sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (16a) - É autêntica

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Primeira Parte

16.

- É autêntica - anunciou finalmente Ptítsin. dobrando a carta e a devolvendo ao príncipe. 

- Sua tia deixou um testamento em ordem, mercê do qual o senhor se empossará de uma enorme fortuna, sem a menor dificuldade.

- Não pode ser...! - E o brado do general soou como um tiro de pistola. Todos ficaram outra vez boquiabertos de assombro.

Ptítsin explicou então, dirigindo-se mais ao general do que aos circunstantes. que, segundo os termos da carta, o príncipe perdera, havia cerca de cinco meses, uma tia que o não chegara a conhecer pessoalmente, irmã mais velha de sua mãe e filha de um comerciante de Moscou, membro da terceira ghilda ou categoria, um tal Papúchin que morrera na pobreza após uma falência. Mas que esse Papúchin tinha um irmão que lhe sobrevivera ainda bastante tempo. Tratava-se de um rico comerciante, conhecidíssimo que, tendo perdido no mesmo mês os dois filhos, vira piorado com esse desgosto o seu já péssimo estado de saúde, morrendo logo a seguir. Viúvo, não tinha no mundo outro herdeiro a não ser a sobrinha, a tia do príncipe, mulher então totalmente pobre, sem nada de seu. Mas que a coitada herdara quando a bem dizer já estava também para morrer, vítima de uma hidropisia; tivera, porém, tempo e modo de, pensando no sobrinho distante, fazer testamento, servindo-se em tal conjuntura do advogado Salázkin. Todavia, nem o príncipe nem o médico a cujo cargo ele estava na Suíça, se tinham decidido a esperar pela notificação oficial. O príncipe, uma vez com a comunicação de Salázkin em mãos, resolvera pôr-se a caminho a fim de entabular averiguações. - Desde já lhe posso assegurar, e acho que isso chega - concluiu Ptítsin, voltando-se de novo para o príncipe -, que o caso é verdadeiro e mais do que exato no que respeita à fortuna, e que tudo quanto Salázkin lhe participa é autentico e incontestável, o que equivale a já estar o senhor com o dinheiro no bolso. Congratulo-me com o senhor, meu caro príncipe! Trata-se de um milhão e meio, ou possivelmente mais. Papúchin era um comerciante riquíssimo.

- Viva o último dos príncipes Míchkin - berrou Ferdichtchénko.

- Hurra! - rosnou Liébediev com sua voz de bêbado.

“Pobrezinho! E não é que lhe emprestei esta manhã vinte e cinco rublos? Ah! Ah! Ah! Um conto de fadas, é o que isto é!” -raciocinou o general quase estupidificado de assombro. 

- Bem, congratulo-me com o senhor, congratulo-me com o senhor! - acrescentou em voz alta. 

E, levantando-se foi abraçar o príncipe. Os demais também se levantaram, rodeando o príncipe. Mesmo aqueles que se tinham retirado para detrás da cortina reentraram na sala de visitas. O falatório e as exclamações produziam algazarras, sendo que até se ouviu quem bradasse por champanha. O rebuliço excitava a todos, a ponto de por um instante esquecerem Nastássia Filíppovna e o fato de que eram seus convidados. Mas, pouco a pouco e a todos ao mesmo tempo, ocorreu ter ele acabado de lhe fazer uma oferta de casamento. A situação agora se lhe apresentava por seu absurdo patético, três vezes mais extraordinAria do que antes. Assombrado, Tótskii encolheu os ombros e foi a única pessoa que não se pôs de pé, tendo ficado como estava, enquanto todo o mundo começou a se aglomerar em desordem ao redor da mesa. Houve, mais tarde, quem asseverasse que fora naquele momento que Nastássia Filíppovna ficara louca.

Ainda estava sentada e começou a olhar à sua volta com um estranho e espantado olhar, como se não atinasse e estivesse tentando apreender o que acontecera. Depois, subitamente, se virou para o Príncipe e, com o cenho fechado e ameaçador, o fixou com atenção. Mas isso durou pouco: talvez cuidasse que tudo era brincadeira e mofa. Mas a expressão do príncipe acabou por certificá-la. Refletiu um pouco; depois, sorriu de um modo ainda vago, como sem saber por quê. 

- Então, sou uma princesa de verdade! - ciciou para consigo mesma, como se estivesse zombando E, acontecendo olhar para Dária Aleksiéievna, deu uma gargalhada - Que fim surpreendente... nunca esperaría Mas por que estão todos de pé, amigos? Por favor, sentem-se! Congratulem-se comigo e com o príncipe! Quem foi que pediu champanha? Ferdichtchénko trate disso. Kátia, Pácha, venham cá! (Descobrira repentínamente as criadas lá na entrada.) Sabem vocês duas que eu vou me casar? Pois ouçam. Aqui com o príncipe. Ele tem um milhão e meio. É o Príncipe Míchkin e vai casar comigo.

- E olhe que é um bom partido, mátuchka. Calhou bem. Não perca a ocasião. - o conselho era de Dária Aleksiéievna, tremendamente comovida pelo que se tinha passado.

- Sente-se aqui ao meu lado, príncipe - chamou, Nastássia Filíppovna - Isto, assim. Ah! Já estão trazendo champanha. Congratulemo-nos, amigos!

Hurra! - gritaram numerosas vozes.

Muitos se agruparam logo em volta das garrafas e entre eles estavam quase todos os companheiros de Rogójin. Mas embora soltassem exclamações e não estivessem dispostos a parar tão cedo, ainda assim alguns houve que, apesar da estranheza das circunstâncias e do ambiente, perceberam que a situação tinha mudado. 

Outros estavam desnorteados e esperavam com desconfiança. Mas houve quem sussurrou que não havia nada de mais naquilo, pois os príncipes estavam dando, ultimamente, para se casarem com não importava que classe de mulheres, até mesmo com raparigas de campos de ciganos. Rogójin, porém, separado de todos, estarrecido, tinha a cara contraída em um sorriso fixo enigmático.  

- Príncipe, meu caro amigo, pense no que vai fazer - murmurou o general com apreensão, aproximando-se furtivamente do príncipe e puxando-o pela manga.

Nastássia Filíppovna notou isso e deu nova gargalhada. 

- Não, general! Agora sou uma princesa, está ouvindo? E o príncipe não permitirá que eu seja insultada. Afanássii Ivánovitch, congratule-se comigo, você também. Agora posso sentar-me ao lado de sua esposa, esteja ela onde estiver. Que acha, não é uma pechincha, um marido como este? Um milhão e meio e um príncipe e ainda por cima um idiota, dizem eles. Que pode haver de melhor? A verdadeira vida está começando agora, para mim. Você veio muito atrasado, Rogójin. Leve outra vez o seu dinheiro. Vou me casar com o príncipe e sou mais rica do que você!

Rogójin, porém, resolveu tomar conta da situação. Com uma expressão de indizível sofrimento na cara juntou as mãos, e um grunhido partiu do seu peito. - Largue-a! - gritou para o príncipe.

Houve gargalhadas.

- Largá-la para quem? Para você? - perguntou Dária Aleksiéievna, de modo triunfante. - Estúpido, atreve-se a arrojar o dinheiro dessa forma sobre a mesa! Quem vai se casar com ela é o príncipe! Você entrou aqui só para fazer estardalhaço! 

- Eu também quero casar com ela! Quero casar com ela neste minuto. Dou o que pedir! 

- Saia daí, seu bêbado de rua! Você devia mais era ser jogado pela janela! - exprobrava-o Dária Aleksiéievna, indignadíssima. 

As gargalhadas agora eram mais altas do que antes.

- Está ouvindo, príncipe? - perguntou Nastássia Filíppovna, voltando-se. - É assim que um mujique arrebata a noiva! - É porque bebeu muito! E é sinal de um grande amor! - E não se sentirá envergonhado depois, príncipe, ao se lembrar de que sua noiva quase saiu com Rogójin? 

- Vós estáveis com febre e estais ainda agora em delírio.

- E não se sentirá enrubescer quando lhe disserem depois que sua mulher viveu com Tótskii no papel de amante?

- Por que me hei de envergonhar?... Não foi vontade vossa ter estado com Tótskii.

- E nunca me exprobrará por isso?

- Nunca. 

- Olhe lá... Não responda pela vida inteira.

- Nastássia Filíppovna - disse o príncipe, vagarosamente e como se estivesse compadecido dela - acabei de dizer-vos ainda agora que tomaria vosso consentimento como uma honra conferida a mim e não a vós. Sorristes àquelas palavras e houve quem risse de nós. Pode ser que eu me tenha expressado de forma ridícula e que me tenha tornado ridículo, eu próprio! Mas penso que sempre entendi o sentido de honra e, portanto, estou certo de que o que eu disse é verdade. Vós vos quisestes arruinar ainda agora irrevogavelmente. E nunca vos perdoaríeis por isso, depois. Mas vós não mereceis censura alguma. Vossa vida não pode ser arruinada assim. Que importa que Rogójin tenha aparecido e que Gavríl Ardaliónovitch vos tenha ludibriado? Por que haveis de persistir nessa obstinação? Repito-vos que quase ninguém faria o que fizestes. Quanto à vossa decisão de vos irdes com Rogójin, estáveis doente quando vos acudiu esse plano. E doente ainda estais; devíeis ir para a cama. Se tivésseis saído com Rogójin, no dia seguinte iríeis ser até lavadeira; não suportaríeis viver com ele. Sois altiva, Nastássia Filíppovna; talvez sejais tão infeliz que realmente vos cuidais digna de censura. Precisais bem quem olhe por vós, Nastássia Filíppovna. Eu olharei por vós. Ainda esta manhã, ao ver o vosso retrato, senti uma coisa assim como se vos estivesse reconhecendo, como se já vos tivesse socorrido... Respeitar-vos-ei toda a minha vida, Nastássia Filíppovna. 

O príncipe acabou. E tinha o ar de se estar lembrando de uma coisa súbita. Enrubesceu e então teve consciência da classe e gente em cuja presença dissera aquilo. 

Ptítsin abaixou a cabeça, humilhado. Tótskii pensou consigo mesmo: “É um idiota, mas sabe que a adulação é o melhor meio de prender uma pessoa, e faz isso por instinto”. O príncipe notou em um canto também, os olhos de Gánia, fulgurando para ele como se o quisessem consumir

- Que grande coração! - pronunciou Dária Aleksiéievna emocionadíssima. 

- Um homem fino, mas votado à ruína - ciciou o general Tótskii, tomou o chapéu e estava para levantar-se e esgueirar-se, olhando porém de esguelha para o general, fazendo-o compreender que deviam sair juntos.

- Obrigada, príncipe. Nunca ninguém me falou deste modo - disse Nastássia Filíppovna. - Tentaram sempre comprar-me, mas nenhum homem decente pensou em se casar comigo. Ouviu Afanássii Ivánovitch? Que acha de tudo isso que o príncipe disse? Foi um pouco impróprio, não acha?... Rogójin, não se vá ainda. Perdão, pensei que ia indo. Quem sabe se, no fim de tudo, não é com você que me irei? Para onde pensava você levar-me?

- Para Ekaterinhóf! - informou Liébediev, lá do seu canto.

Rogójin contentou-se em pasmar, contemplando-a com os olhos muito esgazeados, como se não acreditasse em seus sentidos de ver e ouvir. Jazia completamente zonzo, como se tivesse levado uma pancada na cabeça.

- Que é que estás pensando, querida? Qual! Estás mesmo doente! Perdeste a cabeça?

- Pensaste que fosse verdade? - riu Nastássia Filíppovna. levantando-se do sofá. - Arruinar uma criança como esta aqui! Isso seria papel para Afanássii Ivánovitch: ele gosta de crianças. Venha, Rogójin. O dinheiro está pronto? Lá isso de querer casar comigo, não! Mesmo assim, passe o dinheiro. Talvez mesmo não me case com você. Pensou que casando comigo ficaria com o dinheiro? Teve tal ideia, hein? Eu sou uma desavergonhada rameira! Fui a concubina de Tótskii... Agora, príncipe, case mas é com Agláia Epantchiná! Se casasse comigo, teria Ferdichtchénko, pelo resto da vida, a apontá-lo com o dedo, escarnecendo de sua coragem. Que não tenha medo, príncipe, compreendo, mas eu terei... Sim, teria medo de arruiná-lo e de vir a ser exprobrada, depois, por isso. Quanto a dizer-me que lhe concedo uma honra, ali está Tótskii que. a tal respeito, lhe pode dizer alguma coisa. E você, Gánia, saiba que perdeu também Agláia Ivánovna. Não tivesse regateado com ela e ela casaria com você. Homens há que são assim, ficam sem optar. quando urge escolher de uma vez para sempre: ou mulheres à-toa. ou mulheres direitas. Do contrário sai barafunda. Olhem só: o general está de boca aberta, muito admirado! 

 - Mas isto é Sodoma... Sodoma! - apostrofou o general encolhendo os ombros.

Não tardou que se levantasse do sofá. Todos os outros se ergueram também. 
Nastássia Filíppovna chegara ao paroxismo da exaltação.



continua página 153..
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