sexta-feira, 18 de agosto de 2023

O Apanhador no Campo de Centeio - 7: Do nosso quarto

O Apanhador no Campo de Centeio

J.D. Salinger

7

Do nosso quarto chegava um fiapo de luz, através das cortinas do chuveiro, o bastante para ver o Ackley deitado na cama. Podia jurar que ele estava bem acordado.  

- Ackley, tá acordado? 

- Tou. 

Estava um bocado escuro. Tropecei num sapato e por pouco não dei de cara no chão. Ackley ergueu-se na cama, apoiado num braço. Estava com a cara toda coberta de um troço branco, remédio para as espinhas. No escuro, parecia até um fantasma.

- O que é que você está fazendo aí? - perguntei. 

- Pomba, que estória é essa de que é que eu estou fazendo? Estava tentando dormir, quando vocês começaram aquele barulhão todo. Afinal, por quê que vocês brigaram? 

- Onde é a luz?  

Já tinha passado a mão pela parede toda e não conseguia encontrar o interruptor.

- Pra quê que você quer acender a luz? Aí, bem junto da tua mão.  

Achei finalmente o interruptor e acendi a luz. Ackley cobriu os olhos com a mão, protegendo-os contra a claridade.  

- Puxa! Quê que houve contigo? - ele perguntou. Estava se referindo ao sangue e tudo. 

- Saí no braço com o Stradlater. 

Aí sentei no chão. Eles nunca tinham nem uma cadeira no quarto, não sei que diabo faziam com elas. 

- Escuta, que tal uma partidinha de canastra? - perguntei. Ele era tarado por canastra. 

- Pomba, você ainda está sangrando. É melhor pôr um remédio aí nisso. 

- Isso passa. Escuta, você topa uma partidinha de canastra ou não topa? 

- Que canastra, que nada. Sabe que horas são, por acaso? 

- Cedo. Só umas onze ou onze e meia. 

- Só umas onze! Escuta aqui, tenho que me levantar cedo amanhã para ir à Missa. Vocês dois começam a berrar e a se arrebentar no meio da porcaria da... Afinal, por que foi a briga? 

- É uma longa estória, Ackley. Não quero te aporrinhar com o troço todo. Estou pensando no teu próprio bem-estar. 

Nunca conversei com ele sobre a minha vida íntima. Primeiro, porque o Ackley era ainda mais burro que o Stradlater. Perto dele o Stradlater era um verdadeiro gênio. 

- Escuta aqui, você se incomoda se eu dormir hoje na cama do Ely? Ele só volta amanhã de noite, não é?

Sabia muito bem que o Ely não ia voltar, porque costumava passar quase todo fim de semana em casa. 

- Sei lá quando é que ele vai voltar - respondeu o Ackley. 

Puxa, essa me encheu. 

- Como é que você não sabe quando que o Ely vai voltar? Ele nunca volta antes de domingo à noite, volta? 

- Tá bem, eu sei, mas não é por isso que vou deixar todo mundo dormir na droga da cama dele.  

Com essa não me aguentei. Me estiquei de onde estava, sentado no chão, e dei um tapinha na porcaria do ombro dele. 

- Você é um príncipe, garoto. Sabia disso? Um príncipe. 

- Não, é sério... Não posso dizer a todo mundo para dormir... 

- Você é um verdadeiro príncipe. Bem educado e culto pra burro, garoto. 

E era mesmo. 

- Será que você tem um cigarro aí, por acaso? Diz que não, ou eu caio duro aqui mesmo. 

- Pra falar a verdade, não tenho. Escuta, por que diabo vocês brigaram, hem? 

Não respondi. Só fiz me levantar, ir até a janela e ficar olhando para fora. De repente, me senti muito só. Quase tive vontade de morrer. 

- Mas por que diabo vocês brigaram afinal? - o Ackley perguntou pela milionésima vez. Já estava ficando chato com essa pergunta. 

- Por tua causa - acabei dizendo. 

- Por minha causa? No duro? 

- É. Estava defendendo a porcaria da tua honra. O Stradlater disse que você tem um péssimo caráter. Acha que eu podia engolir um troço desses? 

Ackley vibrou. 

- Foi mesmo? Sério? Ele disse isso, é?

Falei que era brincadeira, e fui me deitar na cama do Ely. Puxa, eu me sentia podre. Estava me sentindo tremendamente só. 

- Como fede este quarto - falei. Daqui de onde estou sinto o cheiro das tuas meias. Você nunca manda tua roupa para a lavanderia? 

- Os incomodados que se mudem - respondeu-me. Que sujeito espirituoso! 

- Que tal apagar a droga da luz, hem? - ele continuou. 

Mas não apaguei logo. Fiquei ali espichado na cama do Ely, pensando na Jane e tudo. Ficava alucinado só de pensar nela e no Stradlater parados em algum canto escuro, no carro daquele bundudo do Ed Banky. Cada vez que pensava nisso tinha vontade de saltar pela janela. O negócio é que ninguém conhece o Stradlater como eu conheço. A maioria dos caras no Pencey só fazia falar o tempo todo sobre relações sexuais com as garotas - como o Ackley, por exemplo - mas o Stradlater era pra valer. Eu conhecia pessoalmente pelo menos duas garotas com quem ele tinha andado. Essa é que é a verdade.

- Me conta a história fascinante da tua vida, meu caro Ackley. 

- Que tal apagar a droga da luz? Tenho que acordar cedo para ir à Missa.

Levantei e apaguei a luz, para lhe dar um pouco de felicidade. Tornei a me deitar na cama do Ely. 

- Que é que você vai fazer... dormir na cama do Ely? - o Ackley me perguntou. Puxa, ele devia ser eleito anfitrião do ano. 

- Talvez sim, talvez não. Não se preocupe com isso. 

- Não estou preocupado com coisa nenhuma. Só que ia ser chato pra burro se o Ely entrasse de repente e desse com um sujeito... 

- Calminha. Não vou dormir aqui. Não iria abusar da droga da tua hospitalidade. 

Dois minutos depois ele já estava roncando como um louco. Fui ficando por ali, espichado no escuro, procurando não pensar na Jane e no Stradlater dentro da porcaria do carro do Ed Banky. Mas era quase impossível. O problema é que eu conhecia a técnica daquele sujeito. Uma vez nós saímos com duas garotas, no carro do Ed Banky, ele no banco de trás com a pequena dele, e eu na frente com a minha. Puxa, o cara tinha uma classe bárbara. Ele começou a cantar a menina, com uma vozinha mansa e sincera pra burro, como se, além de um sujeito simpático, fosse também bom e sincero. Quase vomitei, só de ouvir. A garota só fazia dizer: "Não, por favor. Não faz isso não, por favor". Mas o Stradlater continuava a passar a cantada com aquela -voz mais sincera do que a do Abraão Lincoln, e no fim houve um silêncio horrível no banco de trás. Foi realmente embaraçoso. Não acredito que ele tenha feito o serviço na garota naquela noite, mas chegou perto. Perto mesmo.
Ainda estava deitado ali, fazendo força para não pensar, quando escutei o Stradlater voltar do banheiro e entrar no quarto. Dava para ouvir perfeitamente enquanto ele guardava aquela escova e aquele pente imundos e depois abria a janela. O imbecil era tarado por ar puro. Aí, pouco depois, apagou a luz, sem nem ao menos dar uma olhadela para ver onde eu estava. 
Lá fora, a rua estava até deprimente. Não se ouvia nem um carro passando. Fiquei me sentindo tão podre e soninho que me deu até vontade de acordar o Ackley.

- Ackley - chamei, numa espécie de cochicho, para que o Stradlater não me ouvisse através das cortinas do chuveiro. Mas ele não ouviu. 

- Êi, Ackley! 

Nem assim me ouviu. Dormia como uma pedra.

- Êi, Ackley!

Dessa vez ele escutou. 

- Pomba, quê que há contigo? Já estava dormindo, poxa. 

- Escuta, como é que a gente faz pra entrar num convento? - perguntei. Estava começando a estudar a idéia de ser monge. - É preciso ser católico e tudo? 

- Claro que tem que ser católico. Ô seu veado, você me acordou só para fazer essa pergunta idio... 

- Vai, vai dormir, tá. Não vou mesmo entrar pra droga de convento nenhum. Tenho tanta sorte, que ia acabar entrando para um convento cheio da pior espécie de monges. Todos uns sacanas imbecis. Ou só sacanas. 

Quando disse isso, o Ackley sentou na cama como se fosse de mola. 

- Escuta aqui, tou pouco ligando para o que você falar de mim ou seja lá o que for, mas se começar a fazer piadinhas sobre a porcaria da minha religião, aí... 

- Sossega. Ninguém está fazendo piada nenhuma com a porcaria da tua religião. 

Levantei da cama do Ely e andei em direção à porta. Não queria ficar nem mais um minuto naquele ambiente idiota. Mas parei no caminho, segurei a mão do Ackley e dei-lhe um baita dum aperto de mãos fingido. Ele puxou a mão e perguntou:

- Que negócio é esse? 

- Nada. Só queria te agradecer, porque você é um verdadeiro príncipe. Só isso, - falei, com uma voz sincera pra chuchu. - Você é o fino, garoto. Sabia disso? 

- Muito engraçadinho. Qualquer dia desses vão te arrebentar a...

Não perdi tempo ouvindo o resto. Fechei a droga da porta e saí para o corredor. Todo o mundo estava dormindo, tinha saído ou ido passar o fim de semana em casa, e por isso o corredor estava silencioso e deprimente pra burro. Na porta do quarto do Leahy e do Hoffman tinha uma caixa de Kolynos vazia, que fui chutando pelo corredor, com meu chinelo de pelo de carneiro, enquanto caminhava para a escada. 
Estava pensando em dar um pulo lá embaixo para ver o que o Mal Brossard estava fazendo. Mas de repente mudei de ideia. Decidi que ia sumir do Pencey, dar o fora naquela noite mesmo e tudo. Nada de esperar até quarta-feira. Não queria mais ficar zanzando por lá. O troço todo estava me deixando triste e solitário pra burro. Por isso resolvi ir para um hotel em Nova York - um hotelzinho barato e tudo - e ficar flanando até quarta-feira. Aí, na quarta-feira, ia para casa descansado e me sentindo cem por cento. Calculei que, antes de terça ou quarta-feira, meus pais dificilmente receberiam a carta do velho Thurmer, com a notícia de que eu tinha sido chutado. Não queria ir para casa nem nada antes que tivessem recebido a notícia, digerido completamente tudo. Não queria estar por perto na hora em que eles recebessem a carta. Minha mãe fica muito histérica. Mas melhora bastante depois que digere um troço completamente. Além disso, eu estava mesmo precisando de umas feriazinhas. Meus nervos estavam abalados. No duro. 
De qualquer maneira, foi o que resolvi fazer. Por isso, voltei para o quarto e acendi a luz, para arrumar as malas e tudo. Já tinha muita coisa arrumada. O Stradlater nem acordou. Acendi um cigarro e me vesti. Aí, botei tudo nas minhas duas malas. Em dois minutos já estava pronto. Faço minhas malas um bocado depressa.  
Só uma coisa me deprimiu enquanto arrumava as malas. Tive de guardar os patins de gelo, novinhos em folha, que minha mãe tinha mandado uns dias antes. Isso me deprimiu. Imaginei minha mãe entrando na loja e perguntando um milhão de besteirinhas ao vendedor - e cá estava eu levando bomba outra vez. O troço me deixou um bocado chateado. Minha mãe tinha comprado os patins errados - eu havia pedido patins de corrida e ela comprou patins de hóquei - mas fiquei triste de qualquer jeito. Quase todo presente que me dão acaba me deixando triste. 
Depois de arrumar tudo, contei minha grana. Não me lembro exatamente quanto era, mas estava abonado. Minha avó tinha me mandado uma bolada uma semana antes. Minha avó é um bocado mão-aberta. Já está meio caduca - é velha como o diabo - e manda dinheiro pelo meu aniversário umas quatro vezes por ano. De qualquer maneira, embora estivesse com a erva, achei que não havia mal algum em levar um dinheirinho extra. A gente nunca sabe. Por isso, atravessei o corredor e acordei o Frederick Woodruff, o sujeito a quem eu havia emprestado minha máquina de escrever, e perguntei quanto ele dava por ela. Era um cara um bocado rico. Disse que não sabia, e que não estava muito interessado. Mas acabou comprando. A máquina tinha custado uns noventa dólares e ele só me deu vinte por ela. Estava aborrecido porque eu o havia acordado. 
Quando já estava pronto para partir, com as malas e tudo, parei no alto da escada e dei uma última olhada pela droga do corredor. Acho que chorei, nem sei porquê. Pus o chapéu de caça vermelho na cabeça, virei a aba para trás, como gostava, e aí dei um berro, com toda a força:

- Durmam bem, seus imbecis!

Aposto que acordei todos os filhos da mãe daquele andar. Aí tratei de dar o fora. Um cretino qualquer tinha espalhado uma porção de cascas de amendoim nos degraus e por um triz não me arrebentei todo. 


O Apanhador no Campo de Centeio - 7: Do nosso quarto

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