sexta-feira, 25 de setembro de 2020

histórias davóinha: becos sem saída (I) 06bs - o vazio da botina

becos sem saída

(I) o descolocado
06bs – o vazio da botina

baitasar



Guria, essa papelada que está comigo agora é sua, a miúda não parecia querer nem aparentava vontade de carregar outro peso morto, já bastava ter que se carregar de nenhum lugar para lugar algum, Papelada é pra quem sabe ler. Eu não sei o que fazer com isso e nem quero saber. O acontecido  se é que aconteceu mesmo  não vai ser mudado. Eu sou o que sou e o velho é o que é: um perneta com uma ignorante, isso não vai mudar.

o velho faz silêncio, parece não saber o que dizer nem responder a pergunta que se faz noite depois de dia, dia depois de noite, É preciso sentir na própria carne pra dá importância,  lembra seus dias de febre pelo metal amarelo, longe, no meio do mato, doente, fugindo e apodrecendo, sem dormir, entre mulas e gente que não era mais gente, comendo bicho e folha, subindo e descendo, carregando o vazio escavado, arrastando o corpo para cima e abaixo da terra, perdendo os dentes e a vontade, até o dia que os garimpeiros decidiram fechar a ponte sobre o rio, Nesse dia, a polícia veio e perdi aquela parte que fica entre o joelho e o pé. No relatório da polícia fui acusado de colocar a perna na frente do cano do fuzil. Queria esquecer, mas não posso. O vestígio daqueles dias é a ausência. Fiquei lá, em pé sem o pé, olhando o vazio entre o pé dentro da botina embarrada e o joelho pendurado no vazio.

ele se considera com sorte, outros tiveram o azar de serem presos, Nunca mais foram vistos ou se teve notícia da vida ou da morte... desapareceram, as lembranças daqueles dias ainda assustavam o velho, não deixaram nem um pedaço qualquer pra contar como foi ser preso em nome do bom nome da mineradora. Fui poupado pra servir de aviso e aceitei ser o morto-vivo em nome do senso comum de ficar vivo, separado das ideias e opiniões que pudesse vir a ter. Um morto-vivo que tem sempre o mesmo sonho que carrega comigo, escondido de mim mesmo. Durante o entrevero, eu consigo o conserto a botina, mas é preciso enfiar a mão e descalçar o pé. Não tenho como recuperar a parte perdida, então jogo o pé fora e fico com o vazio da botina. O meu azar é que foi perdido o pé que não mancava.



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