Cem Anos de Solidão
Gabriel Garcia Márquez
(10.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
continuando...
As telhas apodrecidas se despedaçaram num estrondo de desastre e o
homem mal conseguiu lançar um grito de terror e fraturou o crânio e
morreu sem agonia no chão de cimento. Os forasteiros que ouviram o
barulho na sala de jantar e se apressaram em levar o cadáver perceberam na
sua pele o sufocante cheiro de Remedios, a bela. Estava tão entranhado no
corpo que as rachaduras do crânio não emanavam sangue e sim um óleo
ambarino impregnado daquele perfume secreto, e então compreenderam
que o cheiro de Remedios, a bela, continuava torturando os homens além da
morte, até a poeira dos ossos. Entretanto, não relacionaram aquele acidente
de horror com os outros dois homens que haviam morrido por Remedios, a
bela. Faltava ainda uma vítima para que os forasteiros e muitos dos antigos
habitantes de Macondo dessem crédito à lenda de que Remedios Buendía
não exalava o sopro de amor mas sim um fluxo mortal. A ocasião de
comprová-lo se apresentou meses depois, numa tarde em que Remedios, a
bela, foi com um grupo de amigas conhecer as novas plantações. Para o povo
de Macondo, era uma distração recente percorrer as úmidas e intermináveis
avenidas ladeadas de bananeiras, onde o silêncio parecia trazido de outra
parte, ainda sem usar, e por isso era tão difícil transmitir a voz. As vezes não
se entendia muito bem o que era dito a meio metro de distância e que
entretanto se tornava perfeitamente compreensível no outro extremo da
plantação. Para as moças de Macondo aquela brincadeira nova era motivo de
risadas e sobressaltos, de sustos e zombarias, e de noite se falava do passeio
como de uma experiência de sonho. Era tal o prestígio daquele silêncio que
Úrsula não teve coragem de privar Remedios, a bela, da diversão e lhe
permitiu ir numa tarde, desde que pusesse um chapéu e uma roupa
adequada. Assim que o grupo de amigas entrou na plantação o ar se
impregnou de uma fragrância mortal. Os homens que trabalhavam nas valas
se sentiram possuídos por uma estranha fascinação, ameaçados por um
perigo invisível, e muitos sucumbiram à terrível vontade de chorar.
Remedios, a bela, e suas espantadas amigas conseguiram se refugiar numa
casa próxima quando estavam já para serem assaltadas por um tropel de
machos ferozes. Pouco depois foram resgatadas pelos quatro Aurelianos,
cujas cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marca
de casta, selo de invulnerabilidade. Remedios, a bela, não contou a ninguém
que um dos homens, aproveitando o tumulto, conseguira agredi-la no ventre
com uma mão que mais parecia uma garra de águia aferrada aos bordos de
um precipício. Ela enfrentara o agressor numa espécie de deslumbramento
instantâneo e vira os olhos desconsolados que ficaram impressos no seu
coração como uma brasa de compaixão. Nessa noite, o homem se gabou da
sua audácia e se vangloriou da sua sorte na Rua dos Turcos, minutos antes
de que o coice de um cavalo lhe arrebentasse o peito e uma multidão de
forasteiros o visse agonizar no meio da rua, sufocado em vômitos de sangue.
A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irrefutáveis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Úrsula não voltou a se ocupar dela. Em outra época, quando ainda não renunciara ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exigentes do que você pensa”, dizia-lhe enigmaticamente. “É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesquinharias, além daquilo que você pensa.” No fundo se enganava a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a paixão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Arcadio e a sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bisneta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente serenidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mulher útil. Desde as tardes esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe, perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou para que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provocante que muito em breve haveria um homem intrigado o bastante para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Remedios, a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pensou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamentou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão longa. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continuar acreditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demonstrava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deusdará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.
— Você está se sentindo mal? — perguntou a ela.
A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irrefutáveis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Úrsula não voltou a se ocupar dela. Em outra época, quando ainda não renunciara ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exigentes do que você pensa”, dizia-lhe enigmaticamente. “É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesquinharias, além daquilo que você pensa.” No fundo se enganava a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a paixão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Arcadio e a sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bisneta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente serenidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mulher útil. Desde as tardes esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe, perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou para que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provocante que muito em breve haveria um homem intrigado o bastante para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Remedios, a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pensou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamentou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão longa. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continuar acreditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demonstrava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deusdará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.
— Você está se sentindo mal? — perguntou a ela.
Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um
sorriso de piedade.
— Pelo contrário — disse — nunca me senti tão bem.
Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado
vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua
amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas
anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no momento em que
Remedios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única
que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável
e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe
dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que
subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias
e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se
perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos
pássaros da memória a podiam alcançar. Os forasteiros, evidentemente,
pensaram que Remedios, a bela, sucumbira por fim ao seu irrevogável
destino de abelha-mestra e que a sua família tentava salvar a honra com a
mentira da levitação. Fernanda, roída de inveja, acabou por aceitar o
prodígio e durante muito tempo continuou rogando a Deus para que lhe
devolvesse os lençóis. A maioria acreditou no milagre e até se acenderam
velas e se rezaram novenas. Talvez não se tivesse voltado a falar de outra
coisa por muito tempo, se o bárbaro extermínio dos Aurelianos não tivesse
substituído o assombro pelo horror. Embora nunca o identificasse como um
presságio, o Coronel Aureliano Buendía previa de certo modo o trágico fim
dos seus filhos. Quando Aureliano Serrador e Aureliano Arcaya, os dois que
chegaram no tumulto, manifestaram a vontade de ficar em Macondo, o pai
tentou dissuadi-los. Não entendia o que vinham fazer num povoado que da
noite para o dia se transformara num lugar de perigo. Mas Aureliano
Centeno e Aureliano Triste, apoiados por Aureliano Segundo, ofereceram
trabalho para eles nas suas empresas. O Coronel Aureliano Buendía tinha
motivos ainda muito confusos para não patrocinar aquela determinação.
Desde que vira o Sr. Brown no primeiro automóvel que chegara a Macondo
— um conversível alaranjado com uma buzina que espantava os cães com os
seus latidos — o velho guerreiro se indignou com as mesuras servis do povo e
percebeu que alguma coisa mudara na índole dos homens desde o tempo
em que abandonavam mulheres e filhos e jogavam uma espingarda ao ombro
para ir à guerra. As autoridades locais, depois do armistício de Neerlândia,
eram alcaides sem iniciativa, juízes decorativos, escolhidos entre os pacíficos
e cansados conservadores de Macondo. “Este é um regime de pobres-diabos”,
comentava o Coronel Aureliano Buendía quando via passar os guardas
descalços, armados de cassetetes de madeira. “Fizemos tantas guerras, e
tudo para que não nos pintassem a casa de azul.” Quando chegou a
companhia bananeira, entretanto, os funcionários locais foram substituídos
por forasteiros autoritários que o Sr. Brown levou para viver no galinheiro
eletrificado, para que gozassem, conforme explicou, da dignidade que
correspondia ao seu cargo e não sofressem o calor e os mosquitos e as
incontáveis incomodidades e privações do povo. Os antigos guardas foram
substituídos por sicários armados de facões. Fechado na oficina, o Coronel
Aureliano Buendía pensava nestas mudanças e, pela primeira vez nos seus
calados anos de solidão, atormentou-o a certeza definitiva de que havia sido
um erro não prosseguir a guerra até as suas últimas consequências. Por esses
dias, um irmão do esquecido Coronel Magnífico Visbal levou o neto de sete
anos para tomar um refresco nas carrocinhas da praça e, porque o menino
esbarrou por acidente num cabo de polícia e lhe derramou o refresco no
uniforme, o bárbaro fez dele picadinho com o facão e decapitou de um só
golpe o avô, que tentara enfrentá-lo. Todo o povo viu o decapitado passar
quando um grupo de homens o carregava para casa, a cabeça arrastada por
uma mulher que a levava pendurada pelos cabelos e o saco ensanguentado
onde meteram os pedaços do menino.
Para o Coronel Aureliano Buendía foi o máximo da expiação.
Encontrou-se de repente padecendo da mesma indignação que sentira na
juventude, diante do cadáver da mulher que fora morta a pauladas porque
tinha sido mordida por um cão raivoso. Olhou para os grupos de curiosos que
estavam na frente da casa e, com a sua antiga voz trovejante, restaurada por
um profundo desprezo por ele mesmo, jogou-lhes em cima o peso do ódio
que já não podia mais suportar no coração.
— Um dia destes — gritou — vou armar os meus rapazes para acabar
com estes ianques de merda!
Ao correr da semana, em diferentes lugares do litoral, os seus
dezessete filhos foram caçados como coelhos por criminosos invisíveis que
apontaram bem no centro das suas cruzes de cinza. Aureliano Triste saía da
casa de sua mãe, às sete da noite, quando um disparo de fuzil surgido da
escuridão perfurou-lhe a testa. Aureliano Centeno foi encontrado na rede
que costumava armar na fábrica com um furador de gelo cravado até o cabo
entre as sobrancelhas. Aureliano Serrador tinha deixado a namorada na casa
dos pais, depois de levá-la ao cinema, e voltava pela iluminada Rua dos
Turcos quando alguém que nunca foi identificado na multidão disparou um
tiro de revólver que o derrubou dentro de um caldeirão de gordura
fervendo. Poucos minutos depois, alguém bateu na porta do quarto onde
Aureliano Arcaya estava fechado com uma mulher e gritou para ele: “Anda
logo, que estão matando os teus irmãos.” A mulher que estava com ele
contou depois que Aureliano Arcaya pulou da cama e abriu a porta e foi
esperado com uma descarga de Mauser que lhe despedaçou o crânio.
Naquela noite de matança, enquanto a casa se preparava para velar os
quatro cadáveres, Fernanda percorreu o povoado como uma louca
procurando Aureliano Segundo, que Petra Cotes trancara num armário,
pensando que a missão de extermínio incluía todos os que tivessem o nome
do coronel. Não o deixou sair até o quarto dia, quando os telegramas
recebidos de lugares diferentes do litoral permitiram compreender que a
sanha do inimigo invisível estava dirigida apenas contra os irmãos marcados
com cruzes de cinza. Amaranta procurou a caderneta de contas onde havia
anotado os dados dos sobrinhos, e, à medida que chegavam os telegramas, ia
riscando os nomes, até que só ficou o do mais velho. Lembravam-se muito
bem dele, por causa do contraste da sua pele escura com os grandes olhos
verdes. Chamava-se Aureliano Amador, era carpinteiro e vivia numa aldeia
perdida nas encostas da serra. Depois de esperar duas semanas pelo
telegrama da sua morte, Aureliano Segundo mandou um emissário para
preveni-lo, pensando que ignorasse a ameaça que pesava sobre ele. O
emissário voltou com a notícia de que Aureliano Amador estava salvo. Na
noite do extermínio, dois homens tinham ido procurá-lo em sua casa e
tinham descarregado os seus revólveres contra ele, mas não lhe haviam
acertado a cruz de cinza. Aureliano Amador conseguira pular a cerca do
quintal e se perdera nos labirintos da serra, que conhecia como a palma da
mão, graças à amizade dos índios com quem comerciava madeira. Não se
voltara a saber dele.
Foram dias negros para o Coronel Aureliano Buendía.
O Presidente da República endereçou-lhe um telegrama de pêsames
no qual prometia urna investigação exaustiva e rendia homenagem aos
mortos. Por ordem sua, o alcaide se apresentou no enterro com quatro coroas
fúnebres que pretendeu colocar sobre os ataúdes, mas o coronel o pôs na
rua. Depois do enterro, redigiu e levou pessoalmente um telegrama violento
para o Presidente da República, que o telegrafista se negou a transmitir.
Então, enriqueceu-o com expressões de singular agressividade, meteu-o
num envelope e o pôs no correio. Como lhe ocorrera com a morte da esposa,
como tantas vezes lhe ocorrera durante a guerra com a morte dos seus
melhores amigos, não experimentava um sentimento de pesar, mas uma
raiva cega e sem direção, uma extenuante impotência. Chegou até a
denunciar a cumplicidade do Padre Antonio Isabel, por ter marcado seus
filhos com cinza indelével, para que fossem identificados pelos inimigos. O
decrépito sacerdote, que já não alinhava muito bem as ideias e começava a
espantar os paroquianos com as disparatadas interpretações que tentava no
púlpito, apareceu uma tarde na casa com a caneca onde preparava as
cinzas da quarta-feira e tentou ungir com elas toda a família, para
demonstrar que saíam com água. Mas o terror da desgraça tinha calado tão
fundo que nem a própria Fernanda se prestou à experiência e nunca mais
se viu um Buendía ajoelhado junto ao altar na quarta-feira de cinzas.
Durante muito tempo o Coronel Aureliano Buendía não conseguiu
recobrar a serenidade. Abandonou a fabricação de peixinhos, comia a duras
penas e andava como um sonâmbulo por toda a casa, arrastando a manta e
mastigando uma cólera surda. Ao fim de três meses, tinha o cabelo grisalho, o
antigo bigode de pontas engomadas gotejando sobre os lábios sem cor, mas
em compensação os seus olhos eram outra vez aquelas duas brasas que
haviam assustado aos que o viram nascer e que em outros tempos faziam as
cadeiras girarem só de olhar para elas. Na fúria do seu tormento tentava
inutilmente provocar os presságios que haviam guiado a sua juventude pelos
caminhos do perigo até o desolado ermo da glória. Estava perdido,
extraviado numa casa alheia, onde já nada nem ninguém lhe motivava o
menor vestígio de afeto. Uma vez abriu o quarto de Melquíades, procurando
os rastos de um passado anterior à guerra e só encontrou os escombros, o lixo,
os montes de porcaria acumulados por tantos anos de abandono. Nas capas
dos livros que ninguém voltara a ler, nos velhos pergaminhos macerados pela
umidade, prosperara uma flora lívida, e no ar que havia sido o mais puro e
luminoso da casa flutuava um insuportável cheiro de lembranças podres.
Certa manhã, encontrou Úrsula chorando debaixo do castanheiro, nos
joelhos do marido morto. O Coronel Aureliano Buendía era o único habitante
da casa que não continuava a ver o potente ancião angustiado por meio
século de intempérie.
“Cumprimente o seu pai”, disse-lhe Úrsula. Deteve-se um momento
diante do castanheiro e uma vez mais comprovou que aquele espaço vazio
também não lhe inspirava nenhum afeto.
— O que é que ele diz? — perguntou.
— Está muito triste — Úrsula respondeu — porque acha que você vai
morrer.
— Diga a ele — sorriu o coronel — que não se morre quando se deve,
mas quando se pode.
O presságio do pai morto removeu o último ressaibo de soberba que
lhe restava no coração, mas ele o confundiu com um repentino sopro de
força. Foi por isso que se dirigiu a Úrsula, para que lhe revelasse em que lugar
do quintal estavam enterradas as moedas de ouro que tinham encontrado
dentro do São José de gesso. “Você nunca vai saber”, disse ela com uma
firmeza inspirada num velho castigo. “Um dia”, acrescentou, “há de
aparecer o dono dessa fortuna e só ele poderá desenterrá-la.” Ninguém sabia
por que um homem que sempre fora tão desprendido tinha começado a
cobiçar o dinheiro com semelhante ansiedade, e não as modestas quantias
que lhe haveriam bastado para resolver uma emergência, mas uma fortuna
de grandezas desatinadas cuja simples menção deixou Aureliano Segundo
perdido num mar de assombro. Os velhos companheiros de partido a quem
acudiu em demanda de ajuda se esconderam para não recebê-lo. Foi por
essa época que o ouviram dizer: “A única diferença atual entre liberais e
conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conservadores à das
oito.” Entretanto, insistiu com tanto afinco, suplicou de tal modo,
quebrantou de tal forma os seus princípios de dignidade que com um pouco
daqui e um pouco de lá, deslizando por todas as partes com uma diligência
sigilosa e uma perseverança desapiedada, conseguiu reunir em oito meses
mais dinheiro do que Úrsula tinha enterrado. Então, visitou o doente
Coronel Gerineldo Márquez para que o ajudasse a promover a guerra total.
Em certo momento, o Coronel Gerineldo Márquez tinha sido na verdade o
único que poderia movimentar, mesmo da sua cadeira de balanço de
paralítico, os mofados fios da rebelião. Depois do armistício de Neerlândia,
enquanto o Coronel Aureliano Buendía se refugiava no exílio dos seus
peixinhos de ouro, ele manteve contato com os oficiais rebeldes que lhe
haviam sido fiéis até a derrota. Fez com eles a guerra triste da humilhação
cotidiana, das súplicas e dos memorandos, do volte amanhã, do está quase,
do estamos estudando o seu caso com a devida atenção; a guerra perdida
sem salvação contra os mui atenciosos e leais servidores que deviam assinar e
não assinaram nunca as pensões vitalícias. A outra guerra, a sangrenta de
vinte anos, não lhes causara tantos estragos quanto a guerra corrosiva do
eterno adiamento. O próprio Coronel Gerineldo Márquez, que escapara de
três atentados, sobrevivera a cinco ferimentos e saíra ileso de incontáveis
batalhas, sucumbiu ao assédio atroz da espera e afundou na derrota
miserável da velhice, pensando em Amaranta entre os losangos de luz de
uma casa emprestada. Os últimos veteranos de quem se teve notícia
apareceram retratados num jornal, com a cara levantada de indignidade,
junto a um anônimo Presidente da República que os presenteou com uns
botões com a sua efígie, para que os usassem na lapela, e lhes restituiu uma
bandeira suja de sangue e de pólvora, para que a pusessem sobre os seus
ataúdes. Os outros, os mais dignos, ainda esperavam uma carta na
penumbra da caridade pública, morrendo de fome, sobrevivendo de raiva,
apodrecendo de velhos na refinada merda da glória. De modo que quando o
Coronel Aureliano Buendía o convidou para promover uma conflagração
mortal que arrasasse com todos os vestígios de um regime de corrupção e de
escândalos sustentado pelo invasor estrangeiro, o Coronel Gerineldo
Márquez não pôde reprimir um estremecimento de compaixão.
— Ai, Aureliano — suspirou — eu já sabia que você estava velho, mas
só agora é que percebo que você está muito mais velho do que aparenta.
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