  Virgílio 
                                                             Virgílio 
                                                                                        Virgílio 

Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a mim, lançou os olhos ao papel... 

— Virgílio! exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília. 



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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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Leia também:

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XXV/ Na Tijuca

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XXVII / Virgília?



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