terça-feira, 1 de setembro de 2020

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 17 — Terra!

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837





17 — Terra!




Durante quatro dias, depois de termos renunciado às buscas das ilhas de Glass, navegamos para o Sul, sem encontrarmos gelo. No dia 26, ao meio-dia, estávamos a 63° 23’ de latitude Sul e a 41° 25’ de longitude Oeste. Avistamos então grandes ilhas de gelo, e um banco que, para dizer a verdade, não era de grande extensão. Geralmente, os ventos sopravam de Sudeste, mas muito fracos. Quando tínhamos vento de Oeste, o que era muito raro, era sempre acompanhado por fortes chuvadas. Todos os dias caía neve em maior ou menor quantidade. O termômetro marcava, no dia 27, 35° F. 

1 de janeiro de 1828. — Estivemos completamente rodeados de gelo e as nossas perspetivas eram, na verdade, muito tristes. Uma forte tempestade de Nordeste, fez-se sentir durante toda a manhã e atirou contra o leme e a ré grandes pedaços de gelo com tanta força que chegamos a recear pelas consequências. Ao anoitecer a tempestade ainda soprava com força, mas abriu-se à nossa frente um vasto banco e pudemos enfim, à força de velas, abrir passagem através dos pedaços de gelo mais pequenos até ao mar livre. Quando nos aproximamos, fomos diminuindo as velas gradualmente e, já fora de apuros, pusemo-nos à capa sob a vela do traquete e com um único ris.

2 de janeiro. — Tempo bastante agradável. Ao meio-dia encontrava-nos a 69° 10’ de latitude Sul e a 42° 20’ de longitude Oeste, e tínhamos passado o Círculo Antártico. Para Sul, não avistamos muito gelo, embora atrás de nós existissem vastos bancos. Construímos uma espécie de sonda com um grande caldeirão de ferro com a capacidade de vinte galões e uma corda de duzentas braças. Verificamos que a corrente para Sul tinha uma velocidade de um quarto de milha por hora. A temperatura do ar era de cerca de 33° F.; o desvio da bússola de 14° 28’ para Leste por azimute.

5 de janeiro. — Continuamos a avançar para Sul sem encontrar muitos obstáculos. No entanto, esta manhã, estando a 73° 15’ de latitude Sul e a 42° 10’ de longitude Oeste, fomos obrigados a parar diante de uma imensa extensão de gelo. Apesar disso, avistamos, mais para Sul, o mar aberto e convencemo-nos que acabaríamos por o alcançar. Navegando para leste, ao longo do banco, chegamos, por fim, a uma passagem com cerca de uma milha de largura, ao longo da qual prosseguimos até ao pôr do sol. O mar onde nos encontrávamos estava juncado de ilhotas de gelo, mas não tinha bancos extensos, e prosseguimos intrepidamente como antes. O frio não parecia aumentar, embora nevasse com frequência e caíssem de vez em quando violentas chuvadas de granizo. Imensos bandos de albatrozes passaram hoje por cima da escuna de Sudeste para Nordeste.

7 de janeiro. — O mar continua mais ou menos livre e aberto, permitimo-nos continuar a nossa rota sem impedimentos. Avistamos a Oeste alguns bancos de gelo de proporções inconcebíveis e, à tarde, passamos perto de uma dessas massas, cuja altura acima do nível do oceano devia ultrapassar as quatrocentas braças. Devia ter um perímetro de três quartos de légua e, em algumas fendas da superfície, corriam fios de água. Esta espécie de ilha manteve-se no nosso horizonte durante dois dias e acabamos por a perder de vista no meio do nevoeiro.

10 de janeiro. — Logo de manhã tivemos o azar de perder um homem, que caiu ao mar. Era um americano, chamado Peters Vredenburgh, natural de Nova Iorque e um dos melhores marinheiros que a escuna tinha. Ao passar na proa, escorregou-lhe um pé e caiu entre dois pedaços de gelo, desaparecendo imediatamente. Hoje, ao meio-dia, estávamos a 78° 30’ de latitude e 40° 15’ de longitude Oeste. O frio era agora excessivo e sofríamos continuamente chuvadas de granizo de Nordeste. Nesta direção avistamos enormes bancos de gelo e todo o horizonte parecia fechado por uma região de gelos elevando-se e sobrepondo-se em anfiteatro. À noite vimos alguns blocos de madeira à deriva, em cima dos quais planavam imensas aves, entre as quais nellies, petréis, albatrozes e uma grande ave azul de plumagem brilhante. A variação por azimute era então um pouco menor do que anteriormente, quando atravessamos o Círculo Antártico.

12 de janeiro. — A nossa passagem para Sul tornou-se novamente duvidosa, porque, na direção do Polo, apenas se consegue ver um banco de gelo, aparentemente sem fim, encostado a verdadeiras montanhas de gelo muito recortadas, formando precipícios uns a seguir aos outros. Navegamos para Oeste até ao dia 14, na esperança de descobrir uma passagem.

14 de janeiro. — Na manhã do dia 14, chegamos à extremidade Oeste do enorme banco que nos barrava a passagem e, dobrando-a, desembocamos num mar livre onde não havia um pedaço de gelo. Utilizando uma sonda com uma corda de duzentas braças, detetamos uma corrente para Sul a uma velocidade de meia-milha por hora. A temperatura do ar era de 47° F. e a da água de 34° F. Singramos para Sul até ao dia 16, sem encontrar nenhum obstáculo grave. Ao meio-dia, estávamos a 81° 21’ de latitude e a 42° de longitude Oeste. Sondamos novamente e encontramos uma corrente, sempre para Sul, com uma velocidade de três quartos de milha por hora. A variação por azimute tinha diminuído e a temperatura era amena e agradável, marcando o termômetro 51° F. Não se avistava um pedaço de gelo e, a bordo, já ninguém duvidava da possibilidade de chegar ao Polo.

17 de janeiro. — O dia foi pleno de incidentes. Numerosos bandos de aves voaram por cima de nós, dirigindo-se para Sul, e disparamos alguns tiros; uma espécie de pelicano forneceu-nos um alimento excelente. A meio da manhã, o homem de vigia no turco de bombordo avistou um pequeno banco de gelo, em cima do qual parecia repousar um animal bastante corpulento. Como o tempo estava bom e quase calmo, o capitão Guy ordenou que descessem duas embarcações e fossem ver de que espécie de animal se tratava. Dirk Peters e eu acompanhamos o imediato no maior dos dois botes. Ao chegar ao banco de gelo, verificamos que estava ocupado por um gigantesco urso da espécie ártica, mas de um tamanho que ultrapassava os maiores animais desta espécie. Como estávamos bem armados não hesitamos em o atacar, tendo sido disparados vários tiros, que na sua maioria o atingiram na cabeça e no corpo. No entanto, o monstro, não parecendo incomodado, atirou-se à água e começou a nadar, de mandíbulas abertas, em direção ao bote onde eu e Peters estávamos. Devido à confusão que se gerou entre nós pela reviravolta inesperada da aventura, ninguém preparou imediatamente o seu segundo tiro e o urso conseguiu passar metade do seu enorme corpo através da borda e apanhar um dos homens pela cintura, antes que tivéssemos feito o que quer que fosse para o repelir. Só a agilidade e prontidão de Peters nos salvou daquele perigo. Saltando sobre o dorso do animal, enterrou-lhe uma faca no pescoço, atingindo-o, ao primeiro golpe, na espinal-medula. O animal caiu à água, completamente aniquilado, mas arrastando Peters na sua queda. Este em breve apareceu e nós lançamos-lhe uma corda, a qual ele, antes de subir para o bote, atou ao corpo do animal vencido. Fizemos um regresso triunfal à escuna, rebocando o nosso troféu. Depois de medirmos o urso, verificamos que no seu maior comprimento tinha mais de quinze pés. O pelo era de uma brancura sem par, muito forte e eriçado. Os olhos eram vermelhos de sangue, maiores do que os do urso ártico e tinha o focinho mais arredondado, semelhante ao do bulldog. A carne era tenra, mas excessivamente rançosa e a cheirar a peixe, embora os marinheiros se tivessem regalado com ela, achando-a excelente.

Mal tínhamos içado a nossa presa para bordo, quando o homem de vigia gritou alegremente: Terra a estibordo! Toda a gente se alvoroçou e, como se levantou uma brisa oportuna de Nordeste, chegamos rapidamente à costa. Era uma ilhota baixa e rochosa, com cerca de uma légua de circunferência e completamente privada de vegetação, excetuando uma espécie de nopal espinhoso. Aproximando-nos pelo Norte, vimos um estranho rochedo, fazendo promontório, que imitava extraordinariamente a forma de uma bola de algodão com cordas. Ao dobrarmos este pontão paira Oeste, encontramos uma pequena baía onde os nossos botes puderam fundear facilmente.

Não precisamos de muito tempo para explorar toda a ilha, não encontrando nada de importante, com exceção de uma ou outra coisa. Na extremidade Sul, perto da costa, deparou-se-nos um pedaço de madeira, meio enterrado debaixo de um monte de pedras, o qual parecia ter sido a proa de um bote. Era evidente que alguém tentara esculpir nele qualquer coisa, que o capitão Guy julgou ser uma tartaruga, mas devo confessar que não vi qual era a semelhança. Exceto esta proa, se realmente o era, não descobrimos nenhum indício que provasse que aquele lugar alguma vez tinha recebido a visita de um ser humano. À volta da costa encontrámos alguns pequenos blocos de gelo, espalhados ao acaso, mas em pequeno número. A situação exata da ilha à qual o capitão Guy deu o nome de Ilhota de Bennet em honra do seu sócio coproprietário da escuna, é 82° 50’ de latitude Sul e 42° 20’ de longitude Oeste.

Já tínhamos avançado para Sul mais oito graus do que todos os navegadores que nos tinham precedido e o mar estendia-se à nossa frente completamente livre de obstáculos. Verificamos também que a variação diminuía regularmente à medida que avançávamos e que a temperatura do ar e depois a da água se tornavam cada vez mais amenas. Podia-se considerar que o tempo estava agradável e sentíamos uma brisa ligeira, mas constante, soprando sempre do quadrante Norte. O céu geralmente estava limpo, aparecendo de tempos a tempos um débil vapor no horizonte a sul, mas era sempre de curta duração. Só víamos duas dificuldades: tínhamos falta de combustível e já se tinham manifestado sintomas de escorbuto em alguns tripulantes. Estas considerações começavam a pesar no espírito do capitão Guy, que falava em rumar para Norte. Pela minha parte, convencido como estava de que em breve encontraríamos terra, seguindo sempre a mesma rota, onde o solo não seria tão estéril como nas altas latitudes árticas, insistia calorosamente junto dele sobre a necessidade de prosseguir, pelo menos durante mais alguns dias, a rota seguida até ali. Nunca se tinha apresentado a ninguém uma oportunidade tão tentadora de resolver o grande problema relativo ao continente Antártico, e confesso que me sentia indignado quando o nosso comandante falava em voltar para trás. Estou firmemente convencido de que tudo o que lhe disse sobre o assunto serviu para o convencer a continuar em frente. Embora seja obrigado a deplorar os tristes e sangrentos acontecimentos que foram o resultado imediato do meu conselho, creio que devo congratular-me por ter sido, até certo ponto, o instrumento de uma descoberta, e por ter servido, de certa maneira, para desvendar aos olhos da ciência um dos mais excitantes segredos a que dedicou a sua atenção.





continua na página 235...

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 



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