sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Ulisses - Parte 1 (3a): Inelutável modalidade do visível

Ulisses

James Joyce

Parte 1

3

Inelutável modalidade do visível: ao menos isso se não mais, pensei através dos meus olhos. Assinatura de todas as coisas que estou aqui para ler, ovas-do-mar e destroços-do-mar, a maré se aproximando, a bota enferrujada. Verdemeleca, azulprata, ferrugem: sinais coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: em corpos. Então ele tinha consciência deles corpos antes de ter deles coloridos. Como? Batendo com a sua cachola neles, lógico. Vá devagar. Calvo ele era e um milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se a gente pode pôr os cinco dedos através dele é um portão, se não uma porta. Feche os olhos e veja.

Stephen fechou seus olhos para ouvir suas botas esmagarem os destroços e conchas estalantes. Como quer que seja você está andando através disso. Eu estou, um passo largo de cada vez. Um muito curto espaço de tempo através de muito curtos tempos de espaço. Cinco, seis: o Nacheinander. Exatamente: e isso é a modalidade inelutável do audível. Abra seus olhos. Não. Meu Jesus! Se eu caísse sobre um penhasco que se projeta acima de sua base, caísse inelutavelmente através do Nebeneinander! Eu estou me saindo muito bem no escuro. Minha espada de freixo pende do meu lado. Bata com ela: eles batem. Meus dois pés nas botas dele estão no final das pernas dele, nebeneinander. Parece consistente: feito pelo malhete de Los demiurgos. Estarei eu caminhando para a eternidade ao longo da praia de Sandymount? Esmaga, estala, crique, craque. Dinheiro do mar bravio. O professor Deasy sabe tudo.

Não vens então a Sandymount, 
Madalena a égua?

Tem início o ritmo, está vendo. Eu ouço. Um tetrâmetro acataléctico de iambos marchando. Não, a galope: dalena a égua. 

Abra seus olhos agora. Vou abrir. Um momento. Será que tudo sumiu desde então? E se eu abrir e estiver para sempre na escuridão adiáfana? Basta! Vou ver se posso ver. 

Veja agora. Ali o tempo todo sem você: e sempre estará, por todos os séculos.

Elas desceram prudentemente os degraus do Leahy’s Terrace, Frauenzimmer: e debilmente desceram a praia inclinada, com seus pés achatados afundando na areia entupida de resíduos depositados pela água. Como eu, como Algy, indo de encontro a nossa mãe poderosa. A número um balançava pesadamente sua sacola de parteira, a sombrinha da outra fincada na areia. Saídas de seu quarteirão Liberties para sua atividade diária. A Sra. Florence MacCabe, viúva do falecido Patk MacCabe, perda profundamente lamentada, de Bride Street. Por uma de sua confraria fui arrastado aos gritos para a vida. Criação do nada. O que é que ela tem na sacola? Um feto prematuro arrastando consigo o cordão umbilical, silenciado numa lã avermelhada. Os cordões de todos se ligam aos anteriores, como um cabo de fio entrelaçado de toda carne. Eis por que os monges místicos. Vocês serão como os deuses? Olhe para o seu omphalos. Alô! Aqui é o Kinch. Ligue-me com Edenville. Aleph, Alpha: zero, zero, um. 

Esposa e companheira de Adam Kadmon: Heva, Eva nua. Ela não tinha umbigo. Olhe. Ventre sem defeito, tornando-se bojudo e grande, um escudo de velino retesado, não, um monte de trigo branco, precioso e imortal, durando de todo o sempre para todo o sempre. Ventre de pecado.

Concebido na escuridão do pecado eu também fui, feito não gerado. Por eles, o homem com a minha voz e os meus olhos e uma mulherfantasma com cinzas no seu sopro. Eles se abraçaram e se separaram, fizeram a vontade do acoplador. Desde antes dos tempos Ele me quis e agora não pode me querer fora daqui ou jamais existente. Uma lex eterna permanece à volta Dele. É essa então a substância divina pela qual Pai e Filho são consubstanciais? Onde está o querido e pobre Ario para tentar conclusões? Lutando toda a sua vida com o contransmagnificaejudeubanguebanguelismo. Heresiarca azarado! Numa privada grega ele deu seu último suspiro: eutanásia. Com uma mitra ornada de contas e com um báculo, instalado em seu trono, viúvo de um bispado viúvo, com o omophorion empertigado, com o traseiro coalhado.

Brisas saltaram à volta dele, brisas animadas e penetrantes. Elas estão vindo, as ondas. Os cavalos-marinhos de-crina-branca, mascando os freios sob o vento auspicioso, os corcéis de Mananaan.

Eu não posso esquecer a carta dele para os jornais. E depois? O Ship, meio-dia e meia. A propósito tenha cuidado com aquele dinheiro como um bom rapazinho imbecil. É, eu devo. 

O passo dele afrouxou. E agora. Será que eu vou para a casa de tia Sara ou não? A voz de meu pai consubstancial. Você por acaso viu seu irmão artista Stephen ultimamente? Não? Tem certeza de que ele não está com a tia dele Sally? Será que ele não podia voar um pouco mais alto do que isso, hein? Ora ora ora, Stephen, como está o tio Si? Ó, Deus lacrimejante, as coisas com as quais eu casei! Os garotos em cima no palheiro. O contadorzinho embriagado e seu irmão o tocador de corneta. Gondoleiros altamente respeitáveis! E o vesgo do Walter nada menos que senhoreando seu pai! Senhor pra cá senhor pra lá. Sim, senhor. Não, senhor. Jesus chorou: e não era pra menos, por Cristo!

Eu toco a sineta asmática da casinha deles de janelas fechadas: e espero. Eles me tomam por um cobrador e espreitam de uma posição vantajosa de observação.

– É Stephen, senhor. 

– Deixe-o entrar. Deixe Stephen entrar. 

Um ferrolho é retirado e Walter me dá as boas-vindas.

– Nós pensamos que você fosse outra pessoa. 

Em seu amplo leito titio Richie, cercado de travesseiros e cobertor, estende por cima do montículo de seus joelhos um antebraço vigoroso. Tronco limpo. Ele lavou a parte superior. 

– Salve, sobrinho. Sente-se e vá passear.

Ele põe de lado a mesinha portátil em que ele rascunha as notas de despesas para os olhos de mestre Goff e mestre Shapland Tandy, anotando os acordos e sindicâncias comuns e uma intimação Duces Tecum. Uma moldura de carvalho fossilizado acima de sua cabeça calva: Resquiescat de Wilde. O zunido enganador de seu assobio traz Walter de volta.

– Pois não, senhor? 

– Uma cerveja para Richie e Stephen, peça à mãe. Onde ela está? 

– Dando banho em Crissie, senhor. 

A camaradinha de cama do papai. Torrão de amor

– Não, tio Richie... 

– Me chame de Richie. Pro inferno com sua água mineral. Isso deprime. Whusky! 

– Tio Richie, realmente... 

– Sente-se ou então pelo velho Harry eu garanto que derrubo você.

Em vão Walter relanceia os olhos à procura de uma cadeira. 

– Ele não tem onde sentar, senhor. 

– Ele não tem onde pôr o seu traseiro, seu bobo. Traga nossa cadeira Chippendale. Você quer comer alguma coisa? Nada dos seus malditos ares de afetação aqui. Que tal uma boa fatia fina de toucinho com arenque? Tem certeza? Tanto melhor. Nós não temos nada em casa a não ser comprimidos para dor nas costas. 

All’erta!

Ele assobia compassos da aria di sortita de Ferrando. A ária mais notável de toda a ópera. Ouça.

Seu assobio melodioso soa novamente, delicadamente matizado, com elevações súbitas da melodia, os punhos tamborilando fortemente nos joelhos acolchoados. 

Este vento está mais suave. 

Linhagens decadentes, a minha, a dele e todas. Você disse à pequena nobreza de Clongowes que tinha um tio juiz e um tio general do exército. Sai dessa, Stephen. A beleza não está aí. Nem na baía estagnante da biblioteca de Marsh onde você lia as profecias evanescentes de Joaquim Abbas. Para quem elas? Para as centenas de cabeças da ralé perto do pátio da catedral. Aquele que odiava sua espécie fugiu dela para o bosque da loucura, sua crina espumando na lua, seus olhos estrelas. Houyhnhnm, narinascavalares. Os rostos ovais eqüinos, Temple, Buck Mulligan, Foxy Campbell, mandíbulaslanternosas. Pai Abbas, deão furioso, que ofensa pôs fogo em seus cérebros? Paf! Descende, calve, ut ne amplius decalveris. Uma guirlanda de cabelos grisalhos em sua cabeça anatematizada veja ele eu nos agarrando com as mãos ao último degrau do altar (descende!), segurando um ostensório, com olhos de basilisco. Desça, seu careca! Um coro devolve ameaça e eco, acompanhando em volta dos chifres laterais do altar, o latim escarnecido dos corpulentos padres de fachada a se mover em suas alvas, tonsurados e untados e castrados, gordos com a gordura dos rins e do trigo. 

E no mesmo instante talvez um padre a esteja elevando na esquina. Drindrim! E duas esquinas mais adiante a guardando no cibório. Dringuedrim! E numa capela da Virgem um outro tomando a eucaristia só para si. Drindrim! Pra baixo, pra cima, pra frente, pra trás. Dan Occam pensou nisso, o doutor invencível. Numa manhã nevoenta inglesa o diabinho da hipóstase comichou seu cérebro. Ao descer com a hóstia e se ajoelhar ele ouviu entrelaçar-se com sua segunda sineta a primeira sineta no altar lateral (ele está erguendo o seu) e, se levantando, ouviu (agora eu estou erguendo) as duas sinetas (ele está se ajoelhando) soarem em ditongo. 

Primo Stephen, você nunca será um santo. Ilha dos santos. Você era terrivelmente santo, não era? Você rezava à Santíssima Virgem para que você pudesse não ter um nariz vermelho. Você rezava ao demônio na Serpentine Avenue para que a viúva roliça em frente levantasse sua roupa ainda mais da rua molhada. O si, certo! Venda a sua alma por isso, vá, trapos pintados em volta de uma squaw. Mais diga-me, mais ainda! Sozinho no alto do trem de Howth gritando para a chuva: Mulheres nuas! Mulheres nuas! O que me diz disso, hein?

O que me diz de quê? Para que mais elas foram inventadas?

Lendo duas páginas de cada vez dos sete livros toda noite, hein? Eu era jovem. Você se inclinava para si mesmo no espelho, dando um passo à frente para aplaudir freneticamente, rosto surpreendente. Hurra para o maldito idiota! Hurá! Ninguém viu: não conte pra ninguém. Livros que você ia escrever com letras por títulos. Você leu o F dele? Li sim, mas eu prefiro o Q. É sim, mas o W é maravilhoso. É isso aí, o W. Lembra as epifanias escritas em folhas verdes ovais, profundamente profundas, cópias a serem mandadas se você morresse para todas as grandes bibliotecas do mundo, inclusive Alexandria? Alguém deveria lê-las ali milhares de anos depois, um mahamanvantara. Como Pico della Mirandola. Ai, muito parecido com uma baleia. Quando alguém lê estas páginas estranhas de alguém morto há muito tempo alguém sente que alguém está de acordo com alguém que certa vez...

A areia granulosa fugira de debaixo dos seus pés. Suas botas pisaram novamente o mastro úmido e estalejante, lingueirões, cascalhos chiantes, aquilo que vem bater nos cascalhos incontáveis, casco peneirado de cracas. Armada perdida. Areias encharcadas insalubres aguardavam para sugar suas solas andarilhas, exalando para cima um bafo imundo de esgoto, um bolsão de algas marinhas ardia na fosforescência do mar sob um monturo de cinzas de homem. Ele as costeou, caminhando cautelosamente. Uma garrafa de cerveja se erguia, atolada até a cintura, na massa de areia pastosa. Uma sentinela: ilha de sede pavorosa. Arcos partidos na praia; na terra um labirinto escuro e engenhoso de redes; bem mais longe portas dos fundos das casas rabiscadas de giz e na parte mais alta da praia um varal com duas camisas crucificadas. Ringsend: barracas de timoneiros morenos e capitães da marinha mercante. Conchas humanas.


continua na página 48...
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Ulisses - Parte 1 (3a): Inelutável modalidade do visível
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

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