terça-feira, 1 de setembro de 2020

Úrsula - II O delírio (2)

Maria Firmina dos Reis





II - O delírio 


continuando...



Então ela voltou para junto de sua mãe. A pobre senhora, vencida pelo muito sofrer, tinha também adormecido, e a menina, reclinando-se em uma cadeira, procurou, mas embalde, conciliar o sono, que nessa noite parecia obstinado em fugir-lhe. 

Em vão deixava cair as pálpebras; em vão tentava arredar os pensamentos do que ouvira, que a mente errava em torno daquele leito, donde ela se destacara; e o coração dizia-lhe que não estava tranquilo. Entretanto, pobre Úrsula, julgava que nunca havia de amar!...

Mais tarde um gemido saiu da câmara do doente; o coração doeu-lhe; porque se tinha esquecido até do remédio do enfermo: levantou-se, pois, correndo, e o foi levar.

A hora tinha já passado, porém o calmante produziu salutar efeito; porque ao retirar-se-lhe a colher dos lábios, o cavaleiro, deslizando um fraco sorriso, estendeu a mão à donzela, e disse-lhe com reconhecimento:

— Ah! Senhora, como sois boa! Quem quer que sejais, aceitai meus sinceros agradecimentos pelo generoso interesse, que mostrais por um infeliz desconhecido.

— Silêncio, – animou-se ela a dizer, corando muito – não vedes que tendes febre? Perdoai-me; mas eu não consinto que faleis.

— Oh! – exclamou ele – Tanta bondade me confunde. Deixai ao menos agradecer-vos; mais tarde submeter-me-ei com gosto as vossas determinações.

— Agradecer-me? – interrogou Úrsula com voz um pouco comovida – Que vos hei eu feito que mereça vosso reconhecimento? Pelo céu, nem faleis nisso; e em seus grandes olhos errou uma lágrima.

Não sei que sentimento a trouxe do coração aos olhos; mas fosse qual fosse, o que é verdade, é que a lágrima, semelhando uma pérola escapada a precioso colar, rolou-lhe pelas faces e foi cair sobre a mão do enfermo.

Ela estremeceu involuntariamente, e um rubor subitâneo, que ocultou com as mãos, lhe assomou às faces.

Mas os olhos do cavaleiro, reavendo seu fulgor febril, não viram essa lágrima, que lhe teria escaldado a mão, nem esse inocente rubor tão expressivo; porque começara um novo solilóquio.

— Sim – dizia – e não era feliz em possuí-la? Quê! Oh! Foi um só dia... foi. Mas, minha mãe!... Via-a no sepulcro! E ela era um anjo!... Mataram-na!... Mataram-na!...

E estendia os braços, e sorria-se como afagando benéfica visão.

— Agora posso viver – disse respirando largamente – sim, agora posso viver; porque já a não amo: sim, já não amo aquela que traiu cruelmente minhas loucas esperanças.

— Não vedes? – prosseguiu fitando Úrsula – Como é belo amar-se! Como se nos expande o coração, como nos transborda a alma de felicidade?!...

E a moça dizia consigo — Meu Deus! Meu Deus, que é o que eu sinto no coração que me enternece? Deve ser sem dúvida esta forçada vigília, este lidar de todos os momentos. O estado de minha pobre mãe... a compaixão que me inspira este infeliz mancebo, tão próximo talvez da morte!... Oh! Terrível ideia! A morte! É ele tão jovem... Tão leal, e tão franca é a sua fisionomia... Meu Deus! Seria bem duro vê-lo morrer! Poupai-o, Senhor. Se eu pudesse, duplicaria os meus cuidados para salvá-lo! Oh, se eu pudesse!...

O enfermo entrou a sorrir-se; a febre começava a declinar. Ao delírio violento seguiu-se plácida alucinação – parecia que um mundo de gratas ilusões, povoado de meigos seres, o afagava; estendia os braços como para estreitar entes que lhe eram caros e o rosto se lhe expandia suavemente.

Depois sua mão tocou uma mão alva, e trêmula, e gelada: esta mão, que ele em seu delírio procurou com ardor levar aos lábios, fugiu-lhe medrosa ao contato desse beijo de fogo.

— Atende-me – exclamou com desalento – não fujas... Tenho a contar-te uma história bem triste! Oh! Bem triste!...

E estendia as mãos súplices, e já nada encontrava. Túlio contemplava-o silencioso até que por último exclamou:

— Homem generoso! Único que soubeste compreender a amargura do escravo!... Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte estampado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse: — És meu! – Ele curvou a fronte, e humilde, rastejando qual erva, que se calcou aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos. Cadeia infame e rigorosa, a que chamam “escravidão”?!... E entretanto este também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. Ele escuta a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos lábios de sua mãe, e sente como eles, que é livre; porque a razão lho diz, e a alma o compreende. Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar!

Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da África, vê os areais sem fim da pátria e procura abrigar-se debaixo daquelas árvores sombrias do oásis, quando o sol requeima e o vento sopra quente e abrasador: vê a tamareira benéfica junto à fonte, que lhe amacia a garganta ressequida: vê a cabana onde nascera, e onde livre vivera! Desperta porém em breve dessa doce ilusão, ou antes sonha que a engolfara, e a realidade opressora lhe aparece: é escravo e escravo em terra estranha! Fogem-lhe os areais ardentes, as sombras projetadas pelas árvores, o oásis no deserto, a fonte e a tamareira. Foge a tranquilidade da choupana, foge a doce ilusão de um momento, como ilha movediça; porque a alma está encerrada nas prisões do corpo! Ela chama-o para a realidade, chorando, e o seu choro, só Deus compreende! Ela não se pode dobrar, nem lhe pesam as cadeias da escravidão; porque é sempre livre, mas o corpo geme, e ela sofre, e chora; porque está ligada a ele na vida por laços estreitos e misteriosos.

E Túlio ficou pensativo, e as lágrimas caíram, a seu pesar, fio por fio pela face a baixo.

Tinha no entanto terminado o delírio ao doente: seguiu-se-lhe extrema prostração e um suor geral e frio.

Úrsula e Túlio tiveram então uma só ideia, terrível e medonha – a morte! e estremeceram de dor. O escravo, porque este homem era agora a vida da sua alma; porque era a imagem de Deus, que lhe sorria. A donzela, por quê?... Ela própria não o saberia dizer. Mas ambos sentiam iguais temores, aflições iguais: é então porque ambos o amavam.

E as noites que sucederam a esta eram ainda povoadas de sustos e ansiedade: o mancebo continuava a sofrer, e seus amigos redobravam de desvelos, e choravam sobre suas dores.

O cavaleiro via-os, escutava-os, e sentia lá no fundo da alma um estranho sentir. Úrsula tornara-se para ele a imagem vaporosa e afagadora de um anjo: e o que se passava naquele coração enfermo só ele o sabia.






continua pág 38...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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