segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Em todo caso

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

     Em todo caso, o doutor Urbino não o era aquela manhã, quando voltou a sua casa antes das dez, transtornado pelas duas visitas que não só lhe haviam feito perder a missa de Pentecostes como ameaçavam modificá-lo numa idade em que tudo já parecia consumado. Queria dar um cochilo enquanto não chegava a hora do almoço festivo do doutor Lácides Olivella, mas encontrou a criadagem alvoroçada, tratando de pegar o louro que tinha voado até o galho mais alto do pé de manga quando o tiraram da gaiola para lhe aparar as asas. Era um louro depenado e maníaco, que não falava quando lhe pediam e sim quando menos se esperava, mas então o fazia com uma clareza e um uso de razão que não eram muito comuns nos seres humanos. Tinha sido amestrado pelo doutor Urbino em pessoa, o que lhe valera privilégios que ninguém jamais teve na família, nem mesmo os filhos quando eram pequenos.
      Estava na casa há mais de vinte anos e ninguém sabia quantos teria vivido antes. Todas as tardes depois da sesta, o doutor Urbino se sentava com ele na varanda do quintal, que era o lugar mais fresco da casa, e tinha apelado para os recursos mais árduos de sua paixão pedagógica até que o louro aprendeu a falar francês feito um acadêmico. Depois, por puro vício da virtude, ensinou-lhe o acompanhamento da missa em latim e alguns trechos escolhidos do Evangelho segundo São Mateus, e tentou sem êxito inculcar-lhe uma noção mecânica das quatro operações aritméticas. Numa das últimas viagens que fez à Europa trouxe o primeiro gramofone de manivela com muitos discos da moda e de seus compositores clássicos favoritos. Dia após dia, uma vez depois da outra durante vários meses, tinha feito o louro ouvir as canções de Yvette Gilbert e Aristide Bruant, que haviam feito as delícias da França no século passado, até que as decorou. O louro as cantava com voz de mulher, se eram as dela, e com voz de tenor, se eram as dele, e terminava com umas gargalhadas libertinas que eram o espelho magistral das que soltavam as criadas quando o ouviam cantar em francês. A fama de seus talentos tinha chegado tão longe que às vezes pediam para vê-lo alguns visitantes ilustres que vinham do interior nos navios fluviais, e certa ocasião tentaram comprá-lo a qualquer preço uns turistas ingleses dos muitos que passavam por ali nessa época nos navios bananeiros de Nova Orleans. No entanto, o dia de sua glória maior foi quando o Presidente da República, o senhor Marco Fidel Suárez, acompanhado pelo plenário do seu gabinete, visitou a casa para comprovar a verdade de sua fama. Chegaram por volta das três da tarde, sufocados nas cartolas e nas sobrecasacas de casimira que não tinham tirado do corpo em três dias de visita oficial sob o céu incandescente de agosto, e foram forçados a ir embora tão intrigados como haviam chegado, porque o louro se negou a dizer até mesmo este bico é meu durante duas horas de desespero, apesar das súplicas, das ameaças e da vergonha pública do doutor Urbino, que se obstinara naquele convite temerário contra as advertências sábias da esposa.
     O fato de que o louro tivesse mantido seus privilégios depois desse vexame histórico tinha sido a prova final do seu foro sagrado. Nenhum outro animal era permitido na casa, exceto a tartaruga de terra, que tinha reaparecido na cozinha depois de três ou quatro anos em que passou por perdida para sempre. Mas não era considerada como um ser vivo, e sim, antes, como um amuleto mineral da boa sorte, o qual nunca se sabia de ciência certa por onde andava. O doutor Urbino resistia a admitir que odiava os bichos e o dissimulava com toda a classe de fábulas científicas e pretextos filosóficos que convenciam a muitos, mas não a sua esposa. Dizia que aqueles que os amavam em excesso eram capazes das piores crueldades com os seres humanos. Dizia que os cachorros não eram fiéis e sim servis, que os gatos eram oportunistas e traidores, que os pavões eram arautos da morte, que as araras não passavam de estorvos monumentais, que os coelhos fomentavam a cobiça, que os micos transmitiam a febre da luxúria e que os gaios eram malditos porque se haviam prestado a que ao Cristo alguém negasse três vezes.
     O fato de que o louro tivesse mantido seus privilégios depois desse vexame histórico tinha sido a prova final do seu foro sagrado. Nenhum outro animal era permitido na casa, exceto a tartaruga de terra, que tinha reaparecido na cozinha depois de três ou quatro anos em que passou por perdida para sempre. Mas não era considerada como um ser vivo, e sim, antes, como um amuleto mineral da boa sorte, o qual nunca se sabia de ciência certa por onde andava. O doutor Urbino resistia a admitir que odiava os bichos e o dissimulava com toda a classe de fábulas científicas e pretextos filosóficos que convenciam a muitos, mas não a sua esposa. Dizia que aqueles que os amavam em excesso eram capazes das piores crueldades com os seres humanos. Dizia que os cachorros não eram fiéis e sim servis, que os gatos eram oportunistas e traidores, que os pavões eram arautos da morte, que as araras não passavam de estorvos monumentais, que os coelhos fomentavam a cobiça, que os micos transmitiam a febre da luxúria e que os gaios eram malditos porque se haviam prestado a que ao Cristo alguém negasse três vezes.
     Havia todas as espécies de pássaros da Guatemala nas gaiolas dos corredores, e saracuras, agoureiras, e garças de brejo de grandes pés amarelos, e um veado juvenil que enfiava a cabeça pelas janelas para comer os antúrios dos floreiros. Pouco antes da última guerra civil, quando se falou pela primeira vez numa possível visita do Papa, tinham trazido da Guatemala uma ave-do-paraíso que mais tardou em chegar do que em voltar à sua terra, quando se soube que o anúncio da viagem pontifícia não passara de um embuste do governo para assustar os liberais em confabulação. De outra feita compraram nos veleiros dos contrabandistas de Curaçau uma gaiola de arame com seis corvos perfumados, iguais aos que Fermina Daza tivera menina na casa paterna, e que casada queria continuar tendo. Mas não houve quem aguentasse o contínuo bater de asas que saturava a casa com eflúvios de coroas fúnebres. Também tiveram uma sucuri de quatro metros, cujos suspiros de caçadora insone perturbavam a obscuridade dos quartos, embora conseguissem dela o que queriam, que era que afugentasse com seu bafo mortal os morcegos e lagartos, e as numerosas espécies de insetos daninhos que invadiam a casa nos meses de chuva. Ao doutor Juvenal Urbino, tão solicitado então por suas obrigações profissionais, e tão mergulhado em suas promoções cívicas e culturais, bastava a convicção de que, em meio a tantas criaturas abomináveis, sua mulher era não só a mais formosa no âmbito do Caribe, como também a mais feliz. Mas certa tarde de chuvas, no fim de um dia exaustivo, encontrou na casa um desastre que lhe colocou os pés no chão. A partir da sala de visitas e até onde a vista alcançava, havia uma esteira de bichos mortos boiando num pântano de sangue. As criadas, trepadas nas cadeiras sem saber o que fazer, custavam a se recuperar do pânico da matança.
     O caso é que um dos mastins alemães, enlouquecido por ataque súbito de raiva, tinha feito em pedaços tudo que era bicho de qualquer espécie encontrado em seu caminho, até que o jardineiro da casa vizinha teve a coragem de enfrentá-lo e o despedaçou por sua vez a golpes de facão. Não se sabia a quantos tinha mordido, ou contaminado com suas espumaradas verdes, por isso o doutor Urbino mandou matar todos os sobreviventes e incinerar os corpos num campo afastado, e pediu aos serviços do Hospital da Misericórdia uma desinfecção em regra da casa. Só se salvou; porque ninguém se lembrou dele, o cagado macho que dava sorte.
     Fermina Daza deu razão ao marido pela primeira vez num assunto doméstico e tratou de não falar mais de bichos por muito tempo. Consolava-se com as pranchas coloridas da História Natural de Lineu, que mandou encaixilhar e pendurar nas paredes da sala, e talvez tivesse perdido as esperanças de ver outra vez um bicho na casa, não fosse o fato de haverem os ladrões uma madrugada forçado uma janela do banheiro e carregado a baixela de prata herdada por cinco gerações. O doutor Urbino pôs cadeados duplos nas argolas das janelas, reforçou as portas por dentro com trancas de ferro, guardou as coisas de mais preço no cofre de valores, e adquiriu o tardio costume de guerra de dormir com o revólver debaixo do travesseiro. Mas se opôs à compra de um cachorro bravo, vacinado ou não, solto ou acorrentado, ainda que os ladrões os deixassem em fraldas de camisa.

 — Nesta casa não entrará nada que não fale — disse.

      Disse para pôr cobro às argúcias de sua mulher, obstinada outra vez em comprar um cachorro, e sem nem de longe imaginar que aquela generalização apressada havia de custar-lhe a vida. Fermina Daza, cujo caráter rústico se havia matizado com os anos, pegou em pleno voo a ligeireza da linguagem do marido: meses depois do roubo voltou aos veleiros de Curaçau e comprou um louro real de Paramaribo que só sabia dizer blasfêmias de marinheiro, mas que as dizia com voz tão humana que bem valia seu preço excessivo de doze centavos.
     Era dos bons, mais leve do que parecia, e com a cabeça amarela e a língua preta, única maneira de diferenciá-lo dos louros de mangue que não aprendiam a falar nem corri supositórios de terebintina. O doutor Urbino, bom perdedor, se inclinou ante o engenho da esposa, e ele próprio se surpreendeu com a graça que ia achando nos progressos do louro alvoroçado pelas criadas. Nas tardes de chuva, quando a língua dele se desatava com a alegria que lhe davam as penas ensopadas, dizia frases de outros tempos que não tinha podido aprender na casa, e que permitiam pensar que era também mais velho do que parecia. A última reserva do médico veio abaixo uma noite em que os ladrões trataram de se meter de novo por uma claraboia do eirado, e o louro os afugentou com latidos de mastim que não teriam sido tão verossímeis se tivessem sido reais, e com brados de gatunos gatunos gatunos, duas graças salvadoras que não tinha aprendido na casa. Foi aí que o doutor Urbino se encarregou dele, e mandou construir embaixo da mangueira um poleiro com um recipiente para a água e outro para a anana da Guiné, além de um trapézio para as acrobacias. De dezembro a março, quando as noites esfriavam e não havia como aguentar o sereno devido às brisas do norte, era levado para dormir nas alcovas dentro de uma gaiola envolta numa manta, apesar de suspeitar o doutor Urbino que o mormo crônico do louro podia representar perigo para a boa respiração das pessoas. Durante muitos anos lhe aparavam as penas das asas e o deixavam solto, caminhando com gosto em sua ginga de cavaleiro velho. Mas um dia começou a fazer proezas de acrobata nas ripas do teto da cozinha e caiu numa panela da fervura de carnes em meio à sua própria algaravia naval de salve-se quem puder, e com tanta sorte que a cozinheira conseguiu pescá-lo com a colher de pau, escaldado e depenado mas ainda vivo. Desde então o deixaram na gaiola mesmo durante o dia, contra a crendice vulgar de que os louros engaiolados desaprendem a fala, e só o libertavam na fresca das quatro para as aulas do doutor Urbino na varanda do quintal. Ninguém reparou em tempo que estava com as asas grandes demais, e aquela manhã se dispunham a apará-las quando ele escapou para a copa da mangueira.
     Não tinham conseguido pegá-lo ao cabo de três horas. As criadas, ajudadas por outras da vizinhança, tinham apelado para toda a sorte de estratagemas para fazê-lo descer, mas ele continuava teimoso em seu lugar, gritando morto de rir viva o partido liberal, viva o partido liberal, porra, um grito temerário que tinha custado a vida a um montão de bêbados distraídos. O doutor Urbino mal conseguia divisá-lo no meio da galharia, e procurou convencê-lo em espanhol e francês, e até em latim, e o louro lhe respondia-nos mesmos idiomas e com a mesma ênfase e o mesmo timbre de voz, mas não se moveu no coração do seu refúgio verde. Convencido de que ninguém ia conseguir demovê-lo com bons modos, o doutor Urbino mandou que se pedisse ajuda aos bombeiros, que eram seu brinquedo cívico mais recente.

continua na página 023...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Em todo caso
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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