terça-feira, 10 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Desde a entrega da carta


O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

      Desde a entrega da carta, um mês antes, ele havia contrariado muitas vezes a promessa de não voltar à pracinha, mas tinha tomado boas precauções para não se deixar ver. Tudo continuava no mesmo. A aula de leitura debaixo das árvores terminava por volta das duas da tarde, quando a cidade acordava da sesta, e Fermina Daza continuava bordando com a tia até que declinava o calor. Florentino Ariza não esperou que a tia entrasse na casa e foi atravessando a rua com umas passadas marciais que lhe permitiram dominar o desalento dos joelhos. Mas não se dirigiu a Fermina Daza, e sim à tia.

— Faça-me o favor de me deixar a sós um momento com a senhorita — disse. — Tenho uma coisa importante a dizer a ela.

 — Atrevido! — disse a tia. — Não há assunto dela que eu não conheça.

 — Atrevido! — disse a tia. — Não há assunto dela que eu não conheça.

     Não eram essas as maneiras que Escolástica Daza esperava do noivo ideal, mas se levantou assustada, porque teve pela primeira vez a impressão avassaladora de que Florentino Ariza estava falando por inspiração do Espírito Santo. Por isso entrou na casa para trocar de agulhas e deixou sós os dois jovens debaixo das amendoeiras do portal.
     Na realidade, era muito pouco o que sabia Fermina Daza daquele pretendente taciturno que aparecera em sua vida feito uma andorinha de inverno, e de quem não saberia sequer o nome se não fosse a assinatura da carta. Apurara desde então que era filho sem pai de uma solteira laboriosa e séria, mas marcada sem remédio pelo estigma de fogo de um único mau passo juvenil. Descobrira que não era mensageiro do telégrafo, como supunha, e sim um assistente bem qualificado e de futuro promissor, e achou que levara o telegrama a seu pai apenas como um pretexto para vê-la. Essa suposição a comoveu. Também sabia que era um dos músicos do coro, e embora nunca tivesse ousado levantar a vista para comprová-lo durante a missa, um domingo teve a revelação de que enquanto os outros instrumentos tocavam para todos o violino tocava só para ela. Não era o tipo de homem que houvesse escolhido. Seus óculos de menino enjeitado, sua postura clerical, seus recursos misteriosos haviam suscitado nela uma curiosidade difícil de resistir, mas nunca imaginara que a curiosidade fosse outra das tantas ciladas do amor.
     Ela própria não sabia explicar a si mesma por que havia aceito a carta. Não é que se culpasse por isso, mas o compromisso cada vez mais premente de dar uma resposta acabara convertido num empecilho à vida. Cada palavra do seu pai, cada olhar casual, seus gestos mais triviais lhe pareciam semeados de truques para descobrir seu segredo. Era tal seu estado de alarma que evitava falar à mesa, de modo que um descuido pudesse delatá-la, e se tornou evasiva até com a tia Escolástica, que compartilhava de sua ansiedade reprimida como se fosse dela própria. Trancava-se no banheiro a qualquer hora, sem necessidade, e tornava a ler a carta procurando descobrir um código secreto, uma fórmula mágica escondida em alguma das trezentas e quatorze letras de suas cinquenta e oito palavras, na esperança de que dissessem mais do que diziam. Mas não encontrou nada além do que havia entendido da primeira leitura, quando correu a se trancar no banheiro com o coração enlouquecido, e despedaçou o envelope na ilusão de que fosse uma carta abundante e febril, só encontrando um bilhete perfumado cuja determinação a assustou.
     A princípio não havia pensado a sério que estivesse obrigada a dar uma resposta, mas a carta era tão explícita que não havia maneira de contorná-la. Enquanto isso, na tempestade das dúvidas, surpreendeu-se pensando em Florentino Ariza com mais freqüência e mais interesse do que queria permitir a si mesma, e até perguntava atribulada por que não estava ele na pracinha à hora de sempre, sem lembrar que ela é que havia pedido que ele não voltasse enquanto ela pensava na resposta. Acabou pensando nele como jamais imaginara que se pudesse pensar em alguém, pressentindo-o onde não estava, desejando-o onde não podia estar, acordando de súbito com a sensação física de que ele a contemplava na escuridão enquanto ela dormia, de maneira que na tarde em que sentiu seus passos resolutos no tapete de folhas amarelas da pracinha custou a crer que não fosse outro embuste da sua fantasia. Mas quando ele lhe exigiu a resposta com uma autoridade que nada tinha a ver com suas maneiras lânguidas, conseguiu dominar o espanto e tratou de se evadir pela verdade: não sabia o que responder. No entanto, Florentino Ariza não havia transposto um abismo para se amedrontar com os seguintes.

 — Se aceitou a carta — lhe disse — é falta de educação não respondê-la.

     Esse foi o final do labirinto. Fermina Daza, senhora de si mesma, se desculpou pela demora, e lhe deu sua palavra de honra de que teria uma resposta antes do fim das férias. Cumpriu. Na última sexta-feira de fevereiro, três dias antes da reabertura dos colégios, tia Escolástica foi ao telégrafo perguntar quanto custava um telegrama para o povoado de Pedras de Moer, que sequer figurava na lista, e se deixou atender por Florentino Ariza como se nunca se tivessem visto, mas ao sair fingiu esquecer em cima do balcão um breviário encadernado em couro de lagarto dentro do qual havia um envelope de papel de linho com arabescos dourados. Transtornado pela ventura, Florentino Ariza passou o resto da tarde comendo rosas e lendo a carta, repassando-a letra por letra uma vez e mais outra e comendo mais rosas quanto mais lia a carta, e à meia-noite já a lera tanto e comera tantas rosas que a mãe teve que subjugá-lo e prender-lhe a cabeça por trás, como a um bezerro, para que engolisse uma poção de óleo de rícino.
     Foi o ano do namoro encarniçado. Nem ele nem ela tinham vida para nada que não fosse pensar no outro, para sonhar com o outro, para esperar as cartas com a mesma ansiedade com que as respondiam. Jamais, naquela primavera de delírio, ou no ano seguinte, tiveram ocasião de se comunicarem de viva voz. E mais: do instante em que se viram pela primeira vez até o instante em que ele reiterou sua determinação meio século depois, jamais tiveram uma oportunidade de se verem a sós nem de falar do seu amor. Mas nos três primeiros meses não se passou um só dia sem que se escrevessem, e em certa época até duas vezes por dia, até que tia Escolástica se assustou com a voracidade da fogueira que ela própria ajudara a atear.
     Depois da primeira carta, que levou ao telégrafo sentindo algum rescaldo de vingança contra sua própria sorte, permitira a troca de recados quase diários em encontros de rua que pareciam casuais, mas não teve coragem de patrocinar uma conversa, por banal e momentânea que fosse. Contudo, ao fim de três meses compreendeu que a sobrinha não estava à mercê de um capricho juvenil, como lhe parecera a princípio, e que sua própria vida estava ameaçada por aquele incêndio de amor. Na verdade, Escolástica Daza só tinha como modo de subsistência a caridade do irmão, que com seu caráter tirânico jamais perdoaria semelhante abuso da sua confiança, Mas na hora da decisão final não teve coração para lançar a sobrinha no mesmo infortúnio irreparável com que tivera de viver desde a juventude, e deixou que ela usasse de um recurso que lhe deixava uma ilusão de inocência. Foi um método simples. Fermina Daza punha sua carta em algum esconderijo no percurso diário entre a casa e o colégio, e nessa mesma carta indicava a Florentino Ariza onde esperava receber a resposta, Florentino Ariza fazia o mesmo. Desse modo os conflitos de consciência de tia Escolástica foram transferidos pelo resto do ano para os batistérios das igrejas, o oco das árvores, as fendas das fortalezas coloniais em ruínas. Às vezes encontravam as cartas empapadas de chuva, sujas de lama, raspadas pela adversidade, e algumas se perderam por motivos diversos, mas os dois sempre descobriram os meios e modos de reatar o contato.
      Florentino Ariza escrevia todas as noites sem piedade consigo mesmo, envenenando-se letra a letra com a fumaça das candeias de óleo de coco no cômodo de trás do armarinho, e suas cartas iam ficando mais extensas e lunáticas à medida que ele se esforçava por imitar seus poetas preferidos da Biblioteca Popular, que já por essa época ia chegando aos oitenta volumes. Sua mãe, que com tanto ardor o havia incitado a desfrutar do seu tormento, começou a se alarmar por sua saúde. "Você vai gastar o siso", gritava para ele do quarto de dormir quando ouvia cantar os primeiros gaios. "Não há mulher que mereça tanto." Não se lembrava de ter conhecido ninguém em tal cotado de perdição. Mas ele não ligava. Às vezes chegava ao escritório sem dormir, os cabelos desgrenhados de amor, depois de ter deixado a carta no esconderijo previsto para que Fermina Daza a encontrasse a caminho do colégio. Ela, por sua vez, submetida à vigilância do pai e à tocaia viciosa das freiras, mal chegava a completar meia folha do caderno escolar trancada nos banheiros ou fingindo tomar notas durante as aulas. Mas não apenas devido às pressas e sustos, como também por seu caráter, as cartas dela se desviavam de escolhos sentimentais e se limitavam a contar incidentes de sua vida cotidiana no estilo utilitário de um diário de bordo. Na realidade, eram cartas de distração, destinadas a manter as brasas vivas mas sem botar a mão no fogo, enquanto Florentino Ariza se incinerava a cada linha. Aflito por contagiá-la com sua própria loucura, mandava-lhe versos de miniaturista gravados com a ponta de um alfinete na pétala das camélias. Foi ele e não ela quem teve a audácia de pôr um cacho de cabelo dentro de uma carta, mas não recebeu nunca a resposta ambicionada, que era um fio completo da trança de Fermina Daza. Conseguiu pelo menos que ela desse mais um passo, pois a partir daí começou a lhe mandar nervuras de folhas ressecadas em dicionários, asas de borboleta, penas de pássaros mágicos, e lhe deu de aniversário um centímetro quadrado do hábito de São Pedro Claver, dos que se vendiam então às escondidas a um preço inatingível para uma colegial da sua idade. Uma noite, sem qualquer aviso, Fermina Daza acordou assustada por uma serenata de uma valsa só em solo de violino. Iluminou-a a clarividência de que cada nota era uma ação de graças pelas pétalas dos seus herbários, pelo tempo roubado à aritmética para escrever suas cartas, pelo susto dos exames pensando mais nele do que nas Ciências Naturais, mas não se atreveu a acreditar que Florentino Ariza fosse capaz de semelhante imprudência.
     No dia seguinte, ao café da manhã, Lorenzo Daza não aguentava a curiosidade. Em primeiro lugar, porque não sabia o que significava uma só peça na linguagem das serenatas, e em segundo porque, apesar da atenção com que escutara, não tinha conseguido descobrir de que casa vinha a música. Tia Escolástica, com um sangue frio que devolveu o fôlego à sobrinha, assegurou ter visto através das frestas da cortina do quarto que o violinista solitário estava do outro lado da praça, e disse que em todo o caso uma peça única era uma notificação de rompimento. Na sua carta desse dia, Florentino Ariza confirmou que ele tinha feito a serenata, e que a valsa tinha sido composta por ele e tinha o nome pelo qual conhecia Fermina Daza em seu coração: A Deusa Coroada. Não voltou a tocá-la na praça, mas continuou a fazê-lo em noites de luar em lugares escolhidos de propósito para que ela o escutasse sem sobressaltos no quarto. Um de seus lugares preferidos era o cemitério dos pobres, exposto ao sol e à chuva numa colina indigente onde dormiam os urubus, e onde a música adquiria sonoridades sobrenaturais. Mais tarde aprendeu a conhecer a direção dos ventos, e assim ficou seguro de que sua voz chegava onde devia.

continua na página 056...
________________

Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Desde a entrega da carta
_______________

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

Nenhum comentário:

Postar um comentário