sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Fermina Daza estava na cozinha

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

      Fermina Daza estava na cozinha provando a sopa para o jantar, quando ouviu o grito de horror de Digna Pardo e o alvoroço da criadagem da casa e depois da vizinhança. Atirou a colher de pau e tratou de correr como pôde com o peso invencível da idade, gritando feito uma louca sem saber ainda o que acontecia debaixo da copa da mangueira e o coração lhe estourou em estilhaços quando viu seu homem estirado de costas no lodo, já morto em vida mas resistindo ainda um último minuto à chicotada final da cauda da morte para que ela sua mulher tivesse tempo de chegar. Chegou a reconhecê-la no tumulto através das lágrimas da dor que jamais se repetiria de morrer sem ela, e a olhou pela última vez para todo o sempre com os mais luminosos, mais tristes e mais agradecidos olhos que ela jamais vira no rosto dele em meio século de vida em comum, e ainda conseguiu dizer-lhe com o último alento:

— Só Deus sabe quanto amei você.

     Foi uma morte memorável, e não sem razão. Mal acabados seus estudos de especialização na França, o doutor Juvenal Urbino se tornou conhecido no país por haver conjurado a tempo, com métodos inovadores e drásticos, a última epidemia de cólera morbo que flagelou a província. A anterior, quando ele ainda estava na Europa, causara a morte da quarta parte da população urbana em menos de três meses, incluindo aí seu pai, que foi também um médico muito estimado. Com o prestígio imediato e uma boa contribuição do patrimônio familiar fundou a Sociedade Médica, a primeira e única nas províncias do Caribe durante muitos anos, e foi seu presidente vitalício. Conseguiu a construção do primeiro aqueduto, do primeiro sistema de esgotos, e do mercado público coberto que permitiu o saneamento da podridão que era a baía das Animas. Foi além disso presidente da Academia da Língua e da Academia de História. O patriarca latino de Jerusalém o fez cavaleiro da Ordem do Santo Sepulcro pelos serviços prestados à Igreja, e o governo da França lhe concedeu a Legião de Honra no grau de comendador. Foi animador ativo de todas as congregações religiosas e cívicas existentes na cidade, e em especial da Junta Patriótica, formada por cidadãos influentes sem interesses políticos que pressionavam o governo e o comércio local com iniciativas progressistas demasiado audaciosas para a época. Entre estas, a mais memorável foi o ensaio de um globo aerostático que no voo inaugural levou uma carta até São João da Ciénaga, muito antes de se pensar em correio aéreo como uma possibilidade racional. Também foi sua a ideia do Centro Artístico, que fundou a Escola de Belas-Artes onde ainda funciona, e patrocinou durante muitos anos os Jogos Florais de abril.
     Só ele conseguira o que não tinha parecido impossível durante um século: a restauração do Teatro da Comédia, convertido em rinha e granja de gaios de briga desde os tempos da Colônia. Foi a culminação de uma campanha cívica espetacular, que envolveu todos os setores da cidade sem exceção, numa mobilização multitudinária que muitos consideraram digna de melhor causa. Mesmo assim, o novo Teatro da Comédia se inaugurou quando ainda não tinha cadeiras nem lâmpadas, e os espectadores tinham que levar em que sentar e com que se iluminar nos intervalos. Foi imposta a mesma etiqueta das grandes estreias da Europa, que as damas aproveitavam para exibir seus vestidos longos e seus abrigos de pele na canícula do Caribe, mas foi necessário autorizar também a entrada dos criados para que carregassem as cadeiras e as candeias, e quantas coisas de comer parecessem necessárias para resistir aos programas intermináveis, alguns dos quais se prolongaram até a hora da primeira missa. A temporada se abriu com uma companhia francesa de ópera cuja novidade era uma harpa na orquestra e cuja glória inolvidável era a voz imaculada e o talento dramático de uma soprano turca que cantava descalça e com anéis de pedras preciosas nos dedos dos pés. A partir do primeiro ato mal se enxergava o cenário e os cantores perdiam a voz devido ao fumo de tantas lâmpadas de azeite de coco, mas os cronistas da cidade se encarregaram muito bem de apagar estes inconvenientes miúdos e de exaltar as magnificências. Foi sem dúvida a iniciativa mais contagiosa do doutor Urbino, pois a febre da ópera contaminou até os setores menos informados da cidade, e deu origem a toda uma geração de Isoldas e Otelos, e Aídas e Sigfredos. Não obstante, jamais se chegou aos extremos que o doutor Urbino teria desejado, de ver italianizantes e wagnerianos se enfrentando a bengaladas nos intervalos.
      O doutor Juvenal Urbino jamais aceitou postos oficiais, que lhe ofereceram amiúde e sem condições, e foi crítico encarniçado dos médicos que se valiam do prestígio profissional para escalar posições políticas. Embora sempre o tivessem por liberal, e costumava nas eleições votar nos candidatos desse partido, era mais liberal por tradição que por convicção, e foi talvez o último membro das grandes famílias a se ajoelhar na rua quando passava a carruagem do arcebispo. A si mesmo se definia como um pacifista natural, partidário da reconciliação definitiva de liberais e conservadores para o bem da pátria. E sua conduta pública era tão autônoma que ninguém o contava como seu: os liberais o consideravam um reacionário das cavernas, os conservadores diziam que só lhe faltava ser maçom, e os maçons o repudiavam como um clérigo emboscado a serviço da Santa Sé. Seus críticos menos sangrentos achavam que ele não passava de um aristocrata extasiado com as delícias dos Jogos Florais, enquanto a nação se esvaía no sangue de uma guerra civil interminável.
      Só dois atos seus não pareciam conformes a esta imagem. O primeiro foi sua mudança para uma casa nova num bairro de ricos recentes, em troca do antigo palácio do Marquês de Casalduero, que tinha sido a mansão familiar durante mais de um século. O outro foi seu casamento com uma beleza do povo, sem nome nem fortuna, de quem troçavam em segredo as senhoras de sobrenomes grandes até se convencerem à força, de que a outra punha todas elas no chinelo com sua distinção e seu caráter. O doutor Urbino levou sempre em boa conta esse e muitos outros percalços de sua imagem pública, e ninguém era mais consciente do que ele próprio de ser o último protagonista de um nome em extinção. Seus filhos eram dois fins de raça sem nenhum brilho. Marco Aurélio, o varão, médico como ele e como todos os primogênitos de cada geração, não tinha feito nada notável, sequer um filho, passados os cinquenta anos. Ofélia, a única filha, casada com um bom bancário de Nova Orleans, tinha chegado ao climatério com três filhas e nenhum varão. Não obstante, apesar de lhe doer a interrupção do seu sangue no manancial da história, da morte o que mais preocupava o doutor Urbino era a vida solitária de Fermina Daza sem ele.
      Em todo caso, a tragédia foi uma comoção não só entre sua gente, como afetou por contágio o povo simples, que ganhou as ruas na ilusão de pelo menos sentir o resplendor da legenda. Foram proclamados três dias de luto, hasteou-se a bandeira a meio pau nos estabelecimentos públicos, e os sinos de todas as igrejas dobraram sem pausas até que foi selada a cripta no mausoléu familiar. Um grupo da Escola de Belas-Artes fez a máscara mortuária do cadáver para servir de molde a um busto de tamanho natural, mas se abandonou o projeto porque a ninguém pareceu apropriada a fidelidade com que ficou plasmado o pavor do instante derradeiro. Um artista de renome que estava aqui por casualidade de passagem para a Europa pintou uma tela gigantesca de um realismo patético, na qual se via o doutor Urbino trepado na escada no instante mortal em que estendia a mão para agarrar o louro. A única coisa que contrariava a verdade crua da sua história é que ele não trajava no quadro a camisa sem colarinho e os suspensórios de riscas verdes, e sim o chapéu coco e a sobrecasaca de lã preta de um clichê de jornal dos anos do cólera. Este quadro se expôs poucos meses depois da tragédia, para que ninguém deixasse de vê lo, na vasta galeria de O Arame de Ouro, uma loja de artigos importados onde desfilava a cidade inteira. Passou logo para as paredes de quantas instituições públicas e privadas se julgaram no dever de render tributo à memória do patrício insigne e afinal foi dependurado com uma segunda homenagem fúnebre na Escola de Belas-Artes, de onde o tiraram muitos anos depois os próprios estudantes de pintura para queimá-lo na Praça da Universidade como símbolo de uma estética e de uma época tediosas.
     Durante seu primeiro instante de viúva se viu que Fermina Daza não ficava tão desamparada como temera o esposo. Foi inflexível na determinação de não permitir que se utilizasse o cadáver em benefício de nenhuma causa, e o foi inclusive com o telegrama do Presidente da República, que mandava expô-lo em câmara ardente no salão nobre do palácio do governo local. Com a mesma serenidade se opôs a que fosse velado na catedral, como lhe pediu o arcebispo em pessoa, e só admitiu que ali ficasse durante a missa de corpo presente dos ofícios fúnebres. Apesar da mediação do filho, aturdido diante de tantas solicitações diversas, Fermina Daza se manteve firme em sua noção rural de que os mortos não pertencem a ninguém além da família, e que ele seria velado em casa com café torrado pelas criadas e os costumeiros bolinhos de farinha de trigo e queijo, e com a liberdade de cada um para chorá-lo como quisesse. Não haveria o velório tradicional de nove noites: as portas se fecharam depois do enterro e só voltaram a se abrir para visitas íntimas.
     A casa ficou debaixo do regime da morte. Todo objeto de valor foi posto em lugar seguro, e nas paredes desnudas só ficaram as marcas dos quadros desprendidos. Da sala aos quartos, as cadeiras da casa e as tomadas de empréstimo aos vizinhos estavam colocadas contra as paredes e os espaços vazios pareciam imensos e as vozes tinham uma ressonância espectral, porque os móveis grandes tinham sido removidos, salvo o piano de cauda que jazia em seu canto debaixo de um lençol branco. No centro da biblioteca, sobre a escrivaninha do seu pai, estava estendido sem caixão aquele que fora Juvenal Urbino de La Calle, com o último espanto petrificado no rosto, e com a capa preta e a espada de guerra dos cavaleiros do Santo Sepulcro. A seu lado, de luto íntegro, trêmula mas muito senhora de si, Fermina Daza recebeu os pêsames sem dramas, mal se movendo, até as onze da manhã do dia seguinte, quando se despediu do esposo no pórtico dizendo-lhe adeus com um lenço.
      Não lhe tinha sido fácil recuperar esse domínio a partir do momento em que ouviu o grito de Digna Pardo no quintal e encontrou o ancião de sua vida agonizando no lodo. Sua primeira reação foi de esperança porque ele tinha os olhos abertos e um brilho de luz radiante que ela jamais lhe vira nas pupilas. Rogou a Deus que lhe concedesse ao menos um instante para que ele não partisse sem saber quanto o amara por cima das dúvidas de ambos e sentiu a premência irresistível de começar a vida com ele outra vez desde o começo para que se dissessem tudo que tinham ficado sem dizer, e fizessem bem qualquer coisa que tivessem feito mal no passado. Mas teve que render-se à intransigência da morte. Sua dor se descompôs numa cólera cega contra o mundo, e até contra ela própria, o que lhe infundiu o domínio e a coragem de enfrentar sozinha sua solidão. Desde então não teve trégua, mas se preveniu contra qualquer gesto que parecesse alarde de sua dor. O único momento de um certo patético, aliás involuntário, foi às onze da noite do domingo, quando entrou na casa o ataúde episcopal recendente ainda a verniz ordinário, com alças de cobre e forro de seda acolchoada. O doutor Urbino Daza mandou fechá-lo logo, pois o ar da casa estava rarefeito com o vapor de tantas flores no calor insuportável, e ele achava ter notado sombras arroxeadas no pescoço do pai. Uma voz distraída se ouviu no silêncio: "Nessa idade a gente já está meio podre em vida." Antes que fechassem o caixão, Fermina Daza tirou sua aliança e a colocou no marido morto, e depois lhe cobriu a mão com a sua, como sempre fazia ao surpreendê-lo divagando em público.

— Muito em breve nos veremos — lhe disse.

      Florentino Ariza, invisível em meio à multidão de figurões, sentiu um toque de lança nas costas. Fermina Daza não o notara no tumulto dos primeiros pêsames, embora ninguém fosse estar mais presente nem ser mais útil do que ele nas emergências daquela noite. Foi ele quem pôs ordem nas cozinhas apinhadas para que não faltasse café. Arranjou cadeiras suplementares quando não bastaram as dos vizinhos, e mandou pôr no quintal as coroas excedentes quando não cabia na casa mais nenhuma. Tratou de ver que não faltasse conhaque para os convidados do doutor Lácides Olivella, que tinham recebido a má notícia no apogeu das bodas de prata, e vieram em batalhão continuar a pândega sentados num círculo debaixo do pé de manga. Foi o único que soube reagir a tempo quando o louro fujão apareceu à meia-noite na sala de jantar com a cabeça levantada e as asas abertas, o que causou um calafrio de estupor na casa, pois parecia uma exortação à penitência. Florentino Ariza o agarrou pelo pescoço sem lhe dar tempo de gritar uma só de suas instruções insensatas e carregou-o para a cocheira numa gaiola coberta. Desta forma fez tudo, com tanta discrição e tamanha eficácia, que a ninguém ocorreu pensar que fosse uma intromissão em assuntos alheios- e sim, pelo contrário, uma ajuda inestimável naquela hora má da casa.
      Era aquilo que parecia: um ancião serviçal e sério. Tinha o corpo ossudo e reto, a pele parda e glabra, os olhos ávidos por trás dos óculos redondos e pequenos com armação de metal branco, e um bigode romântico de guias engomadas, um pouco tardio para a época. Tinha as últimas mechas de cabelos penteados da testa para o alto e grudados com gomalina no centro do crânio reluzente como solução final de uma calvície absoluta. Sua gentileza natural e suas maneiras lânguidas cativavam na hora, mas também eram tidas como duas virtudes suspeitas num celibatário empedernido. Tinha gasto muito dinheiro, muito engenho e muita força de vontade para que não avaliassem os setenta e seis anos que já tinha feito em março último, e estava convencido na solidão de sua alma de haver amado em silêncio muito mais do que alguém jamais amara neste mundo.
      Na noite da morte do doutor Urbino estava vestido como o surpreendeu a notícia, que era como sempre estava, não obstante os calores infernais de junho: de lã escura com colete, um laço de fita de seda no colarinho de celuloide, um chapéu de feltro, e um guarda-chuva lustroso e preto que também lhe servia de bengala. Mas quando começou a clarear desapareceu do velório durante duas horas, e retornou repousado com os primeiros sóis, bem escanhoado e cheirando a loção de barba. Trajava uma sobrecasaca preta dessas que ainda só se usavam nos enterros e ofícios da Semana Santa, colarinho mole com plastrom de artista em vez de gravata, e chapéu-coco. Também trazia o guarda-chuva, no caso não só pelo hábito, pois tinha certeza de que ia chover antes das doze, o que informou ao doutor Urbino Daza para o caso de ser possível antecipar o enterro. Foi o que tentaram, de fato, porque Florentino Ariza pertencia a uma família ligada à navegação e ele próprio era presidente da Companhia Fluvial do Caribe, o que permitia supor que em tendesse de prognósticos atmosféricos. Mas não conseguiram harmonizar a tempo as autoridades civis e militares, as corporações públicas e privadas, a banda militar e a das Belas-Artes, as escolas e congregações religiosas que já estavam de acordo para as onze, de modo que o enterro previsto como um acontecimento histórico acabou em debandada devido ao aguaceiro arrasador. Foram muito poucos os que chegaram chapinhando na lama até o mausoléu da família, protegido por uma paineira colonial cuja copa se estendia para lá do muro do cemitério. Debaixo dessa mesma copa, mas na parcela externa destinada aos suicidas, os refugiados do Caribe tinham sepultado a tarde anterior Jeremiah de Saint-Amour, e seu cão junto a ele, de acordo com sua vontade.
      Florentino Ariza foi um dos poucos que chegaram até o final do enterro. Ficou ensopado até a roupa de baixo, e chegou espavorido a sua casa de medo de contrair uma pneumonia depois de tantos cuidados minuciosos e precauções excessivas. Mandou reforçar uma limonada quente com uma dose de conhaque, tomou-a na cama com duas pastilhas de fenaspirina e suou mares enrolado num xale de lã até recobrar o bom clima do corpo. Quando voltou ao velório foi de ânimo forte. Fermina Daza tinha assumido de novo o comando da casa, que estava varrida e em estado de receber, e tinha posto no altar da biblioteca um retrato do esposo morto pintado a pastel, com uma tarja de luto na moldura. Às oito havia tanta gente e o calor era tão intenso como a noite anterior, mas depois do terço alguém fez circular a solicitação de que todos se retirassem cedo para que a viúva descansasse pela primeira vez desde a tarde de domingo.
     Fermina Daza se despediu da maioria junto ao altar, mas acompanhou o último grupo de amigos íntimos até a porta da rua, para fechá-la ela própria, como era seu costume. Dispunha-se a fazê-lo com o último alento, quando viu Florentino Ariza vestido de luto no centro da sala deserta. Ficou satisfeita, porque há muitos anos o havia apagado de sua vida, e pela primeira vez tinha consciência de vê-lo depurado pelo esquecimento. Mas antes que pudesse lhe agradecer a visita, ele pôs o chapéu em cima do coração, trêmulo e digno, e arrebentou o abscesso que tinha sido o sustento de sua vida:

 — Fermina — disse — esperei esta ocasião durante mais de meio século, para lhe repetir uma vez mais o juramento de minha fidelidade eterna e meu amor para sempre.

      Fermina Daza se teria julgado diante de um louco, caso não tivesse tido motivos para pensar que Florentino Ariza estava naquele instante inspirado pela graça do Espírito Santo. Seu impulso imediato foi maldizê-lo pela profanação da casa quando ainda estava quente no túmulo o cadáver de seu esposo. Mas foi contida pela dignidade da raiva. "Vá embora", lhe disse. "E não se deixe ver nunca mais nos anos que ainda lhe restarem de vida." Abriu de novo por completo a porta da rua que tinha começado a fechar, e concluiu:

 — Que espero sejam muito poucos.

      Quando ouviu que se apagavam os passos na rua solitária, fechou a porta bem devagar, com a tranca e os ferrolhos, e encarou sozinha seu destino. Nunca, até este momento, tinha tido a plena consciência do peso e do tamanho do drama que ela própria desencadeara quando tinha apenas dezoito anos, e que havia de persegui-la até a morte. Chorou pela primeira vez desde a tarde do desastre, sem testemunhas, que era seu único jeito de chorar. Chorou pela morte do marido, por sua solidão e sua raiva, e quando entrou no quarto vazio chorou por si mesma, porque muito poucas vezes tinha dormido sozinha nessa cama desde que deixara de ser virgem. Tudo que era do esposo lhe atiçava o pranto: os chinelos de borlas, o pijama debaixo do travesseiro, o espaço sem ele no espelho da penteadeira, o cheiro pessoal dele em sua própria pele. Abalou-a um pensamento vago: "As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas." Não quis ajuda de ninguém para se deitar, não quis comer nada antes de dormir. Na angústia de sua desolação, rogou a Deus que lhe mandasse a morte esta noite durante o sono, e com essa ilusão se deitou, descalça mas vestida, e dormiu no mesmo instante. Dormiu sem saber, mas sabendo que continuava viva no sono, que lhe sobrava metade da cama, que jazia de costas na margem esquerda, como sempre, mas que lhe fazia falta o contrapeso do outro corpo na outra margem. Pensando adormecida pensou que nunca mais poderia dormir assim, e começou a soluçar adormecida, e dormiu soluçando sem mudar de posição na sua margem, até muito depois de acabarem de cantar os gaios, e a despertou o sol indesejável da manhã sem ele. Só então descobriu que havia dormido muito sem morrer, soluçando no sono, e que enquanto dormia soluçando pensava mais em Florentino Ariza do que no marido morto.

continua na página 043...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Fermina Daza estava na cozinha
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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