quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (10.2) - As telhas apodrecidas

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(10.2)


para jomí garcía ascot
e maría luisa elío

continuando...

As telhas apodrecidas se despedaçaram num estrondo de desastre e o homem mal conseguiu lançar um grito de terror e fraturou o crânio e morreu sem agonia no chão de cimento. Os forasteiros que ouviram o barulho na sala de jantar e se apressaram em levar o cadáver perceberam na sua pele o sufocante cheiro de Remedios, a bela. Estava tão entranhado no corpo que as rachaduras do crânio não emanavam sangue e sim um óleo ambarino impregnado daquele perfume secreto, e então compreenderam que o cheiro de Remedios, a bela, continuava torturando os homens além da morte, até a poeira dos ossos. Entretanto, não relacionaram aquele acidente de horror com os outros dois homens que haviam morrido por Remedios, a bela. Faltava ainda uma vítima para que os forasteiros e muitos dos antigos habitantes de Macondo dessem crédito à lenda de que Remedios Buendía não exalava o sopro de amor mas sim um fluxo mortal. A ocasião de comprová-lo se apresentou meses depois, numa tarde em que Remedios, a bela, foi com um grupo de amigas conhecer as novas plantações. Para o povo de Macondo, era uma distração recente percorrer as úmidas e intermináveis avenidas ladeadas de bananeiras, onde o silêncio parecia trazido de outra parte, ainda sem usar, e por isso era tão difícil transmitir a voz. As vezes não se entendia muito bem o que era dito a meio metro de distância e que entretanto se tornava perfeitamente compreensível no outro extremo da plantação. Para as moças de Macondo aquela brincadeira nova era motivo de risadas e sobressaltos, de sustos e zombarias, e de noite se falava do passeio como de uma experiência de sonho. Era tal o prestígio daquele silêncio que Úrsula não teve coragem de privar Remedios, a bela, da diversão e lhe permitiu ir numa tarde, desde que pusesse um chapéu e uma roupa adequada. Assim que o grupo de amigas entrou na plantação o ar se impregnou de uma fragrância mortal. Os homens que trabalhavam nas valas se sentiram possuídos por uma estranha fascinação, ameaçados por um perigo invisível, e muitos sucumbiram à terrível vontade de chorar. Remedios, a bela, e suas espantadas amigas conseguiram se refugiar numa casa próxima quando estavam já para serem assaltadas por um tropel de machos ferozes. Pouco depois foram resgatadas pelos quatro Aurelianos, cujas cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marca de casta, selo de invulnerabilidade. Remedios, a bela, não contou a ninguém que um dos homens, aproveitando o tumulto, conseguira agredi-la no ventre com uma mão que mais parecia uma garra de águia aferrada aos bordos de um precipício. Ela enfrentara o agressor numa espécie de deslumbramento instantâneo e vira os olhos desconsolados que ficaram impressos no seu coração como uma brasa de compaixão. Nessa noite, o homem se gabou da sua audácia e se vangloriou da sua sorte na Rua dos Turcos, minutos antes de que o coice de um cavalo lhe arrebentasse o peito e uma multidão de forasteiros o visse agonizar no meio da rua, sufocado em vômitos de sangue.

A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irrefutáveis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Úrsula não voltou a se ocupar dela. Em outra época, quando ainda não renunciara ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exigentes do que você pensa”, dizia-lhe enigmaticamente. “É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesquinharias, além daquilo que você pensa.” No fundo se enganava a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a paixão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Arcadio e a sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bisneta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente serenidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mulher útil. Desde as tardes esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe, perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou para que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provocante que muito em breve haveria um homem intrigado o bastante para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Remedios, a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pensou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamentou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão longa. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continuar acreditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demonstrava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deusdará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.

— Você está se sentindo mal? — perguntou a ela.

Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade. 

— Pelo contrário — disse — nunca me senti tão bem. 

Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar. Os forasteiros, evidentemente, pensaram que Remedios, a bela, sucumbira por fim ao seu irrevogável destino de abelha-mestra e que a sua família tentava salvar a honra com a mentira da levitação. Fernanda, roída de inveja, acabou por aceitar o prodígio e durante muito tempo continuou rogando a Deus para que lhe devolvesse os lençóis. A maioria acreditou no milagre e até se acenderam velas e se rezaram novenas. Talvez não se tivesse voltado a falar de outra coisa por muito tempo, se o bárbaro extermínio dos Aurelianos não tivesse substituído o assombro pelo horror. Embora nunca o identificasse como um presságio, o Coronel Aureliano Buendía previa de certo modo o trágico fim dos seus filhos. Quando Aureliano Serrador e Aureliano Arcaya, os dois que chegaram no tumulto, manifestaram a vontade de ficar em Macondo, o pai tentou dissuadi-los. Não entendia o que vinham fazer num povoado que da noite para o dia se transformara num lugar de perigo. Mas Aureliano Centeno e Aureliano Triste, apoiados por Aureliano Segundo, ofereceram trabalho para eles nas suas empresas. O Coronel Aureliano Buendía tinha motivos ainda muito confusos para não patrocinar aquela determinação. Desde que vira o Sr. Brown no primeiro automóvel que chegara a Macondo — um conversível alaranjado com uma buzina que espantava os cães com os seus latidos — o velho guerreiro se indignou com as mesuras servis do povo e percebeu que alguma coisa mudara na índole dos homens desde o tempo em que abandonavam mulheres e filhos e jogavam uma espingarda ao ombro para ir à guerra. As autoridades locais, depois do armistício de Neerlândia, eram alcaides sem iniciativa, juízes decorativos, escolhidos entre os pacíficos e cansados conservadores de Macondo. “Este é um regime de pobres-diabos”, comentava o Coronel Aureliano Buendía quando via passar os guardas descalços, armados de cassetetes de madeira. “Fizemos tantas guerras, e tudo para que não nos pintassem a casa de azul.” Quando chegou a companhia bananeira, entretanto, os funcionários locais foram substituídos por forasteiros autoritários que o Sr. Brown levou para viver no galinheiro eletrificado, para que gozassem, conforme explicou, da dignidade que correspondia ao seu cargo e não sofressem o calor e os mosquitos e as incontáveis incomodidades e privações do povo. Os antigos guardas foram substituídos por sicários armados de facões. Fechado na oficina, o Coronel Aureliano Buendía pensava nestas mudanças e, pela primeira vez nos seus calados anos de solidão, atormentou-o a certeza definitiva de que havia sido um erro não prosseguir a guerra até as suas últimas consequências. Por esses dias, um irmão do esquecido Coronel Magnífico Visbal levou o neto de sete anos para tomar um refresco nas carrocinhas da praça e, porque o menino esbarrou por acidente num cabo de polícia e lhe derramou o refresco no uniforme, o bárbaro fez dele picadinho com o facão e decapitou de um só golpe o avô, que tentara enfrentá-lo. Todo o povo viu o decapitado passar quando um grupo de homens o carregava para casa, a cabeça arrastada por uma mulher que a levava pendurada pelos cabelos e o saco ensanguentado onde meteram os pedaços do menino.

 Para o Coronel Aureliano Buendía foi o máximo da expiação. Encontrou-se de repente padecendo da mesma indignação que sentira na juventude, diante do cadáver da mulher que fora morta a pauladas porque tinha sido mordida por um cão raivoso. Olhou para os grupos de curiosos que estavam na frente da casa e, com a sua antiga voz trovejante, restaurada por um profundo desprezo por ele mesmo, jogou-lhes em cima o peso do ódio que já não podia mais suportar no coração.

 — Um dia destes — gritou — vou armar os meus rapazes para acabar com estes ianques de merda!

Ao correr da semana, em diferentes lugares do litoral, os seus dezessete filhos foram caçados como coelhos por criminosos invisíveis que apontaram bem no centro das suas cruzes de cinza. Aureliano Triste saía da casa de sua mãe, às sete da noite, quando um disparo de fuzil surgido da escuridão perfurou-lhe a testa. Aureliano Centeno foi encontrado na rede que costumava armar na fábrica com um furador de gelo cravado até o cabo entre as sobrancelhas. Aureliano Serrador tinha deixado a namorada na casa dos pais, depois de levá-la ao cinema, e voltava pela iluminada Rua dos Turcos quando alguém que nunca foi identificado na multidão disparou um tiro de revólver que o derrubou dentro de um caldeirão de gordura fervendo. Poucos minutos depois, alguém bateu na porta do quarto onde Aureliano Arcaya estava fechado com uma mulher e gritou para ele: “Anda logo, que estão matando os teus irmãos.” A mulher que estava com ele contou depois que Aureliano Arcaya pulou da cama e abriu a porta e foi esperado com uma descarga de Mauser que lhe despedaçou o crânio. Naquela noite de matança, enquanto a casa se preparava para velar os quatro cadáveres, Fernanda percorreu o povoado como uma louca procurando Aureliano Segundo, que Petra Cotes trancara num armário, pensando que a missão de extermínio incluía todos os que tivessem o nome do coronel. Não o deixou sair até o quarto dia, quando os telegramas recebidos de lugares diferentes do litoral permitiram compreender que a sanha do inimigo invisível estava dirigida apenas contra os irmãos marcados com cruzes de cinza. Amaranta procurou a caderneta de contas onde havia anotado os dados dos sobrinhos, e, à medida que chegavam os telegramas, ia riscando os nomes, até que só ficou o do mais velho. Lembravam-se muito bem dele, por causa do contraste da sua pele escura com os grandes olhos verdes. Chamava-se Aureliano Amador, era carpinteiro e vivia numa aldeia perdida nas encostas da serra. Depois de esperar duas semanas pelo telegrama da sua morte, Aureliano Segundo mandou um emissário para preveni-lo, pensando que ignorasse a ameaça que pesava sobre ele. O emissário voltou com a notícia de que Aureliano Amador estava salvo. Na noite do extermínio, dois homens tinham ido procurá-lo em sua casa e tinham descarregado os seus revólveres contra ele, mas não lhe haviam acertado a cruz de cinza. Aureliano Amador conseguira pular a cerca do quintal e se perdera nos labirintos da serra, que conhecia como a palma da mão, graças à amizade dos índios com quem comerciava madeira. Não se voltara a saber dele. 

Foram dias negros para o Coronel Aureliano Buendía. 

O Presidente da República endereçou-lhe um telegrama de pêsames no qual prometia urna investigação exaustiva e rendia homenagem aos mortos. Por ordem sua, o alcaide se apresentou no enterro com quatro coroas fúnebres que pretendeu colocar sobre os ataúdes, mas o coronel o pôs na rua. Depois do enterro, redigiu e levou pessoalmente um telegrama violento para o Presidente da República, que o telegrafista se negou a transmitir. Então, enriqueceu-o com expressões de singular agressividade, meteu-o num envelope e o pôs no correio. Como lhe ocorrera com a morte da esposa, como tantas vezes lhe ocorrera durante a guerra com a morte dos seus melhores amigos, não experimentava um sentimento de pesar, mas uma raiva cega e sem direção, uma extenuante impotência. Chegou até a denunciar a cumplicidade do Padre Antonio Isabel, por ter marcado seus filhos com cinza indelével, para que fossem identificados pelos inimigos. O decrépito sacerdote, que já não alinhava muito bem as ideias e começava a espantar os paroquianos com as disparatadas interpretações que tentava no púlpito, apareceu uma tarde na casa com a caneca onde preparava as cinzas da quarta-feira e tentou ungir com elas toda a família, para demonstrar que saíam com água. Mas o terror da desgraça tinha calado tão fundo que nem a própria Fernanda se prestou à experiência e nunca mais se viu um Buendía ajoelhado junto ao altar na quarta-feira de cinzas. 

Durante muito tempo o Coronel Aureliano Buendía não conseguiu recobrar a serenidade. Abandonou a fabricação de peixinhos, comia a duras penas e andava como um sonâmbulo por toda a casa, arrastando a manta e mastigando uma cólera surda. Ao fim de três meses, tinha o cabelo grisalho, o antigo bigode de pontas engomadas gotejando sobre os lábios sem cor, mas em compensação os seus olhos eram outra vez aquelas duas brasas que haviam assustado aos que o viram nascer e que em outros tempos faziam as cadeiras girarem só de olhar para elas. Na fúria do seu tormento tentava inutilmente provocar os presságios que haviam guiado a sua juventude pelos caminhos do perigo até o desolado ermo da glória. Estava perdido, extraviado numa casa alheia, onde já nada nem ninguém lhe motivava o menor vestígio de afeto. Uma vez abriu o quarto de Melquíades, procurando os rastos de um passado anterior à guerra e só encontrou os escombros, o lixo, os montes de porcaria acumulados por tantos anos de abandono. Nas capas dos livros que ninguém voltara a ler, nos velhos pergaminhos macerados pela umidade, prosperara uma flora lívida, e no ar que havia sido o mais puro e luminoso da casa flutuava um insuportável cheiro de lembranças podres. Certa manhã, encontrou Úrsula chorando debaixo do castanheiro, nos joelhos do marido morto. O Coronel Aureliano Buendía era o único habitante da casa que não continuava a ver o potente ancião angustiado por meio século de intempérie.

“Cumprimente o seu pai”, disse-lhe Úrsula. Deteve-se um momento diante do castanheiro e uma vez mais comprovou que aquele espaço vazio também não lhe inspirava nenhum afeto.

— O que é que ele diz? — perguntou. 

— Está muito triste — Úrsula respondeu — porque acha que você vai morrer.

— Diga a ele — sorriu o coronel — que não se morre quando se deve, mas quando se pode. 

O presságio do pai morto removeu o último ressaibo de soberba que lhe restava no coração, mas ele o confundiu com um repentino sopro de força. Foi por isso que se dirigiu a Úrsula, para que lhe revelasse em que lugar do quintal estavam enterradas as moedas de ouro que tinham encontrado dentro do São José de gesso. “Você nunca vai saber”, disse ela com uma firmeza inspirada num velho castigo. “Um dia”, acrescentou, “há de aparecer o dono dessa fortuna e só ele poderá desenterrá-la.” Ninguém sabia por que um homem que sempre fora tão desprendido tinha começado a cobiçar o dinheiro com semelhante ansiedade, e não as modestas quantias que lhe haveriam bastado para resolver uma emergência, mas uma fortuna de grandezas desatinadas cuja simples menção deixou Aureliano Segundo perdido num mar de assombro. Os velhos companheiros de partido a quem acudiu em demanda de ajuda se esconderam para não recebê-lo. Foi por essa época que o ouviram dizer: “A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conservadores à das oito.” Entretanto, insistiu com tanto afinco, suplicou de tal modo, quebrantou de tal forma os seus princípios de dignidade que com um pouco daqui e um pouco de lá, deslizando por todas as partes com uma diligência sigilosa e uma perseverança desapiedada, conseguiu reunir em oito meses mais dinheiro do que Úrsula tinha enterrado. Então, visitou o doente Coronel Gerineldo Márquez para que o ajudasse a promover a guerra total. Em certo momento, o Coronel Gerineldo Márquez tinha sido na verdade o único que poderia movimentar, mesmo da sua cadeira de balanço de paralítico, os mofados fios da rebelião. Depois do armistício de Neerlândia, enquanto o Coronel Aureliano Buendía se refugiava no exílio dos seus peixinhos de ouro, ele manteve contato com os oficiais rebeldes que lhe haviam sido fiéis até a derrota. Fez com eles a guerra triste da humilhação cotidiana, das súplicas e dos memorandos, do volte amanhã, do está quase, do estamos estudando o seu caso com a devida atenção; a guerra perdida sem salvação contra os mui atenciosos e leais servidores que deviam assinar e não assinaram nunca as pensões vitalícias. A outra guerra, a sangrenta de vinte anos, não lhes causara tantos estragos quanto a guerra corrosiva do eterno adiamento. O próprio Coronel Gerineldo Márquez, que escapara de três atentados, sobrevivera a cinco ferimentos e saíra ileso de incontáveis batalhas, sucumbiu ao assédio atroz da espera e afundou na derrota miserável da velhice, pensando em Amaranta entre os losangos de luz de uma casa emprestada. Os últimos veteranos de quem se teve notícia apareceram retratados num jornal, com a cara levantada de indignidade, junto a um anônimo Presidente da República que os presenteou com uns botões com a sua efígie, para que os usassem na lapela, e lhes restituiu uma bandeira suja de sangue e de pólvora, para que a pusessem sobre os seus ataúdes. Os outros, os mais dignos, ainda esperavam uma carta na penumbra da caridade pública, morrendo de fome, sobrevivendo de raiva, apodrecendo de velhos na refinada merda da glória. De modo que quando o Coronel Aureliano Buendía o convidou para promover uma conflagração mortal que arrasasse com todos os vestígios de um regime de corrupção e de escândalos sustentado pelo invasor estrangeiro, o Coronel Gerineldo Márquez não pôde reprimir um estremecimento de compaixão.

— Ai, Aureliano — suspirou — eu já sabia que você estava velho, mas só agora é que percebo que você está muito mais velho do que aparenta.  


continua página 153...
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