segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Pedagogia do Oprimido - 3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (d)

Paulo Freire



“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



continuando...



A sua última etapa se inicia quando os investigadores, terminadas as descodificações nos círculos, dão começo ao estudo sistemático e interdisciplinar de seus achados.

Num primeiro instante, ouvindo gravação por gravação, todas as que foram feitas das descodificações realizadas e estudando as notas fixadas pelo psicólogo e pelo sociólogo, observadores do processo descodificador, vão arrolando os temas explícitos ou implícitos em afirmações feitas nos “círculos de investigação”.

Estes temas devem ser classificados num quadro geral de ciências, sem que isto signifique, contudo, que sejam vistos, na futura elaboração do programa, como fazendo parte de departamentos estanques.

Significa, apenas, que há uma visão mais especifica, central, de um tema, conforme a sua situação num domínio qualquer das especializações.

O tema do desenvolvimento, por exemplo, ainda que situado no domínio da economia, não lhe é exclusivo. Receberia, assim, o enfoque da sociologia, da antropologia, como da psicologia social, interessadas na questão do câmbio cultural, na mudança de atitudes, nos valores, que interessam, igualmente, a uma filosofia do desenvolvimento.

Receberia o enfoque da ciência política, interessada nas decisões que envolvem o problema, o enfoque da educação, etc.

Desta forma, os temas que foram captados dentro de uma totalidade, jamais serão tratadas esquematicamente. Seria uma lástima se, depois de investigados na riqueza de sua interpenetração com outros aspectos da realidade, ao serem “tratados”, perdessem esta riqueza, esvaziando-se de sua força, na estreiteza dos especialismos.

Feita a delimitação temática, caberá a cada especialista, dentro de seu campo, apresentar à equipe interdisciplinar o projeto de “redução” de seu tema.

No processo de “redução” deste, o especialista busca os seus núcleos fundamentais que, constituindo- se em unidades de aprendizagem e estabelecendo uma sequencia entre si, dão a visão geral do tema “reduzido”.

Na discussão de cada projeto específica, se vão anotando as sugestões dos vários especialistas. Estas, ora se incorporam à “redução” em elaboração, ora constarão dos pequenos ensaios a serem escritos sobre o tema “reduzido”, ora uma coisa e outra.

Estes pequenos ensaios, a que se juntam sugestões bibliográficas, são subsídios valiosos para a formação dos educadores-educandos que trabalharão nos “círculos de cultura”.

Neste esforço de “redução” da temática significativa, a equipe reconhecerá a necessidade de colocar alguns temas fundamentais que, não obstante, não foram sugeridos pelo povo, quando da investigação.

A introdução destes temas, de necessidade comprovada, corresponde, inclusive, à dialogicidade da educação, de que tanto temos falado. Se a programação educativa é dialógica, isto significa o direito que também têm os educadores- educandos de participar dela, incluindo temas não sugeridos. A estes, por sua função, chamamos “temas dobradiça”.

Como tais, ora facilitam a compreensão entre dois temas no conjunto da unidade programática, preenchendo um possível vazio entre ambos, ora contêm, em si, as relações a serem percebidas entre o conteúdo geral da programação e a visão do mundo que esteja tendo o povo. Daí que um destes temas possa encontrar- se no “rosto” de unidades temáticas.

O conceito antropológico de cultura é um destes “temas dobradiça”, que prendem a concepção geral do mundo que o povo esteja tendo ao resto do programa. Esclarece, através de sua compreensão, o papel dos homens no mundo e com o mundo, como seres da transformação e não da adaptação. (1)


(1) A propósito da importância da análise do conceito antropológico de cultura, ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade, Paz e Terra, op. cit.

Feita a “redução” (2) da temática investigada, a etapa que se segue, segundo vimos, é a de sua “codificação”. A da escolha do melhor canal de comunicação para este ou aquele tema “reduzido” e sua representação. Uma “codificação” pode ser simples ou composta. No primeiro caso pode-se usar o canal visual, pictórico ou gráfico, o táctil ou o canal auditivo. No segundo, multiplicidade de canais. (3) 


(2) Se encaramos o programa em sua extensão, observamos que ele é uma totalidade cuja autonomia se encontra nas inter-relações de suas unidades que são, também, em si, totalidades, ao mesmo tempo em que são parcialidades da totalidade maior. Os temas, sendo em si totalidades, também são parcialidades que, em interação, constituem as unidades temáticas da totalidade programática. Na “redução” temática, que é a operação de “cisão” dos temas enquanto totalidades se buscam seus núcleos fundamentais, que são as suas parcialidades. Desta forma, “reduzir” um tema é cindi-lo em suas partes para, voltando-se a ele como totalidade, melhor conhecê-lo. Na "codificação” se procura re -totalizar o tema cindido, na representação de situações existenciais. Na “descodificação”, os indivíduos, cindindo a codificação como totalidade, apreendem o tema ou os temas nela implícitos ou a ela referidos. Este processo de “descodificação” que, na sua dialeticidade, não morre na cisão, que realizam na codificação como totalidade temática, se completa na re-totalização de totalidade cindida, com que não apenas a compreendem mais claramente, mas também vão percebendo as relações com outras situações codificadas, todas elas representações de situações existenciais.

 

(3) CODIFICAÇÃO: a) Simples (Canal visual; Canal táctil; Canal auditivo)
                                       a.1 - Canal visual (pictórico, gráfico)

                                   b) Composta (Simultaneidade de canais)

A escolha do canal visual, pictórico ou gráfico, depende não só da matéria a codificar, mas também dos indivíduos a quem se dirige. Se têm ou não experiência de leitura.

Elaborado o programa, com a temática já, reduzida e codificada, confecciona -se o material didático. Fotografias, slides, film strips, cartazes, textos de leitura, etc.

Na confecção deste material pode a equipe escolher alguns temas, ou aspectos de alguns deles e, se, quando e onde seja possível, usando gravadores, propô-los a especialistas como assunto para uma entrevista a ser realizada com um dos membros da equipe.

Figuremos, entre outros, o tema do desenvolvimento. A equipe procuraria dois ou mais especialistas (economistas), inclusive de escolas diferentes, e lhes falaria de seu trabalho, convidando-os a dar uma contribuição que seria a entrevista em linguagem accessível sobre tais pontos. Se os especialistas aceitam, faz-se a entrevista de 10 a 15 minutos. Pode- se, inclusive, tirar uma fotografia do especialista, enquanto fala. No momento em que se propusesse ao povo o conteúdo da entrevista, se diria, antes, quem é ele. O que fez. O que faz. O que escreveu, enquanto se poderia projetar sua fotografia em slides. Se é um professor de Universidade, ao declinar-se sua condição de professor universitário, já se poderia discutir com o povo o que lhe parecem as universidades de seu Pais. Como as vê. O que delas espera.

O grupo estaria sabendo que, após ouvir a entrevista, seria discutido o seu conteúdo, o qual passaria a funcionar como uma codificação auditiva.

Do debate realizado, faria posteriormente a equipe um relatório ao especialista em torno de como o povo reagiu à sua palavra. Desta maneira, se estariam vinculando intelectuais, muitas vezes de boa vontade, mas não raro, alienados da realidade popular, a esta realidade. É se estaria também proporcionando ao povo conhecer e criticar o pensamento do intelectual.

Podem ainda alguns destes temas ou alguns de seus núcleos ser apresentados através de pequenas dramatizações, que não contenham nenhuma resposta. O tema em si, nada mais.

Funcionaria a dramatização como codificação, como situação problematizadora, a que se seguiria a discussão de seu conteúdo.

Outro recurso didático, dentre de uma visão problematizadora da educação e não “bancária”, seria a leitura e a discussão de artigos de revistas, de jornais, de livros começando-se por trechos. Como nas entrevistas gravadas, aqui também, antes de iniciar a leitura de artigo ou do capítulo do livro se falaria de seu autor. Em seguida, se realizaria o debate em torno do conteúdo da leitura.

Na linha do emprego destes recursos, parece-nos indispensável a análise do conteúdo dos editoriais da imprensa, a propósito de um mesmo acontecimento. Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo fato? Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente, como objeto dos “comunicados” que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se.


Preparado todo este material, a que se juntariam pré-livros sobre toda esta temática, estará a equipe de educadores apta a devolvê-la ao povo, sistematizada e ampliada. Temática que, sendo dele, volta agora a ele, como problemas a serem decifrados, jamais como conteúdos a serem depositados.

O primeiro trabalho dos educadores de base será a apresentação do programa geral da campanha a iniciar-se. Programa em que o povo se encontrará, de que não se sentirá estranho, pois que dele saiu.

Fundados na própria dialogicidade da educação, os educadores explicarão a presença, no programa, dos “temas dobradiça” e de sua significação.

Como fazer, porém, no caso em que não se possa dispor dos recursos para esta prévia investigação temática, nos termos analisados?

Com um mínimo de conhecimento da realidade, podem os educadores escolher alguns temas básicos que funcionariam como “codificações de investigação”. Começariam assim o plano com temas introdutórios ao mesmo tempo em que iniciariam a investigação temática para o desdobramento do programa, a partir destes temas.

Um deles, que nos parece, como já dissemos, um tema central, indispensável, é o do conceito antropológico de cultura. Sejam homens camponeses ou urbanos, em programa de alfabetização ou de pós-alfabetização, o começo de suas discussões em busca de mais conhecer, no sentido instrumental do termo, é o debate deste conceito.

Na proporção em que discutem o mundo da cultura, vão explicitando seu nível de consciência da realidade, no qual estão implicitados vários temas. Vão referindo-se a outros aspectos da realidade, que começa a ser descoberta em uma visão crescentemente crítica. Aspectos que envolvem também outros tantos temas.

Com a experiência que hoje temos, podemos afirmar que, bem discutido o conceito de cultura, em todas ou em grande parte de suas dimensões, nos pode proporcionar vários aspectos de um programa educativo. Mas, além da captação, que diríamos quase indireta de uma temática, na hipótese agora referida, podem os educadores, depois de alguns dias de relações horizontais com os participantes do “círculo de cultura”, perguntar-lhes diretamente:

“Que outros temas ou assuntos poderíamos discutir além deste?”

Na medida em que forem respondendo, logo depois de anotar a resposta, a propõem ao grupo com um problema também.

Admitamos que um dos membros do grupo diz: “Gostaria de discutir sobre o nacionalismo”. “Muito bem, (diria o educador, após registrar a sugestão e acrescentaria): “Que significa nacionalismo? Por que pode interessar-nos a discussão sobre o nacionalismo?”

É provável que, com a problematização da sugestão ao grupo novos temas surjam. Assim, na medida em que todos vão se manifestando vai o educador problematizando, uma a uma, as sugestões que nascem do grupo.

Se, por exemplo, numa área em que funcionam trinta “círculos de cultura”, na mesma noite, todos os “coordenadores” (educadores) procedem assim, terá a equipe central um rico material temático a estudar, dentro dos princípios descritos na primeira hipótese de investigação da temática significativa.

O importante, do ponto de vista de uma educação libertadora, e não “bancária”, é que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros.

Porque esta visão da educação parte da convicção de que não pode sequer presentear o seu programa, mas tem de buscá-lo dialogicamente com o povo, é que se inscreve como uma introdução à pedagogia do oprimido, de cuja elaboração deve ele participar.




continua página 069...

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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 



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