sexta-feira, 18 de setembro de 2020

histórias davóinha: becos sem saída (I) 05bs - as mãos amarradas

becos sem saída

(I) o descolocado
05bs – as mãos amarradas

baitasar



o velho se para e respira fundo, nada daquilo é fácil de lembrar, pede paciência à alma penada, cada memória avivada, cada fardo de cerveja omisso entrava nos bares e sentava no banquinho, sempre nos cantos, as costas na parede e porta à frente, comia um ou dois espetinhos, brincava que era churrasquinho de gato – ideia que não era tão estrambótica, já que na villa risonha houvera açougue que vendia carne de gente –, bebia tanto que as pulgas pediam que fosse embora, saia despachado de um bar para outro, esquecia o esquecimento

foi um personagem neutro, patético e amedrontado, naqueles dias, repetia que era pequeno e insignificante, Não vou fazer diferença, viveu escondido atrás do medo, chegou a pensar que era diferente, mas foi mais um entre muitos que se escondeu assim, esperando a tempestade passar, todos e todas juntas fariam a diferença depois, Guria... ninguém quer ser sacrificado...

Desembucha logo, velho!

Calma, guria. Preciso do uso das lembranças. E isso, às vezes, pode não ser bom, o passado sempre trás a sua influência. Não esquece que a vida é cheia de subidas e descidas.

a miúda balançou os ombros com indiferença, Eu só conheço a vida com descida – caminhos cortados, atrapalhados, assustados ou interrompidos – e desvios com mais lomba pra baixo. A vida no meu modo de vê é uma bosta!

o velho também se balança, ainda não sabe se fez o certo em abrir a caixa daquelas lembranças, Eu sei bem, espero que não seja muito tarde. Cheguei no tempo da idade que estou e fui descobrir que a vida com mais arrependimentos que lutas é uma vida perdida. É como perder tempo ensaboando cabeça de burro!

Velho, às vezes, ou quase sempre, dá no mesmo, eu sei que eu mais o velho não fazemos parte da vida. Não sei explicar melhor, eu sinto que sou um refugo sem nada pra contar...

o velho bate com as duas mãos nas pernas, Chega dessa choradeira! Vamos continuar com as histórias... eu conto e a guria escuta.

Gostei... isso... a noite é uma criança e o meu costume é não dormir.

Está bem! Voltando... após dois meses de prisão o tal Raimundo foi encontrado boiando nas águas do rio, as mãos amarradas às costas com sua própria camisa. Na investigação ficou provado que morreu por afogamento. Tudo apontava que o afogamento se deu durante alguma tortura: o famoso caldo. As provas encontradas eram reais, apesar das escoriações e ferimentos estarem disfarçados pelos estragos dos dias do corpo nas águas. Pois bem, parece que a falta de castigo para esse crime fez aumentar a certeza que os apoiadores da ditadura tudo podiam. E a violência da polícia aumentou.

Afinal, velho, O que foi, guria, Foi golpe ou foi ditadura?

hoje, como antes, os demônios estão soltos, No fim, tudo dá no mesmo, um golpe nas leis que carrega junto a ditadura com cacete, ignorância e negação de tudo para todos os lados, todos e todas que não estão do lado do golpe dado estão contra os ventos. É quando a ditadura desembarca aos gritos de amem-nos ou deixem-nos! Agora vamos todos pra frente, o velho continuava desconfiado do seu papel de testemunha da história, outro dia que quem manda também desmanda, sente medo e arrependimento, mija nas calças, sente culpa da criança escondida das bruxas, carrega uma ilhota de fantasmas, um silêncio útil que serviu como exemplo

na ilha de madalena, daqueles dias de cegueira útil, todos pensavam – ou queriam acreditar – que isso tudo estava longe, não existia essa tal da força bruta, e se existia era porque aqueles que estavam presos eram presos desumanos que mereciam, Coisa de comunista! Gente que come criancinha e vivem de comum acordo com o demônio! Tudo sem-vergonha, gente que não confia em Deus e nas igrejas! tudo ladrão!




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