Gabriel García Márquez
continuando... Em todo caso, o doutor Urbino não o era aquela manhã, quando voltou a sua
casa antes das dez, transtornado pelas duas visitas que não só lhe haviam feito
perder a missa de Pentecostes como ameaçavam modificá-lo numa idade em que
tudo já parecia consumado. Queria dar um cochilo enquanto não chegava a hora do
almoço festivo do doutor Lácides Olivella, mas encontrou a criadagem alvoroçada,
tratando de pegar o louro que tinha voado até o galho mais alto do pé de manga
quando o tiraram da gaiola para lhe aparar as asas. Era um louro depenado e
maníaco, que não falava quando lhe pediam e sim quando menos se esperava, mas
então o fazia com uma clareza e um uso de razão que não eram muito comuns nos
seres humanos. Tinha sido amestrado pelo doutor Urbino em pessoa, o que lhe
valera privilégios que ninguém jamais teve na família, nem mesmo os filhos
quando eram pequenos.
Estava na casa há mais de vinte anos e ninguém sabia quantos teria vivido antes.
Todas as tardes depois da sesta, o doutor Urbino se sentava com ele na varanda do
quintal, que era o lugar mais fresco da casa, e tinha apelado para os recursos mais
árduos de sua paixão pedagógica até que o louro aprendeu a falar francês feito um
acadêmico. Depois, por puro vício da virtude, ensinou-lhe o acompanhamento da
missa em latim e alguns trechos escolhidos do Evangelho segundo São Mateus, e
tentou sem êxito inculcar-lhe uma noção mecânica das quatro operações
aritméticas. Numa das últimas viagens que fez à Europa trouxe o primeiro
gramofone de manivela com muitos discos da moda e de seus compositores
clássicos favoritos. Dia após dia, uma vez depois da outra durante vários meses,
tinha feito o louro ouvir as canções de Yvette Gilbert e Aristide Bruant, que haviam
feito as delícias da França no século passado, até que as decorou. O louro as cantava
com voz de mulher, se eram as dela, e com voz de tenor, se eram as dele, e
terminava com umas gargalhadas libertinas que eram o espelho magistral das que
soltavam as criadas quando o ouviam cantar em francês. A fama de seus talentos
tinha chegado tão longe que às vezes pediam para vê-lo alguns visitantes ilustres
que vinham do interior nos navios fluviais, e certa ocasião tentaram comprá-lo a
qualquer preço uns turistas ingleses dos muitos que passavam por ali nessa época
nos navios bananeiros de Nova Orleans. No entanto, o dia de sua glória maior foi
quando o Presidente da República, o senhor Marco Fidel Suárez, acompanhado pelo
plenário do seu gabinete, visitou a casa para comprovar a verdade de sua fama.
Chegaram por volta das três da tarde, sufocados nas cartolas e nas sobrecasacas de
casimira que não tinham tirado do corpo em três dias de visita oficial sob o céu
incandescente de agosto, e foram forçados a ir embora tão intrigados como haviam
chegado, porque o louro se negou a dizer até mesmo este bico é meu durante duas
horas de desespero, apesar das súplicas, das ameaças e da vergonha pública do
doutor Urbino, que se obstinara naquele convite temerário contra as advertências
sábias da esposa.
O fato de que o louro tivesse mantido seus privilégios depois desse vexame
histórico tinha sido a prova final do seu foro sagrado. Nenhum outro animal era
permitido na casa, exceto a tartaruga de terra, que tinha reaparecido na cozinha
depois de três ou quatro anos em que passou por perdida para sempre. Mas não era
considerada como um ser vivo, e sim, antes, como um amuleto mineral da boa
sorte, o qual nunca se sabia de ciência certa por onde andava. O doutor Urbino
resistia a admitir que odiava os bichos e o dissimulava com toda a classe de fábulas
científicas e pretextos filosóficos que convenciam a muitos, mas não a sua esposa.
Dizia que aqueles que os amavam em excesso eram capazes das piores crueldades
com os seres humanos. Dizia que os cachorros não eram fiéis e sim servis, que os
gatos eram oportunistas e traidores, que os pavões eram arautos da morte, que as
araras não passavam de estorvos monumentais, que os coelhos fomentavam a
cobiça, que os micos transmitiam a febre da luxúria e que os gaios eram malditos
porque se haviam prestado a que ao Cristo alguém negasse três vezes.
O fato de que o louro tivesse mantido seus privilégios depois desse vexame
histórico tinha sido a prova final do seu foro sagrado. Nenhum outro animal era
permitido na casa, exceto a tartaruga de terra, que tinha reaparecido na cozinha
depois de três ou quatro anos em que passou por perdida para sempre. Mas não era
considerada como um ser vivo, e sim, antes, como um amuleto mineral da boa
sorte, o qual nunca se sabia de ciência certa por onde andava. O doutor Urbino
resistia a admitir que odiava os bichos e o dissimulava com toda a classe de fábulas
científicas e pretextos filosóficos que convenciam a muitos, mas não a sua esposa.
Dizia que aqueles que os amavam em excesso eram capazes das piores crueldades
com os seres humanos. Dizia que os cachorros não eram fiéis e sim servis, que os
gatos eram oportunistas e traidores, que os pavões eram arautos da morte, que as
araras não passavam de estorvos monumentais, que os coelhos fomentavam a
cobiça, que os micos transmitiam a febre da luxúria e que os gaios eram malditos
porque se haviam prestado a que ao Cristo alguém negasse três vezes.
Havia todas as espécies de pássaros da Guatemala nas gaiolas dos corredores, e
saracuras, agoureiras, e garças de brejo de grandes pés amarelos, e um veado juvenil
que enfiava a cabeça pelas janelas para comer os antúrios dos floreiros. Pouco antes
da última guerra civil, quando se falou pela primeira vez numa possível visita do
Papa, tinham trazido da Guatemala uma ave-do-paraíso que mais tardou em chegar
do que em voltar à sua terra, quando se soube que o anúncio da viagem pontifícia
não passara de um embuste do governo para assustar os liberais em confabulação.
De outra feita compraram nos veleiros dos contrabandistas de Curaçau uma gaiola
de arame com seis corvos perfumados, iguais aos que Fermina Daza tivera menina
na casa paterna, e que casada queria continuar tendo. Mas não houve quem
aguentasse o contínuo bater de asas que saturava a casa com eflúvios de coroas
fúnebres. Também tiveram uma sucuri de quatro metros, cujos suspiros de
caçadora insone perturbavam a obscuridade dos quartos, embora conseguissem
dela o que queriam, que era que afugentasse com seu bafo mortal os morcegos e
lagartos, e as numerosas espécies de insetos daninhos que invadiam a casa nos
meses de chuva. Ao doutor Juvenal Urbino, tão solicitado então por suas obrigações
profissionais, e tão mergulhado em suas promoções cívicas e culturais, bastava a
convicção de que, em meio a tantas criaturas abomináveis, sua mulher era não só a
mais formosa no âmbito do Caribe, como também a mais feliz. Mas certa tarde de
chuvas, no fim de um dia exaustivo, encontrou na casa um desastre que lhe colocou
os pés no chão. A partir da sala de visitas e até onde a vista alcançava, havia uma
esteira de bichos mortos boiando num pântano de sangue. As criadas, trepadas nas
cadeiras sem saber o que fazer, custavam a se recuperar do pânico da matança.
O caso é que um dos mastins alemães, enlouquecido por ataque súbito de raiva,
tinha feito em pedaços tudo que era bicho de qualquer espécie encontrado em seu
caminho, até que o jardineiro da casa vizinha teve a coragem de enfrentá-lo e o
despedaçou por sua vez a golpes de facão. Não se sabia a quantos tinha mordido, ou
contaminado com suas espumaradas verdes, por isso o doutor Urbino mandou
matar todos os sobreviventes e incinerar os corpos num campo afastado, e pediu
aos serviços do Hospital da Misericórdia uma desinfecção em regra da casa. Só se
salvou; porque ninguém se lembrou dele, o cagado macho que dava sorte.
Fermina Daza deu razão ao marido pela primeira vez num assunto doméstico e
tratou de não falar mais de bichos por muito tempo. Consolava-se com as pranchas
coloridas da História Natural de Lineu, que mandou encaixilhar e pendurar nas
paredes da sala, e talvez tivesse perdido as esperanças de ver outra vez um bicho na
casa, não fosse o fato de haverem os ladrões uma madrugada forçado uma janela do
banheiro e carregado a baixela de prata herdada por cinco gerações. O doutor
Urbino pôs cadeados duplos nas argolas das janelas, reforçou as portas por dentro
com trancas de ferro, guardou as coisas de mais preço no cofre de valores, e
adquiriu o tardio costume de guerra de dormir com o revólver debaixo do
travesseiro. Mas se opôs à compra de um cachorro bravo, vacinado ou não, solto ou
acorrentado, ainda que os ladrões os deixassem em fraldas de camisa.
— Nesta casa não entrará nada que não fale — disse.
Disse para pôr cobro às argúcias de sua mulher, obstinada outra vez em comprar
um cachorro, e sem nem de longe imaginar que aquela generalização apressada
havia de custar-lhe a vida. Fermina Daza, cujo caráter rústico se havia matizado
com os anos, pegou em pleno voo a ligeireza da linguagem do marido: meses depois
do roubo voltou aos veleiros de Curaçau e comprou um louro real de Paramaribo
que só sabia dizer blasfêmias de marinheiro, mas que as dizia com voz tão humana
que bem valia seu preço excessivo de doze centavos.
Era dos bons, mais leve do que parecia, e com a cabeça amarela e a língua preta,
única maneira de diferenciá-lo dos louros de mangue que não aprendiam a falar
nem corri supositórios de terebintina. O doutor Urbino, bom perdedor, se inclinou
ante o engenho da esposa, e ele próprio se surpreendeu com a graça que ia achando
nos progressos do louro alvoroçado pelas criadas. Nas tardes de chuva, quando a
língua dele se desatava com a alegria que lhe davam as penas ensopadas, dizia
frases de outros tempos que não tinha podido aprender na casa, e que permitiam
pensar que era também mais velho do que parecia. A última reserva do médico veio
abaixo uma noite em que os ladrões trataram de se meter de novo por uma
claraboia do eirado, e o louro os afugentou com latidos de mastim que não teriam
sido tão verossímeis se tivessem sido reais, e com brados de gatunos gatunos
gatunos, duas graças salvadoras que não tinha aprendido na casa. Foi aí que o
doutor Urbino se encarregou dele, e mandou construir embaixo da mangueira um
poleiro com um recipiente para a água e outro para a anana da Guiné, além de um
trapézio para as acrobacias. De dezembro a março, quando as noites esfriavam e não
havia como aguentar o sereno devido às brisas do norte, era levado para dormir nas
alcovas dentro de uma gaiola envolta numa manta, apesar de suspeitar o doutor
Urbino que o mormo crônico do louro podia representar perigo para a boa
respiração das pessoas. Durante muitos anos lhe aparavam as penas das asas e o
deixavam solto, caminhando com gosto em sua ginga de cavaleiro velho. Mas um
dia começou a fazer proezas de acrobata nas ripas do teto da cozinha e caiu numa
panela da fervura de carnes em meio à sua própria algaravia naval de salve-se quem
puder, e com tanta sorte que a cozinheira conseguiu pescá-lo com a colher de pau,
escaldado e depenado mas ainda vivo. Desde então o deixaram na gaiola mesmo
durante o dia, contra a crendice vulgar de que os louros engaiolados desaprendem a
fala, e só o libertavam na fresca das quatro para as aulas do doutor Urbino na
varanda do quintal. Ninguém reparou em tempo que estava com as asas grandes
demais, e aquela manhã se dispunham a apará-las quando ele escapou para a copa
da mangueira.
Não tinham conseguido pegá-lo ao cabo de três horas. As criadas, ajudadas por
outras da vizinhança, tinham apelado para toda a sorte de estratagemas para fazê-lo
descer, mas ele continuava teimoso em seu lugar, gritando morto de rir viva o
partido liberal, viva o partido liberal, porra, um grito temerário que tinha custado a
vida a um montão de bêbados distraídos. O doutor Urbino mal conseguia divisá-lo
no meio da galharia, e procurou convencê-lo em espanhol e francês, e até em latim,
e o louro lhe respondia-nos mesmos idiomas e com a mesma ênfase e o mesmo
timbre de voz, mas não se moveu no coração do seu refúgio verde. Convencido de
que ninguém ia conseguir demovê-lo com bons modos, o doutor Urbino mandou
que se pedisse ajuda aos bombeiros, que eram seu brinquedo cívico mais recente.
continua na página 023...
________________
Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Em todo caso
_______________
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Nenhum comentário:
Postar um comentário